sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Dvar Torá: O acolhimento e a exclusão: nas ruas e dentro de casa (CIP)

O próximo domingo, dia 24, será Mitzvah Day Brasil! Uma iniciativa idealizada e coordenada a partir de São Paulo, com ramificações em várias outras partes do país, que tem o potencial de ser transformador para a relação das comunidades judaicas com suas cidades e com a sociedade não-judaica e vice-versa. A partir de um conceito desenvolvido nos Estados Unidos e ampliado no Reino Unido, um grupo de voluntárias da CIP, capitaneados pelas nossas queridas Ruth Bohm, Patricia Strebinger e Carla Rosset, trouxe a ideia pro Brasil: um dia  no qual todo mundo doe um pouco do seu tempo e desenvolva projetos para o bem comum.

Assim como um monte de outras comunidades, a CIP está desenvolvendo várias frentes para o Mitsvá Day - vamos ter projetos em Campos do Jordão, em um restaurante do Bom Prato em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado. No Ensino, o programa de preparação para o Bar e Bat-Mitsvá irá se voluntariar com a ONG Anjos da Cidade, sobre a qual já ouvimos um bocado nas últimas semanas. Pra quem perdeu, de forma reduzida, os Anjos da Cidade distribuem dignidade a moradores de rua usando a comida como pretexto. Se abaixando e sentando na calçada, dando mão e puxando pra um abraço, reconhecendo as pessoas pelos seus nomes e parando pra escutar suas histórias, a transformação empreendida pelos voluntários dos Anjos da Cidade vai muito além das 350 refeições que eles distribuem todas as 3as feiras à noite. Para o Mitzvah Day, os Anjos da Cidade estão preparando um café da manhã especial para um mínimo de 350 moradores de rua na Praça Olavo Bilac em Santa Cecilia. Além da comida — incluindo cookies que nossos alunos vão preparar na próxima semana —, vai ter também palhaço, cabeleireiro, músicos, e nossos alunos do Ensino contando histórias para adultos e crianças.

Em preparação para nossa participação no Mitzvah Day, na última terça feira, um grupo de professores do Ensino se voluntariou para a ação dos Anjos, o rabino Michel e eu entre eles. Cada encontro ao longo da noite foi profundamente transformador, mas eu quero falar de um deles em especial. Esta mulher, que mora em um beco na Barra Funda, parcialmente destruído para a construção de um novo prédio, viu todos os outros moradores daquela quadra expulsos no processo. A sua barraca, no entanto, ficou lá. Com a sua doçura, ela nos contou que fez amizade com o dono da construtora e que, no final, ele acabou achando que a presença da barraca ajudaria a dar segurança à construção. Ela nos contou do livro que está lendo, orgulhosa de já estar na página 70. Ela me reconheceu de outra visita, há algumas semanas, daquela vez com o rabino Ruben. Finalmente, ela nos convidou para visitar sua barraca e nós, sem saber muito bem como responder, fomos lá, acanhados, sem querer invadir, mas percebendo que aceitar o seu convite era participar do processo de reconhecer sua humanidade, perfurar a casca do rótulo “moradora de rua” e encontrar a alma daquela pessoa, tão humana quanto eu ou cada um de vocês.

Tenho pensado muito nisso, no acolhimento e como ele humaniza os dois lados, aquele que acolhe e aquele que é acolhido. Como, ao acendermos ao encontro Eu-Tu de Buber, reconhecemos a nossa própria humanidade e também a da pessoa com quem nos relacionamos. 

Quem escolhemos receber e quem não; como recebemos e como marcamos as diferenças definem, em certa medida, quem somos, como nos apresentamos ao mundo e como permitimos que o mundo se relacione conosco.

Na parashá desta semana, temos alguns exemplos do acolher e do não acolher. Logo no começo da parashá, três homens visitam Avraham, que sai para recebê-los e lhes implora para que parem e sejam recepcionados por ele. Lavam seus pés, têm sombra para se refrescar e descansar da viagem. Juntos, Avraham e Sará preparam e lhes trazem comida: tortas, carne e outras iguarias. Tanta atenção e cuidado destacavam a dignidade, tanto das visitas quanto dos anfitriões. 

Ao partirem, tanto os três homens quanto Avraham e Sará estavam transformados pelo encontro. E as visitas seguiram seu caminho em direção a Sodoma. Lá, Lot, o sobrinho de Avraham, os acolheu em sua casa, também implorando que eles viessem a sua casa, e lhes ofereceu um banquete de matzot. Por outro lado, a população de Sodoma rodeou a casa e exigiu que Lot lhes entregasse os forasteiros.

O motivo pra exigência dos moradores de Sodoma não é claro mas muitos midrashim foram escritos para preencher esta lacuna. Um tema comum em vários deles é a perspectiva de que Sodoma era um lugar de muitas riquezas, que acreditava que a chegada de estrangeiros diminuiria a parcela de cada um dos moradores. Uma passagem de Pirkei Avot diz que a lógica que imperava para os moradores de Sodoma era “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”, que reflete também o temperamento médio das pessoas. 

Nesta segunda-feira, no Grupo de Estudos da Parashá, nos perguntamos: se esta é a atitude média das pessoas, porque ela é vista com tão maus olhos com relação a Sodoma? Nossa conclusão foi que a atitude do “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”, quando levada ao extremo, não permite o acolhimento e o reconhecimento da humanidade do outro. O que nos separa, o que nos diferencia, as diferenças entre o que temos, se tornam intransponíveis. Os habitantes de Sodoma estavam tão preocupados com o que era deles e com o que era dos outros que não eram mais capazes de reconhecer a humanidade de quem os visitava. 

O misticismo judaico fala de perspectiva de que tudo o que conhecemos é, na verdade, um só, tudo é Deus. Você, eu, a bimá, o prédio, os moradores de rua, a rainha Elizabeth, tudo somos parte de Deus e, deste forma, somos todos Um. Onde há espaço para esta percepção, em uma visão de mundo que adota radicalmente “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”?!

Avraham, nosso patriarca, foi a primeira pessoa chamada de “עִבְרִי”, “hebreu”. Um midrash pergunta qual o significado desta palavra; uma das respostas relaciona a palavra “עִבְרִי”, “hebreu” com a palavra “עֵבֶר”, “margem”, dizendo “כל העולם כולו מעבר אחד והוא מעבר אחד”, “todo o mundo está em uma margem e ele está na outra”. De um lado, o midrash representa a personalidade do patriarca Avraham, que tinha a chutspá, a coragem, de discordar do senso comum, mesmo que isso o colocasse sozinho do outro lado do rio. De outro lado, o midrash representa também muitas experiências históricas dos judeus, impossibilitados de fazerem parte plenamente das sociedades em que viviam, isolados na outra margem do rio — não por vontade própria, mas por isolamento.

A professora Nádia Poleto, da escola estadual Branca do Nascimento, em Curitiba, escreveu um poema para descrever uma interação que teve com um aluno seu, uma criança com transtorno do espectro autista, e a sensação de falta de pertencimento que ele tinha:

Pertencer 
Limite de rio é margem
Pertenço à margem,
desejo o rio.
Nele,
sou só sombra.
Com o tempo,
a água leve, que contona a pedra,
desenha seu curso
há riscos,
me arrisco,
me atiro,
suspiro,
a água leve me contorna.Sigo o curso
pertenço ao rio.Agora, contemplo a margem,
não há limites –
sorrio,
pertenço,
sou margem, sou rio. [1]

Quem está na nossa margem, querendo pular e fazer parte do rio? Quem são os grupos para quem nossa atitude se parece com “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”?

Somos produtos do nosso contexto e, por isso, refletimos os preconceitos da nossa época, mas, graças a Deus, o mundo está mudando e muitos preconceitos estão caindo. A rabina Angela Buchdahl, da Central Synagogue em Nova York, nasceu na Coréia do Sul, de uma mãe coreana e um pai americano — ela fala frequentemente de como ela não se “parece judia” e de como o contato com ela força as pessoas a reverem seus estereótipos e preconceitos. Como será que nossas percepções de quem “se parece judeu” estabelece limites e força alguns de nós a ficarem na margem quando eles gostariam de estar brincando na água? 

Na semana passada, fui convidado para um jantar de shabat de um grupo de judeus LGBT. A pessoa que me convidou achou que seria interessante para um rabino escutar as dimensões em que esta parcela do mundo judaico se sente excluída da nossa comunidade organizada. No final, o convite não se confirmou; talvez um sinal de que as mágoas geradas pela exclusão são tão profundas que a presença de alguém que simboliza o “establishment judaico” ainda não seja bem vinda. Minha mãe, que teve uma infância muito pobre e que escutou um comentário preconceituoso sobre a sua falta de dinheiro expresso pelo seu professor na sinagoga, ainda guarda esta mágoa com ela. Quantos aqui também guardam mágoas semelhantes? 

Quem sabe, com o tempo, com esforço e intencionalidade para realmente sermos plenamente inclusivos e abrirmos mão dos estereótipos que ainda carregamos sobre quem faz parte da nossa comunidade e quem não faz, consigamos curar estas mágoas, derrubar a perspectiva que alguns têm de que não são bem vindos e acolher todos que queiram se conectar com sua espiritualidade e encontrar sua comunidade aqui na CIP.

Vai dar trabalho, vai exigir que repensemos muito do que fazemos hoje, vai demandar que nos esforcemos para falar com gente que já vimos muitas vezes mas com quem nunca conversamos, mas este é o exemplo que recebemos de Avraham, é isto que a história de Sodoma, como exemplo negativo, nos instrui a buscar.

Que tal começar já no kidush desta noite?

Shabat Shalom!

[1] https://podcasts.apple.com/us/podcast/folha-na-sala/id1481109207?i=1000453588703 a partir de 19:27


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