sexta-feira, 2 de julho de 2021

Dvar Torá: Paz e justiça -- desejos e medos (CIP)


Quem participa do minián diário online da CIP, já deve ter notado que tem uma parte do serviço da qual eu gosto muito. Vem logo do Barechú, uma benção que agradece Deus, יוצר אור ובורא חושך, עושה שלוֹם ובורא את הכל, “que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria tudo”. A benção busca inspiração do Livro de Isaías na qual a tensão entre opostos fica ainda mais evidente. Lá, Deus se auto define como “aquele que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal.” [1]

Luz, escuridão; paz, mal - aparentemente, categorias estanques e bem definidas que nos ajudariam a conduzir uma vida de significado. A parashá desta semana, Pinchás, nos convida a reconsiderar esta perspectiva. Logo no comecinho da parashá, o texto dá continuidade a uma história que tinha começado na parashá da semana passada, Balak. Deus manifesta seu desconforto com o fato de homens israelitas estarem se envolvendo com mulheres moabitas e adotando suas práticas religiosas. Pinchás, um sobrinho-neto de Moshé, vê um homem israelita trazer uma mulher midianita ao acampamento e assassina os dois. Como resultado deste ato de violência, Pinchás é recompensado por Deus com um ברית–שלום, um “pacto de paz.” [2]

Se paz é, como indica Deus no verso de Isaías, o oposto de “mal”, qual paz poderia resultar de um ato de violência?

Às vezes, usamos tanto algumas palavras que paramos de nos preocupar com o que elas de fato significam. O que será que é paz? Ou, em um contexto judaico, o que será que é שלום? No dicionário, aparecem 4 significados para o verbete:
  • שַׁלְוָה, מְנוּחָה, שֶׁקֶט, “calma, descanso, silêncio”;
  • מַצָּב לְלֹא מִלְחָמָה, יַחֲסֵי יְדִידוּת, “estado sem gerras, relações de amizade”;
  • מַצָּב, מַעֲמָד, “estado, condição”;
  • נֻסַּח בְּרָכָה מְקֻבָּל בִּפְגִישַׁת בְּנֵי אָדָם, “fórmula de saudação comum quando duas pessoas se encontram”
O que nenhuma destas quatro definições indicam é a relação morfológica entre שלום e שלם, ou entre paz e completo. Se pensarmos um pouco, nos daremos conta de que meia-paz é o mesmo que paz nenhuma. O Rappa, uma banda de reggae brasileiro expressou isso especialmente bem na sua música “Minha Alma”, de 1999:

(…) paz sem voz não é paz é medo
às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz 
qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz [3]

Para quem, hoje, no Brasil, paz é uma realidade? De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, em 2019, 6375 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais [4], quase 80% delas negras. Isso quer dizer que quase 14 negros são mortos pela polícia por dia no Brasil. Dá pra falar em Paz?! [4]

Em 2020, 175 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, o que nos coloca na vergonhosa posição de líderes no mundo no assassinato de pessoas transsexuais [5]. Os povos originários têm tido seus direitos atacados, suas reservas invadidas e até o marco legal que os protege questionado nos últimos anos. Quem tem paz no Brasil de hoje?

Nas manifestações que se seguiram ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, um grito de guerra antigo e comum dizia “No Justice, no Peace”, “Sem Justiça, não haverá Paz.” [6]

Diferentemente de Luz e Escuridão, Paz e Mal, Justiça e Paz não parecem termos que se contradizem, como este slogan parece indicar — mas há uma tensão. Muitas vezes, nossa “Paz” é importunada quando segmentos pra quem essa ideia é um sonho distante nos sacodem da dormência em suas demandas por “Justiça”. “Paz”, de alguma forma, parece ser um privilégio de quem tem assegurada a “Justiça” ou de quem é beneficiado pela “Injustiça”. Uma outra música popular, desta vez de Mooki, rapper isralense, מדברים על שלום, "Falam sobre Paz", de 2001, trata dessas questões:

Todos falam sobre a paz, mas ninguém fala sobre a justiça
Para um é o paraíso e para o outro o inferno
Quantos dedos estão sobre o gatilho?
Então ficamos sozinhos, falamos com a parede – não há com quem falar
Se ao menos entendêssemos que todos somos um – veremos tudo se juntar [7]

Nossa parashá também lida com questões de Justiça, ou da falta dela. Tselofchad, um membro da tribo de Menashé, morre, deixando cinco filhas e nenhum filho. Pelas regras vigentes, apenas filhos homens recebiam herança. As filhas de Tselofchad pediram aos líderes israelitas, Moshé entre eles, que reconsiderassem a questão, porque isso implicaria que a família ficaria sem suas terras. Deus escuta seus apelos e decide que seu pedido é justo e que, no caso da morte de um homem sem herdeiros homens, as filhas receberiam a herança.

Em geral, apontamos para a solução desta questão como exemplo de flexibilidade da legislação bíblica e da possibilidade de sua transformação. E, mesmo assim, a solução parece incompleta. Assim como não existe meia paz, não pode existir meia justiça — e sistemas baseados em privilégios a certos grupos não podem ter nem paz, nem justiça. Um sistema que privilegie os filhos, no qual as mulheres só tenham direito à herança quando não tiverem irmãos homens nunca pode ser considerado justo. E em um mundo em que a justiça de alguns está ameaçada, a paz de todos está em risco.

Nossa parashá dá tons e complexidade a temas que muitas vezes tratamos como óbvios. Paz não é óbvia, nem tampouco justiça, especialmente quando vivemos em realidades de desigualdade extrema, na qual o sexo, a cor da pele ou o CEP da residência têm pesos desproporcionais não só sobre como nascemos, mas também sobre a vida e a morte que teremos. A paz que você quer no seu bairro pode ser inconcebível em outra parte da cidade; a justiça da periferia inviável para quem vive no centro.

Como explicar que Pinchás tenha recebido o pacto de paz e que a solução determinada para as filhas de Tselofchad tenha sido considerada justa? 

Em um artigo de uma professora querida, a rabina Rachel Adler, ela diz que a Torá foi escrita com fogo preto sobre fogo branco, mas que o documento que temos hoje é escrito com tinta sobre a pele de animais mortos.  E, mesmo assim, como um milagre, o fogo divino se faz presente nos nossos rolos de Torá. Em nossas leituras, continuamos buscando — nem sempre com sucesso — estas fagulhas divinas no texto, insights que nos ajudem a iluminar nossas vidas. [8]

Da minha parte, eu acho que a Torá nos provoca para que debatamos e continuemos recebendo o prêmio — para que inquiramos e busquemos  construir sociedades em que, de fato, tenhamos paz e justiça para todos — ou nas palavras do salmista, até o dia em que a bondade e a verdade se encontrem; que a justiça e a paz se beijem. [9]

Que assim seja, ainda nos nossos dias! Shabat Shalom!



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