sexta-feira, 9 de abril de 2021

Dvar Torá: Três Desafios ao Legado da Shoá (CIP)


No fim de semana passado eu assisti o novo filme do Tom Hanks no Netflix, News of the World [1]. Sem dar muito spoiler, é a história de um veterano da Guerra Civil americana que viaja pelas cidades dos Texas lendo e interpretando as notícias dos jornais para pessoas que não sabiam ler ou que não tinham acesso a jornais. De alguma forma, é um precursor do William Bonner e da Renata Vasconcelos.

Em uma de suas viagens, ele encontra uma menina abandonada à beira da estrada. Seus documentos contam que ela havia sido sequestrada por uma tribo indígena e tinha crescido na tribo — a história dela é a história de dois massacres: o massacre dos seus pais pela tribo indígena e o massacre da tribo pelo exército branco. É nesta condição que ela é encontrada à beira da estrada. Em determinado ponto da história a menina e o leitor de notícias visitam uma velha casa abandonada, a impressão é que o lugar em que sua família foi morta. Ao deixar a casa para trás, o capitão Kidd, o personagem de Tom Hanks, diz para Johanna, a menina órfã: “Eu quero te afastar de toda esta dor e toda esta matança. Te deixar livre disso. Reviver não é bom. Você precisa esquecer isso, seguir em frente. Siga esta linha sem olhar para trás.” Johanna, balança a cabeça e lhe responde: “não. Para seguir em frente, você deve primeiro se lembrar.”

Yehuda Kurtzer, presidente do Instituto Shalom Hartman na América da Norte e autor do livro “Shuva, o futuro do passado judaico”, escreveu na introdução desta sua obra que “o calendário judaico apresenta uma ‘temporada da memória’ longa e fortemente ritualizada, que começa para valer no Shabat Zakhor, o Shabat do “Lembrar" imediatamente antes de Purim. Exatamente um mês depois, chega Pessach e suas encenações, cumprindo nossa obrigação de nos ver vivendo um momento-chave no passado judaico. Entre Pessach e Shavuot, marcamos uma espécie de período de luto prolongado para lembrar os alunos mortos de Rabi Akiva, um período que no passado mais recente foi pontuado com Yom HaShoah, Dia da Lembrança do Holocausto e Yom HaZikaron, o dia do memorial de Israel para seus soldados caídos. Depois de Shavuot, que marca o aniversário da entrega da Torá, o período da memória se esvai.”

Nós estamos no meio deste período da memória. Ontem, 5ª feira, foi Iom haShoá, o dia em que ritualmente lembramos dos 6 milhões de vidas ceifadas antes da hora pelo simples fato de serem judias.

Pouco mais de setenta e cinco anos do final de Segunda Guerra e da revelação total dos crimes praticados pelos nazistas, quando o número de sobreviventes ainda em vida diminui a cada dia, a memória da Shoá parece também se esvair. 

Eu quero falar hoje sobre três ameaças a que o legado da Shoá seja plenamente mantido.

A primeira ameaça são os negadores do Holocausto. Apoiados em teorias antissemitas e da conspiração e em jogos políticos sujos, há quem negue que a estado nazista e seus aliados tenham desenvolvido um sistema que primava pela eficiência no esforço de matar inocentes. Parte deste esforço vêm de pessoas que duvidam que a Terra seja redonda, que a humanidade tenha chegado à Lua ou que acham que as vacinas contra Covid sejam, na verdade, uma forma de nos controlar remotamente. É resultado de mentiras repetidas tantas vezes que as pessoas começam a duvidar se elas não têm um fundo de verdade. É resultado de uma visão de mundo alimentada e manipulada por muitas fontes que imagina uma realidade de dominação e abuso de poder em que poucos, em geral judeus, controlam todos os recursos. Incentivando esta narrativa, alguns estados como o Irã, em disputa direta com o Estado de Israel, que acreditam que seu conflito será resolvido ou minimizado se os judeus forem hostilizados em todo o mundo. Contra essa ameaça, precisamos continuar insistindo em educação e em rebater cada uma das mentiras — além de trabalhar com as empresas de mídia e, em particular com as empresas de mídia social, para impedir que elas sejam replicadas.

A segunda ameaça à memória da Shoá é a sua banalização.  Comparações pouco efetivas em que chamar alguém de nazista equivale a usar um palavrão, sem que haja qualquer elemento que justifique a analogia. Soldados israelenses retirando colonos judeus de assentamentos na Faixa de Gaza foram comparados a soldados nazistas por aqueles que se recusavam a sair; políticos que decretaram toques de recolher durante a atual pandemia de Covid pensando no bem-estar da população por quem eram responsáveis foram comparados a nazistas. Pode-se debater se a decisão de unilateralmente retirar os assentamentos de Gaza ou decretar toques de recolher eram as decisões políticas corretas em cada um destes contextos, mas eu não consigo entender de que forma a acusação de nazista está relacionada às atitudes que são criticadas. Quando a comparação com o Nazismo ou com a Shoá passa a valer para tudo, ela passa a não ter mais relevância alguma. Ela perde seu poder de persuasão e banaliza o genocídio e o sofrimento profundo que estão associados a este período histórico.

A terceira ameaça não vem da negação ou da banalização da memória da Shoá, mas da sua sacralização. Analogias e metáforas funcionam porque descrevem a realidade apelando à nossa capacidade de estabelecer relações que vão além da identidade perfeita. Quando, frente a um mal-estar emocional, eu digo que estou sentindo um nó no estômago, é óbvio que meu estômago não está literalmente contorcido em formato de nó. Quando, em uma analogia dos anos 80, diziam que São Paulo era a Bélgica do Brasil, não era porque aqui falássemos francês e alemão. O terceiro risco à memória da Shoá é o de não permitirmos que as lições que aprendemos deste episódio terrível nos sirvam também em outros momentos históricos — mesmo que as soluções genocidas não venha de um Adolf Hitler, mesmo que as vítimas não sejam mais os judeus, mesmo que técnica de extermínio não envolva câmaras de gás e fornos crematórios. Ou seja, mesmo que não exista uma identidade perfeita entre a realidade contemporânea e o regime nazista dos anos 30 e 40, precisamos ser capazes de adotar paralelos entre estes períodos históricos. 

Vários são os testemunhos que dizem que mais que o ódio nazista, o que contribuiu para o genocídio foi o silêncio e a passividade do resto da população. Será que podemos usar esta lição e aplicá-la quando a vida de grupos inteiros estão em risco hoje em dia? Será que podemos educar as novas gerações dentro de princípios que discriminar baseado em crenças religiosas ou posições políticas não nos leva a construir uma sociedade inclusiva? Será que podemos defender o pluralismo de ideias como uma excelente ferramenta, talvez a única, para que sociedades e regimes políticos reconheçam suas mazelas e adotem ações corretivas? Será que podemos perceber que desumanizar aqueles de quem discordamos, chamando-os de vermes, ratos ou comparando-os ao vírus nos aproxima perigosamente da conduta da propaganda nazista e abre a porta para que alguém proponha uma solução fácil e violenta para nos livrarmos deste tipo de gente?! 

Ontem, lembramos das vidas de 6 milhões de seres humanos judeus que tiveram  sua humanidade negada — o legado da Shoá precisa ser o de lutar pela humanidade de todos, o tempo todo — sem negar sua veracidade histórica, sem banalizar sua memória e sem congelá-la no tempo. Nunca o mundo implorou tanto para que seja assim.

Shabat Shalom.


[2] Yehuda Kurtzer, “Shuva: the Future of the Jewish Past”, Brandeis University Press, 2012, location 172.

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