sexta-feira, 26 de maio de 2023

Dvar Torá: A entrega da Torá vai muito além da entrega das Tábuas (CIP)


Alguém sabe qual a palavra do ano de 2022?

Quem respondeu a minha pergunta com outra pergunta, “de acordo com quem?” ganhou alguns pontinhos… Eu fui pesquisar o assunto e descobri uma enormidade de listas em várias línguas que tentam expressar em uma palavra o espírito geral da sociedade naquele ano. Aparentemente, tudo começou em 1972, quando a Sociedade para a Língua Alemã publicou a palavra do ano de 1971, o ano em que eu nasci. Para surpresa de todos, a palavra escolhida não foi “Rogério”, mas chegou bem perto. “Aufmüpfig”, a palavra escolhida, é traduzida como “rebelde” ou “insubordinado”.

Em português, existem, pelo menos, duas listas: uma organizada em Portugal e outra no Brasil, que vem sendo compilada desde 2016. Indo pela escolha de cada ano, vamos vendo como os ventos estão soprando e mudando de direção nos últimos sete anos. Veja a sequência desde 2016 até 2022: indignação, corrupção, mudança, dificuldades, luto, vacina e esperança. Nas listas em inglês, há uma predileção por palavras recém-criadas ou cujo uso ganhou novo significado. Em 2015, a palavra do ano escolhida pelo dicionário Oxford foi o emoji de uma pessoa chorando de rir, em 2016 foi “pós-verdade”, e em 2017 foi “youthquake”, uma mistura de “youth”/ “juventude” e “earthquake” / “terremoto” para indicar uma mudança na sociedade ou na cultura em resposta às demandas das pessoas mais jovens.

O que eu tinha ido procurar nessas listas e acabei não encontrando era a palavra “narrativa”, que apesar de não ser nova me parece que ganhou grande destaque nos últimos dez ou vinte anos. Quando eu procurei “narrativa” no dicionário, no Aurélio (1999) aparecia:

1 - A maneira de narrar.

2 - Narração.

3 - Conto, história.

Mas o significado no qual eu estava pensando para “narrativa” não era nenhum destes. Fui procurar em um dicionário em inglês (Oxford, 2021):

1 - um relato falado ou escrito de eventos relacionados; uma história.

2 - a parte ou partes narradas de uma obra literária, distintas do diálogo.

3 - a prática ou arte de contar histórias.

4 - uma representação de uma situação ou processo particular de forma a refletir ou estar em conformidade com um conjunto abrangente de objetivos ou valores.

Era esta última que eu estava buscando: “narrativa” como a perspectiva específica que damos ao que estamos apresentando, em sintonia com um conjunto de objetivos e valores. Se a palavra “narrativa” não apareceu em nenhuma lista de palavra do ano, a expressão “disputa de narrativas” certamente deveria ter aparecido — nós a vivemos em inúmeros aspectos das nossas vidas. Pensem em como se conta sobre a Guerra da Ucrânia no Ocidente e nos países aliados de Moscou, sobre o processo que tirou Dilma da presidência, se um único jogo disputado entre representantes de dois continentes apenas pode ser considerado campeonato mundial, sobre casais que se separam ou sobre quase toda briga. Há até um ditado que diz que para todo evento sempre há três lado: o de quem conta, o de sobre quem se conta, e a verdade. Definição perfeita de “disputa de narrativas.”

Estamos em Shavuot, a festa que, de acordo com a narrativa rabínica, comemora a entrega da Torá no Monte Sinai. É aqui que o consenso acaba e começa a disputa de narrativas….

O que exatamente foi entregue no Monte Sinai? Os Rabinos se esforçaram para que a palavra Torá fosse tão ambígua quanto possível. De um lado, “Torá” são os cinco livros que Moshé entregou ao povo de Israel: בראשית, שמות, ויקרא, במדבר, דברים, , Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Além disso, “Torá” pode significar também todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, e seus 39 livros. Mais do que isso, Torá pode significar toda a literatura rabínica, tanto a Torá escrita quanto a Torá Oral. Há um midrash de acordo com o qual até mesmo uma nova interpretação dita por um aluno esforçado ao seu professor nos dias de hoje já foi revelada por Deus a Moshé no Monte Sinai. [1]

Qual então o significado da palavra “Torá” quando dizemos que a “Torá” foi entregue no Monte Sinai? Foram as Dez Afirmações? Foram as Leis de acordo com as quais um povo recém-libertado deveria se comportar? Foram os valores contidos, não apenas nas leis, mas principalmente nas histórias que lemos na Torá? Foi a tradição rabínica do estudo e do debate, do questionamento incessante a todo momento?

O que nós celebramos hoje quando celebramos o recebimento da Torá em Shavuot? Na dinâmica conhecida dos conflitos de narrativas, este é um tema em debate. 

Há bastante gente, mesmo no mundo judaico liberal, que defende e ensina que Shavuot é a data do recebimento das leis. Ponto. De acordo com essa narrativa, o ponto central da prática judaica é o respeito estrito à halachá, a lei judaica, e, portanto, é seu recebimento que marcamos em Shavuot. Eu não sei quanto a vocês, mas as leis que governam a minha rotina não vêm da Torá — vêm de dois mil anos de tradição rabínica de encontro, duelo e questionamento com a Torá. Meu relacionamento com a Torá e com as inúmeras leis que, de fato, fazem parte do seu texto, não é fundamentalista, não é literal. Portanto, se Chag Matán Torá, a festa da Entrega da Torá, tem a ver só com a entrega das Leis, eu teria pouco o que comemorar.

O que eu descubro na Torá, muito além das Leis, são narrativas que me permitem encontrar o Divino, em disputa e em dança, com carinho e com tensão, na companhia de 2.000 anos de debates, interpretações, comentários que buscam a forma de viver a relação com o Divino nas ações mais prosaicas, no trocar a fralda de um bebê, no comer a fruta da estação, na declaração do Imposto de Renda que eu ainda não terminei. 

Para mim, Shavuot é a data de celebrar este encontro verdadeiro entre judeus e  seus judaísmos, assim no plural, e eu reconheço que este também é um ponto de vista, uma narrativa, em conflito com aquela outra. E provavelmente, hajam outras narrativas que discordam dessas duas e junto com as quais compõem um quadro de múltiplas perspectivas contraditórias, mas não por isso menos verdadeiras. Nada mais judaico!

Chag Sameach!




 

[1] Vaicrá Rabá, Acharei Mot 22:1

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