sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Dvar Torá: E quando a Torá determina um genocídio? (CIP)


A modernidade, entre muitas outras características, tem nos convidado a repensar as categorias estanques através das quais imaginávamos o mundo. Doce é doce, salgado é salgado — até alguém ter a ideia de colocar mexerica na salada e sal no caramelo. Calça é roupa de homem, rosa é cor de mulher, não se deixa que o espaço do trabalho e ambiente familiar se misturem… cada um destes dogmas sobre onde um conceito terminava e outro começava foi sendo questionado até ruir por se basear uma lógica que não funcionava mais.

Duas outras situações separadas que nem sempre funcionam assim: o comentário da parashá que sai no Congregar, a publicação semanal da CIP na qual tentamos que o autor do comentário não seja o mesmo rabino que fará a prédica aqui da bimá. Em geral, são duas leituras completamente diferentes da mesma passagem da Torá. Eu lembro quando eu comecei a trabalhar na CIP que eu gostava de perguntar aos meus colegas sobre o que eles iam escrever para garantir que não falássemos do mesmo assunto. Hoje, no entanto, minha prédica está em completo diálogo com o comentário escrito pela rabina Tati [1], quase como se fosse uma continuação dela. Se você ainda não a leu, eu recomendo fortemente que o faça!

A segunda mistura de categorias sobre a qual quero falar é dos gêneros cinematográficos. Talvez ainda haja quem ache que drama é drama, comédia é comédia, mas desde o início do cinema é possível encontrar obras que completamente borram estes limites. Um destes filmes é a comédia alemã “Ele está de volta”, de 2015. No filme, Adolf Hitler aparece vivo na Berlin do século 21. O que começa como uma comédia de erros trabalhando a batida fórmula de alguém desacostumado à sociedade contemporânea tendo de se acostumar com práticas e hábitos que não conhecia, acaba, sem abandonar a linguagem cômica, transformando-se em um potente alerta sobre as formas como nossas sociedades ressuscitaram conceitos e valores que considerávamos enterrados para sempre — o ódio ao diferente, a  veneração de líderes autoritários, o questionamento da democracia, a negação da dignidade de todo ser humano. Hitler faz sucesso na sua volta, como não imaginávamos possível depois de termos nos darmos conta do terror que ele liderou na 2ª Guerra Mundial

Adriana Dias é considerada a maior especialista em neonazismo no Brasil. De acordo com ela, vivemos um momento parecido aos anos 20 do século passado, com o reaparecimento de células totalitárias que usam o medo como ferramenta básica de atuação. O motivo para esse ressurgimento seria não termos lidado completamente com as questões do racismo, do capacitismo, do machismo e da homofobia, que permanecem polêmicas [2]. De acordo com Adriana, existem no Brasil 530 células neonazistas já identificadas, um aumento de 58% em relação ao levantamento que ela mesma fez dois anos atrás e de 607% em relação a 2015 [3]. Com esses dados em mente, fica difícil achar engraçada a comédia sobre a volta de Hitler.

Parte do que torna a ideia destes grupos totalitários é a possibilidade de atribuir a outro grupo, a um bode expiatório, a responsabilidade de todo o mal presente nas nossas vidas. A culpa é dos imigrantes, das elites, dos petistas esquerdopatas ou dos bolsonaristas fascistóides, a culpa é dos gays, dos negros, dos judeus, dos indígenas, ou de qualquer outro grupo que não inclua o interlocutor e que, de preferência, não consiga se defender do ataque. Na fala de um neonazista, qualquer um desses grupos representa a personalização do mal absoluto, e sua eliminação é o caminho mais curto para resolver nossos problemas. No nazismo da Alemanha da década de 1930 e 1940, o mal absoluto era representado pelos judeus, pelos comunistas, pelas Testemunhas de Jeová, pelos portadores de deficiência. No neonazismo espalhado por várias partes do mundo, muitos destes grupos continuam sendo o alvo do ódio, mas novas vítimas foram também encontradas.

Eu adoraria poder dizer que nada está mais distante da tradição judaica do que a busca de um povo que sirva de bode expiatório, especialmente tendo em vista mais de 2.000 anos de perseguições nas quais nós fomos vistos como a raiz de todo mal, mas a verdade é que a nossa tradição também apresenta esta perspectiva. Na Torá, a representação do mal absoluto são os Amalequitas. No livro de Sh’mot, quando os hebreus tinham recém sido libertados de Mitsrayim e estavam cansados e abatidos pro aqueles primeiros momentos da fuga, Amalek atacou o povo pela sua retaguarda, onde estavam as pessoas mais debilitadas. A mesma passagem em Sh’mot diz que Deus estará em guerra com Amalek pela eternidade [4].

No finalzinho da parashá desta semana, o texto diz: 
Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito - como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, eles te surpreenderam na marcha, quando você estava faminto e cansado, e mataram todos os retardatários em sua retaguarda. Portanto, quando ה׳ teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que ה׳ teu Deus te der por herança, você apagará a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça! [5]
O conceito de apagar a memória de Amalek é levado à prática na instrução de Deus ao rei Shaul — matar a todos, homens, mulheres, crianças e seus animais. O rei hebreu poupou Agag, o rei de Amalek e seus melhores animais, pelo qual foi punido com a perda do trono [6]. Na tradição rabínica, Amalek continua vivo e deu origem aos maiores inimigos do povo judeu em cada geração: de Hamán, o vilão da festa de Purim, a Hitler. Por isso, há três mitsvot associadas ao povo de Amalek:

1- Se lembrar do que Amalek nos faz na saída de Mitsrayim;
2- Não esquecer o que Amalek nos fez;
3- Erradicar a descendência de Amalek do mundo.

Segundo Guili Kugler, professora da Universidade de Sydney, há basicamente duas abordagens na interpretação judaica para lidar com a instrução para eliminar Amalek: a realista e a simbólica. A primeira busca identificar motivos que justifiquem a eliminação de todo um povo; a segunda, “vê a tradição como uma alegoria da luta entre o bem e o mal dentro do reino divino, ou, alternativamente, como um retrato figurativo da luta dentro da alma humana, principalmente de uma pessoa judia.” A professora Kugler continua: “tanto a abordagem realista quanto a simbólica compartilham o esforço de reconciliar a incômoda instrução de extermínio com o credo de que os mandamentos divinos representam o bem e o certo e podem, portanto, ser compreendidos e seguidos pelos humanos. Ao buscar a mensagem de que os desejos de Deus não são arbitrários e devem ser justificáveis, as interpretações mantêm a noção da existência de uma entidade do mal que deve ser destruída, consequentemente justificando o homicídio das gerações atuais e futuras.” [7]

No seu comentário desta parashá, a rabina Tati afirma que “o estudo da Torá e o cumprimento da mesma pedem de nós não apenas atenção e dedicação, mas também disposição para enfrentarmos textos que nos desafiam, que não são simples de ler e menos ainda de serem botados em prática. Como ensinaram nossos sábios, “derech eretz kadmá laTorá”, "o caminho do bom precede a Torá.” O mesmo conceito se aplica aqui….

No que tange à memória de Amalek, é fundamental que rejeitemos a representação do mal em um único povo, seja ela metafórica ou literal. Infelizmente, conhecemos bem demais e de perto demais as consequências de associações deste tipo e, por isso, é nosso dever histórico garantir que erros assim nunca mais aconteçam. 

Frente ao crescimento assustador do neonazismo e de outros movimentos totalitários e excludentes, é nossa responsabilidade afirmarmos que cada um de nós, todos nós, todos os outros, fomos e foram criados à imagem de Deus, à imagem do Deus que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal [8]. Todos temos dentro de nós a capacidade para o bem e para o mal, que saibamos usar nossa luz interior para iluminar o mundo e não para buscar bodes expiatórios.

Shabat Shalom,



[4] Ex. 17:8-16
[5] Deut. 25:17-19
[6]  I Sam. 15
[7] Gili Kugler, Metaphysical Hatred and Sacred Genocide: The Questionable Role of Amalek in Biblical Literature, p. 4.
[8] Isa 45:7

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