sexta-feira, 1 de julho de 2022

Dvar Torá: Menos certezas e narrativas mais diversas (CIP)


Eu tenho um péssimo hábito de iniciar a leitura de vários livros ao mesmo tempo. Nestes tempos de livros eletrônicos, este péssimo hábito nem tem mais a consequência de gerar uma pilha física na mesa de cabeceira que, em algum momento se torna instável e nos força a terminar os livros que tínhamos iniciado antes de começar um novo.

Por que, então, eu digo “péssimo hábito”? Porque muitas vezes me toma meses, até anos para terminar os livros. Vou começando um, dois, três, dez e acabou não encerrando as leituras que comecei. Quando resolvo voltar e terminar de lê-los já esqueci do que eles falavam e preciso voltar muitas páginas para voltar a estar a par da narrativa.

Um desses muito livros cuja leitura eu comecei mas ainda não terminei é A Guerra do Paraguai, de Luiz Octavio Lima. Quando eu estava estudando o assunto na escola, ainda na década de 80, aprendíamos sobre um processo de revisão histórica em curso no Brasil. Na época dos meus pais, eles tinham aprendido que Solano Lopez, o líder do Paraguai na época da guerra, era um ditador expansionista que queria dominar a América do Sul e que o Duque de Caxias tinha sido um herói da guerra. Já na época em que eu estava estudando, aprendíamos que Solano Lopez era um líder carismático e desenvolvimentista, que queria que o Paraguai se tornasse uma referência industrial na América do Sul, o que tinha gerado estranhamento com a Inglaterra, país do qual o continente comprava a maior parte de seus produtos manufaturados. Os ingleses, então, teriam convencido Brasil, Argentina e Uruguai a se aliarem e declararem guerra ao Paraguai de Solano Lopes. Além de um Paraguai completamente destruído, a guerra teria deixado uma imensa dívida pública dos países aliados com o Império Britânico. Desta forma, os ingleses teriam sido os verdadeiros vencedores da guerra: tinham eliminado um concorrente comercial e passaram a cobrar altos juros na dívida contraída por Brasil, Argentina e Uruguai. O efeito da guerra sobre o Paraguai era descrito quase como um genocídio: a brutalidade das forças aliadas tinham dizimado a população paraguaia, especialmente seus homens e sendo um fator determinando para o atraso econômico do qual nosso país vizinho sofre até hoje.

No livro de Luiz Octavio Lima, a situação apresentada é bem mais complexa. Solano Lopez é apresentado como uma playboy mulherengo, filho da elite, mas que de fato tinha sonhos de modernizar seu país e que toma medidas neste sentido. No entanto, ele acaba se envolvendo em disputas geo-políticas dos países vizinhos e apoia as facções que saem perdendo destas disputas, gerando inimigos que passaram a ocupar o poder, especialmente na Argentina e no Uruguai. A influência inglesa sobre os países aliados, uma tese que havia sido defendida pela Grande Enciclopédia Soviética, é refutada, dado que não existe qualquer evidência documental que a sustente. O efeito nefasto da guerra sobre a população paraguaia e sua economia, por outro lado, foram confirmados.

Na época dos meus pais, o Duque de Caxias era um herói nacional gigante, sobre quem ninguém podia levantar qualquer crítica; quando eu estudei o assunto, apesar de meus professores não usarem este termo, ele era apresentado praticamente como um criminoso de guerra. A visão histórica apresentada hoje é mais complexa: um brilhante estrategista militar que cometeu excessos na guerra.

Assim são, muitas vezes, as narrativas: cheias de cores e de adjetivos, mas nem sempre preocupadas em refletir toda a complexidade de cada situação. Para isso, precisamos considerar as múltiplas narrativas de um mesmo evento, como se fossem os distintos pontos de vista que precisamos ter para construir uma imagem tri-dimensional.

Eu sempre fico pensando em como as narrativas são limitadas e militantes por um determinado ponto de vista quando leio a parashá desta semana, Côrach, e os comentários a respeito dela.

Só pra recordar: Côrach liderou uma rebelião contra Moshé e Aharón da qual participaram 250 líderes da comunidade. Seu questionamento, aparentemente era por mais democracia: “toda a comunidade é santa, todos eles, e Adonai está entre eles. Por que, então, vocês se elevam acima da congregação de Adonai?” [1] Em resposta a esta rebelião, Deus abriu o chão do deserto abriu sua boca e engoliu Côrach, tua sua gente e suas posses e um fogo de Deus consumiu os 250 líderes que tinham se juntado à sua causa.

Levando em conta que, pela Torá, Deus claramente tinha considerado a rebelião de Côrach infundada ou algo pior, os comentaristas se esforçaram para encontrar argumentos que justificassem o rigor da punição Divina. Um midrash [2] diz que Côrach seduziu o povo com seu discurso populista, argumentando que o poder que ele buscava era para o povo e não para sua própria honra; outros midrashim apresentam Côrach como alguém que manipulava os textos da Torá com sabedoria mas com má intenção, fazendo pouco caso das regras estabelecidas por Deus através de Moshé. Até bem recentemente, eram bem difícil encontrar alguém que mostrasse qualquer empatia pelas posições de Côrach. Uma exceção foi o mestre chassídico Meshulam Feivush Heller de Zbarazh. De acordo com ele, Côrach realmente acreditava que ele agia sem ser guiado pelo ego e que Moshé era quem buscava o engrandecimento pessoal, ainda que na verdade os papeis estavam trocados [3]. Ou seja: ele continua com uma análise crítica de Côrach, mas atribui seus erros à sua inocência, não à malícia. Como comentarista de um jogo cujo resultado eles já conhecem, estes comentaristas partem da premissa de que a punição era justificada e que tudo que lhes resta é desvendar seu motivo.

Recentemente, no entanto, alguns comentaristas começaram a quebrar este consenso e a enxergar em Côrach, um líder que, de fato, queria reformar a estrutura de poder dos israelitas no deserto. Para eles, nenhum dos argumentos apresentados para a culpa de Côrach se justifica pelo texto bíblico e não passam de tentativas de apologia, de justificar uma atitude Divina injustificável.

Neste jogo das narrativas, cada lado tem abordado a questão com a conclusão pré-definida e a argumentação, não como uma busca sincera de para onde apontam os melhores argumentos, mas como um exercício retórico de tentar criar uma leitura da realidade que embase sua posição. Esta conduta não é recente — em Pirkei Avot, a disputa de Côrach é apresentada como exemplo paradigmático de uma disputa que não tem objetivos puros, enquanto a disputa entre Hilel e Shamai é apresentada como seu contraponto. A análise histórica, no entanto, nos mostra que a visão de romântica de um debate sempre respeitoso entre Hilel e Shamai não bate com a realidade e é uma visão rabínica posterior, com o objetivo de suavizar a violência que algumas vezes caracterizou o embate entre estas duas escolas de pensamento judaico. Da mesma forma, quem sabe, a disputa representada por Côrach pode não ter sido assim tão ruim?!

Quando pré-definimos nossa posição e só buscamos os argumentos que a confirmam, corremos o sério risco de sermos enganados por nossa própria sagacidade e nos convencermos de que Fulgêncio Batista era o pior vilão da história latino-americana ou que o a Inglaterra manipulou as pobres nações aliadas para atingir seus objetivos sórdidos.

O teólogo russo Vladimir Lossky certa vez disse “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia do que a clareza superficial às custas da análise profunda.” Ainda que sua área não seja a teologia, a análise de  Luiz Octavio Lima para a Guerra do Paraguai demonstra que o mesmo conceito se aplica a outras áreas do conhecimento e da vida.

Neste ano de eleições e de narrativas polarizadas, em que cada lado nos apresenta sua versão simples, clara e tendenciosa da realidade, não aceitemos a clareza representada pelas análises fáceis e superficiais só pela preguiça de investigarmos mais e entendermos a complexidade e importância dos assuntos à nossa frente. Que tenhamos a coragem de contestar até o senso comum para tomarmos decisões das quais nos orgulhemos e que possamos continuar nos orgulhando mesmo quando a revisitarmos depois de conhecermos suas consequências.

Shabat Shalom,


[1] Num. 16:3
[2] baMidbar Rabá 18:10
[3] Speaking Torah, vol. 2, p. 33


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