sexta-feira, 17 de junho de 2022

Dvar Torá: Por que é tão difícil não falar mal dos outros? (CIP)


Eu quero voltar pro finalzinho da Amidá, na página 26. Nos primeiros séculos do período rabínico, as pessoas ofereciam pedidos pessoais ANTES da Amidá. Quando Raban Gamliel II, líder da comunidade judaica na Terra de Israel no começo do 2º século, instituiu a Amidá, este espaço para pedidos pessoais foi mudado para o FINAL da Amidá. No Talmud, vários rabinos propuseram formulações para estes pedidos pessoais, um rabino da Babilônia, Mar bar Ravina [1],[2]. Quando Amram Gaon codificou o primeiro sidur do qual temos conhecimento, ao redor do ano 860 EC [3], ele incluiu a versão de Mar bar Ravina como sugestão para as pessoas que não soubessem como compor sua própria petição pessoal e quando o primeiro sidur europeu, o Machzor Vitry, foi impresso no século 11, o que era uma sugestão se tornou uma regra: todos deveriam, ao final da Amidá, dizer aquela versão da prece pessoal.

E o que diz a prece pessoal de Mar bar Ravina? “Meu Deus, impeça minha língua de dizer o mal e meus lábios de enganarem” e por aí vai…

De tudo que os rabinos podiam pedir do ponto de vista pessoal, eles não pediram riqueza, nem sabedoria, nem a disposição para trabalhar de forma mais intensa no dia seguinte. Eles pediram a capacidade de se conter e não fazer parte do que a nossa tradição chama de “lashon hará”, a língua do mal. E a verdade é que é tão difícil, né?!

A prática de falar mal dos outros se tornou de tal forma parte das nossas rotinas que a gente nem percebe mais… entra em reunião de trabalho falando mal do colega; se reúne com a família e se põe a falar mal da prima que ninguém gosta; cria grupo paralelo dos pais da escola pra poder falar mal dos pais que ficaram abandonados no grupo original. Quando a gente se dá conta, já foi — e não foi nem por maldade, mas simplesmente porque é assim que todo mundo se comporta.

Se você parar para prestar atenção nas confissões que fazemos em Iom Kipur, grande parte delas são coisas que fazemos com a fala. Só para dar alguns exemplos:
  • Difamamos = דיברנו דופי
  • Incitamos o mal = הרשענו
  • Acusamos falsamente = טפלנו שקר
  • Demos mau conselho = יעצנו רע
  • Zombamos = לצנו
  • Provocamos = ניאצנו 
Ao mesmo tempo, a tradição reconhece que a fala é um atributo Divino, através do qual Deus criou o mundo e que distingue os seres humanos dos outros animais. Quando Rashi comenta o verso em Bereshit que fala do sopro Divino que deu ao ser humano sua alma viva, ele diz: “animais também são chamados de almas vivas, mas a alma humana tem tudo o que eles têm e mais porque aos seres humanos foi dada a compreensão e a fala.” [4]

E o mesmo Rashi revela uma compreensão assustadoramente contemporânea ao analisar uma passagem da Torá, no livro de Vaicrá [5] que proíbe a fofoca. Ele escreveu: “Digo isso porque todos os que semeiam a discórdia entre as pessoas e todos os que falam calúnias vão à casa dos amigos para espiar o mal que ali vêem, ou o mal que ali ouvem, para que o divulguem nas ruas. - eles são chamados de "pessoas que andam espionando.”

Um midrash [6] diz que, dos 6 atributos que foram dados aos seres humanos, 3 estavam sob nosso controle e 3 não. A visão, o olfato e a audição não estariam sob nosso controle — afinal de contas, cheiramos, escutamos e enxergamos mesmo o que não queremos. De outro lado, a fala e os movimentos dos pés das mãos estariam sob nosso controle. O exemplo que o midrash dá não poderia ser mais claro com relação às nossas escolhas: “a pessoa precisa decidir para estudar Torá, difamar, blasfemar e se rebelar.” E uma passagem dos Provérbios confirma este caráter de escolha, ao afirmar: “Morte e vida estão no poder da língua.” [7]

De acordo com o Talmud, lashon hará tem o poder de matar três pessoas: aquela que fala, aquela que escuta e aquela sobre quem está sendo falado. Por que será que é tão difícil usar sempre este atributo na direção da vida?!

Na parashá desta semana, Miriám, a profetisa, se torna a fofoqueira, ao fazer contra um comentário maldoso sobre Moshé ou sobre sua esposa para Aharón — comentário específico não é claro e há comentaristas que enxergam nele aspectos de preconceito racial e outros que dizem que ela estava defendendo a cunhada, que estaria recebendo pouca atenção de Moshé. De qualquer forma, ela desenvolve uma doença de pele como punição pelo seu ato e teve que ser excluída do acampamento por sete dias.

Na maioria dos casos, no entanto, a exclusão que acontece como consequência de lashon hará, não é daquele que dá início ou que espalha a fofoca, mas aquele sobre quem se fala. Seja por vergonha, por sentir-se não acolhido ou por sentir-se explicitamente rejeitado, não é incomum que as vítimas dos processos de lashon hará se afastem do ambiente comunitário em um processo no qual todos perdemos.

Há uns 25 anos, eu morava em Tel Aviv e passei a frequentar a sinagoga reformista de lá, Beit Daniel. Toda semana, eu me sentava mais ou menos no mesmo lugar e havia uma senhora que sentava sempre perto de mim. Com o tempo, começamos a conversar, ela sempre tentando me apresentar sua neta… Um dia, ela me pergunta: “você viu quem está na sinagoga hoje?”. “Não,” eu respondi. “Quem?!” “Convidados não desejados!”, ela me disse. “Quem são eles?” eu perguntei, e adicionei em tom de piada, “o Rabino Chefe”, uma figura ultra-ortodoxa e sisuda que nunca apareceria na nossa sinagoga reformista. “O rabino-chefe não é bem vindo?!”, ela se espantou com a minha brincadeira. “À minha casa eu não o convidaria”, eu respondi e com isso concluímos nossa conversa.

Mais tarde, durante o kidush, entendi de quem ela estava falando. Naquele dia, havia acontecido a Parada do Orgulho Gay em Tel Aviv e membros da nossa sinagoga tinham ido participar e convidar os participantes a virem ao Cabalat Shabat. Para minha vizinha de sinagoga, no entanto, aquelas pessoas que não tinham lhe feito nada, eram convidados indesejados apenas por serem quem eles eram. 

Por muito tempo, por tempo demais, aqui em São Paulo, aqui nesta CIP, membros LGBTQIA+ da comunidade judaica se sentiram também convidados indesejados. Eles se sentaram ao nosso lado e escutaram nossas piadas homofóbicas, fingindo rir delas para não colocar em risco sua aceitação na comunidade. Parece absurdo, mas com uma frequência imensa lashon ha-rá assume o formato de piada — piada de mal gosto, piada cheia de preconceito, mas que continuamos contando ser perceber o efeito corrosivo que elas têm.

Em um documento escrito há alguns anos por um grupo de judeus LGBT no facebook, ao falarem de como se sentiam na intersecção de suas múltiplas identidades, os autores escreveram: “Nosso Judaísmo foi duplamente – triplamente – exílico. Nós fomos primeiramente forçados para fora de nossa identidade sexual e, a seguir, fomos forçados para fora do Judaísmo. E a única alternativa era esconder uma das duas identidades, para poder preservar a outra.” 

Hoje, um grupo de membros do Hineni, o grupo LGBTQIA+ da Fisesp, veio participar conosco do Cabalat Shabat. Ao lhes dar as boas vindas, eu queria tentar quebrar pelo menos duas dimensões deste exílio triplo do qual o documento falava. Saibam que vocês não são hóspedes indesejados. Primeiro, porque esta casa é sua e ninguém pode ser hóspede na sua própria casa. Segundo, porque nós queremos muito que vocês participem e venham e estejam sempre por aqui. O Judaísmo é inegavelmente a sua casa e a CIP é uma das muitas casas de portas abertas para vocês dentro da comunidade judaica.

Que neste shabat possamos engajar somente em lashon hatov, a língua do bem — e que esta prática de shabat nos sirva de incentivo para podermos sempre usar as palavras só para construir, encantar, unir e acolher.

Shabat Shalom.


[1] My People’s Prayer Book, vol. 2, p. 187
[2] Talmud Bavli 17a
[3] My People’s Prayer Book, vol. 1
[4] Comentário de Rashi para Gen. 2:7:4
[5] Lev. 19:16
[6] Bereshit Rabá 67:3
[7] Prov. 18:21
 

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