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quinta-feira, 18 de junho de 2020

O futuro que queremos construir hoje

Imagine que você está de volta a junho de 2019. No meio da limpeza da sua área de serviço encontra uma máquina do tempo e resolve usá-la para ver como o Brasil estará dali a um ano. Chega a este junho de 2020, encontra um país com quase cinquenta mil mortos por uma doença da qual você nunca tinha ouvido falar, a economia completamente desestruturada, as instituições políticas em sua maior crise em quatro décadas, conflitos raciais em várias partes do mundo. A sua máquina do tempo começa a apitar, indicando que está na hora de voltar para 2019 e você corre para não ficar nesse cenário distópico; quando percebe, está de volta à área de serviço da sua casa. 

O que você faria no ano passado se soubesse como estariam as nossas vidas hoje? Você mudaria sua conduta sanitária e passaria a usar álcool gel, luvas e máscaras antes que a pandemia chegasse? Você contactaria as autoridades para que as medidas cabíveis - a nível local ou nacional - fossem tomadas antes da chegada do coronavírus? Simplesmente aceitaria que não havia nada que pudesse ser feito para evitar a crise, alugaria uma casa no interior e tentaria manter a sua família segura?

Na parashá desta semana, Shlách Lechá, Moshé envia doze líderes das tribos para investigar a terra de Israel, na qual os hebreus esperavam entrar em breve, para identificar o que os aguardava: se as pessoas que lá moravam eram fortes ou fracas, se a terra era boa ou ruim, se as cidades eram ou não fortificadas, se o solo era fértil ou não, se nela haviam ou não árvores. Esses enviados investigaram a terra por quarenta dias e, ao voltarem, apresentaram um relato desanimador: a terra era boa e dela fluía leite e mel, mas o povo que lá vivia era muito forte e as cidades fortificadas. Não havia chance de que os hebreus conseguissem conquistar aquele território. Dos doze enviados, apenas dois apresentaram uma narrativa distinta, argumentando que os hebreus, tendo Deus ao seu lado, certamente teriam sucesso na conquista da terra.

Doze enviados, que tiveram a mesma experiência em sua visita à terra de Israel, mas reações radicalmente diferentes. De um lado, frente aos desafios e às incertezas, dez deles decidiram nem mesmo tentar. Aceitaram que, dada a derrota inevitável, o melhor a fazer era lamentar e, quem sabe, convencer o povo a retornar à servidão em Mitsrayim, a terra das águas estreitas. Apenas Iehoshua e Caleb foram capazes de, apesar de enxergar as dificuldades, acreditar também no potencial de superá-las. Por ter dado ouvido aos dez enviados com relatos pessimistas, o povo foi condenado a passar quarenta anos vagando pelo deserto, até que uma nova geração de hebreus estivesse disposta a enfrentar os desafios e entrar na terra de Israel.

Se você soubesse ontem sobre os desafios de hoje, o que faria diferente? Esse exercício, pode parecer fútil quando olhamos só para o passado, afinal de contas não fizemos essas coisas diferentes e não temos como reescrever o passado, nem escapar da situação em que estamos vivendo (a menos que você tenha uma máquina do tempo escondida na sua área de serviço!). Mas se pensarmos em como respondemos aos desafios que já conseguimos enxergar (ou que enfrentamos no presente), podemos alterar o futuro. 

Se formos como os dez enviados que retornaram da Terra Prometida com relatos pessimistas, aceitarmos que nossas ações não são capazes de transformar a situação, estaremos fadados à nossa versão dos quarenta anos no deserto.

Se por outro lado, seguirmos os exemplos de Iehoshua e Caleb, reconhecermos as dificuldades e procurarmos enfrentá-las de verdade, talvez consigamos ainda estancar o avanço da pandemia e saiamos dessa crise com cidades mais humanas e menos desiguais, com a consciência de que todos precisamos trabalhar para criar justiça racial no Brasil, com uma democracia mais estável e respeitosa das suas instituições, com um povo que se vê valorizado em seu direito à vida e à saúde.

Sabendo o que você sabe hoje, qual amanhã você vai construir?

Shabat Shalom!

Ticún da Virada de Shavuot 2020: Modelos judaicos para os desafios do dia

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dvar Torá: Muito além dos Números (CIP)

Há uns dois meses, eu li com os meus filhos “A Revolução dos Bichos”, o clássico de George Orwell sobre uma fazenda na qual os animais tomam o poder com a promessa de criar uma nova sociedade igualitária mas que rapidamente reproduz as mesmas injustiças que existiam quando eram os humanos que tomavam conta. O livro é claramente uma crítica ao regime totalitário da União Soviética mas o tempo decorrido desde a sua primeira publicação em 1945 nos permite enxergar reflexos da situação descrita lá em muitos regimes fora da órbita socialista. Bola de Neve, por exemplo, é um dos líderes da revolução dos bichos e um dos porcos do gabinete que comanda a fazenda no novo regime. Em algum momento, no entanto, ele é expurgado, some da fazenda e passa a ser associado a tudo de ruim que acontece com a comunidade. O que era uma referência no texto original ao expurgo de Trotsky parece descrever cenários da realidade que vivemos hoje.

Entusiasmado pela forma como meus filhos gostaram do livro, resolvi também resgatar uma leitura antiga de George Orwell. Há uns 25 anos, eu tinha lido “1984” e o livro tinha me deixado profundamente marcado com a realidade distópica, também em um regime totalitário, baseado não apenas na realidade soviética mas também na Alemanha nazista. Uma frase tinha ficado gravada nestes anos todos desde a primeira leitura e a re-encontrei agora nesta segunda leitura. “A Liberdade é a liberdade de afirmar que dois mais dois é igual a quatro.” A frase é usada em referência à possibilidade de que o Estado totalitário do livro afirmasse que “dois mais dois é cinco” e que as pessoas, cegas pela crença no líder, se convencessem de que essa é a verdade.

Minha primeira escolha de carreira universitária foi Ciência da Computação - que basicamente é um curso em Matemática Aplicada. Os número tem grande importância pra mim, um valor quase sentimental. Talvez por isso, naquela época a frase de Orwell tenha me impactado tanto. Se perdermos a capacidade de identificar o que é verdadeiro e o que é falso, em que acreditaremos? Se alguém for efetivamente capaz de nos convencer que a mentira mais absurda, como que dois mais dois é cinco, é verdade, perdemos parte do juízo que caracteriza o que quer dizer ser humano.

George Orwell em um artigo publicado ainda durante a Segunda Guerra Mundial e seis anos antes da publicação de 1984, tinha escrito:
A teoria nazista de fato nega especificamente que tal coisa como “a verdade" exista. (…) O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo em que o líder, ou alguma classe dominante, controla não só o futuro, mas também o passado. Se o Líder disser sobre tal e tal evento, "Isso nunca aconteceu" - bem, isso nunca aconteceu. Se ele disser que dois e dois são cinco - bem, dois e dois são cinco. Essa perspectiva me assusta muito mais do que as bombas. [1]
Essa perspectiva, que me assustava na primeira leitura, ainda me assusta, provavelmente muito mais hoje do que há 25 anos.

Mas tem um outro lado meu que reconhece que as nossas vidas não podem ser descritas só em números. Depois de largar a Ciência da Computação, eu acabei me formando em Administração de Empresas e fiz mestrado em Economia, duas áreas do conhecimento que nos últimos anos têm se pautado por “decisões baseadas em dados” ou, em outras palavras, a análise dos números antes de tomarmos qualquer decisão.

Eu não discordo fundamentalmente dessa abordagem, mas acho que às vezes corremos riscos quando achamos que tudo é mensurável, que dá pra estabelecer o valor de tudo em números. Especialmente nesses dias de isolamento físico, é importante lembrar do que está muito além dos números.

Ontem quebramos a barreira de 20.000 mortes pela Covid-19 no Brasil. Claramente se trata, não apenas de uma crise da saúde pública da mais alta gravidade, mas principalmente de uma desgraça pra esse país. São mais de 20.000 famílias que perderam um pai, uma mãe, um avô, uma filha, um melhor amigo. São 20.000 futuros que a gente não vai mais conhecer. É uma daquela situações nas quais a tradição judaica diz que vamos encontrar Deus sentado no chão, com cinzas sobre a cabeça, chorando e lamentando o que está acontecendo.

Mas essa análise toma como óbvio um fator que eu não acho que seja tão evidente, que é o valor da vida humana. Para quem acha que o valor da vida humana é zero, essa crise não tem importância nenhuma, afinal de contas 20.000 vezes zero é zero! Perceber a dimensão dessa tragédia implica reconhecer que teria sido trágico mesmo se apenas uma vida tivesse sido perdida por nossa apatia, pelo nosso descaso ou pela nossa negligência.

Os jornais tem publicado pequenas histórias sobre as pessoas que têm morrido de Covid-19. Ao conhecermos um pouquinho de quem elas eram, a estatística, o número, vira indivíduos, vira relacionamentos, vira uma questão pessoal. Aí, a gente reconhece que na frase “mais de 20.000 pessoas já morreram por Covid-19 no Brasil”, a parte mais importante tem que ser “pessoas” e não “20.000”.

Um outro jeito de ver isso é olhar pra quando uma única morte nos impacta de forma profunda, mesmo quando não conhecíamos a pessoa diretamente. Pode ser um artista, como o Aldir Blanc, cujas músicas me lembram o som que eu escutava no banco de trás do Passat branco do meu pai. Suas músicas são como uma máquina do tempo e perdê-lo significa, de alguma forma simbólica, perder também essas doces memórias da minha infância. 

Olhando para fora da Covid, quem não se lembra de Alan Kurdi, o menino Sírio de 3 anos cujo corpo afogado foi encontrado em uma praia na Turquia em 2015 e cuja foto estampou jornais do mundo todo? Uma foto, uma criança, capazes de mudar a opinião de muita gente com relação à crise dos refugiados. 

Ou de Evaldo Rosa, o músico morto com oitenta tiros na frente de um quartel do exército no Rio de Janeiro há pouco mais de um ano e cuja morte escancarou a violência da intervenção militar no Rio? De novo, uma só morte e um impacto gigante.

É provavelmente por reconhecer o impacto que cada perda nos traz que a tradição judaica nos ensina que “salvar uma vida é como salvar o mundo todo.” Vinte mil mundos que perdemos até agora.

A parashá desta semana é a primeira do 4o livro da Torá, que em português se chama “Números”. O nome vem de um pedido de Deus para que Moshé faça um censo dos hebreus — o que curioso, porque tem uma proibição religiosa contra contarmos as pessoas. Há uma discussão se essa proibição vem da Torá ou se é posterior, mas é isso que leva algumas pessoas, quando querem contar um minián, a dizerem a seguinte frase, que tem dez palavras: “הוֹשִׁיעָה אֶת־עַמֶּךָ וּבָרֵךְ אֶת־נַחֲלָתֶךָ וּרְעֵם וְנַשְּׂאֵם עַד־הָעוֹלָם”, “Redima teu povo e abençoe tua possessão, cuide e sustente-os para sempre” [2]. Tem gente também que conta “não 1”, “não 2”, “não 3” e assim por diante -- desse jeito eles "não" contam.

Há muitas interpretações para o motivo desta proibição, mas eu gosto de pensar que há um tanto de desumanização cada vez que transformamos alguém em estatística. Os nazistas entenderam isso, tiravam o nome das pessoas e as transformavam em um número tatuado no braço. Não eram mais pessoas, não tinham mais valor, eram só um número. Por isso, somos proibidos de contar pessoas — uma forma impedir que tiremos qualquer parte da dignidade inalienável de todo ser humano. Toda vida conta, tem nome, sobrenome e uma história pessoal. Ninguém é só número.

Em hebraico, este livro se chama “baMidbar”, “no deserto”. Foi na vastidão do deserto que nosso povo abandonou as limitações e a idolatria de Mitsrayim, “a terra das águas estreitas” e construiu sua liberdade através do relacionamento com o Deus que criou a humanidade, cada um de nós à Sua imagem e semelhança. 

Foi no deserto que escutamos pela primeira vez o Sh’má: “escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um.” Eu gosto especialmente de uma interpretação chassídica do Sh’má, segundo a qual “Um” não deve ser entendido como um numeral, mas como representado o Todo. “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Tudo.” A cada vida que perdemos, este Tudo se subtrai, eu você, todos nós perdemos. Não pelo número, mas pela vida, pela história, pelas possibilidades que nunca mais vão acontecer.

Que na nossa viagem literária pela amplidão do Deserto do livro de baMidbar encontremos, também nós, a liberdade. A liberdade de reconhecer a verdade, a liberdade de desejar e lutar pela vida, a liberdade de continuarmos humanos e afirmarmos que dois mais dois é igual a quatro.

Shabat Shalom

[1] https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 citado em https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 

[2] Salmos 28:9

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Dvar Torá: Vamos sair dessa! (CIP)

Viktor Frankl foi um neurologista e psiquiatra judeu, sobrevivente da Shoá, famoso por ter desenvolvido o conceito da busca humana pelo sentido em sua obra “Em Busca do Sentido”, publicada logo depois do final da 2a Guerra. Diferente de outros psicólogos e psiquiatras, que identificavam a busca pelo poder ou pelo prazer como a motivação humana básica, de acordo com Frankl, é a busca por significado em nossas vidas que nos motiva: alguns encontram sentido nas suas vidas profissionais; outros na dedicação à família ou à arte ou ao esporte; há quem o encontre na relação com Deus ou na trabalho voluntário e na filantropia. Eu acho que todos nós conseguimos nos enxergar nessa busca permanente pelo significado, que não é estático ao longo da vida e vai mudando conforme vamos crescendo, ganhando novas responsabilidades e competências — e de alguma forma, eu acho que o nosso objetivo, de rabinos e de chazanim, é ser parceiros de vocês nessa busca. Chazanim com sua música, rabinos com suas palavras, nós queremos facilitar pra cada um de vocês a busca pelo significado.

Neste Pessach tão diferente de todos os outros Pessachim passados, é natural que tentemos encontrar na nossa tradição um significado para o que estamos vivendo. Como a Festa da Liberdade nos ajuda a encontrar sentido nesta nossa quarentena? Na quarta-feira à noite, tivemos um seder comunitário online, com a participação de mais de 600 famílias. O Avi e eu conduzimos a maior parte do sêder, mas toda a equipe litúrgica da CIP participou e era possível identificar como todos nós, cada um à sua maneira, estávamos tentando dar significado ao que estamos vivendo.

O rabino Michel, por exemplo, falou da esperança que temos de que o profeta Eliahu nos visite na noite do sêder para anunciar a chegada da era messiância e da visão judaica liberal de que este novo tempo não será marcado pela visita de uma pessoa, mas será o resultado de um esforço coletivo para o qual cada um de nós tem que se engajar. Ele falou sobre como isso implica “sairmos da nossa zona de conforto e assumir total responsabilidade pelos caminhos da humanidade” e que “[a]brir a porta na noite do seder pode representar uma opção simbólica pela construção de um mundo diferente.” A pergunta implícita nos comentários do rabino Michel é “Qual papel cada um de nós é chamado a desempenhar para garantir que a visita de Eliahu haNavi às nossas casas ante-ontem à noite não tenha sido em vão?”

O rabino Ruben explicou e o Avi cantou o Há Lachmá Aniá, uma das primeiras músicas do seder, que fala da matsá como o pão da pobreza e da aflição e que nos convida a incluir em nosso seder quem está realmente em situação de vulnerabilidade, precisando de acolhimento. O rabino Ruben desejou que possamos deixar de lado as visões dicotômicas entre pobres e ricos, entre vulneráveis e fortes, entre jovens e idosos, entre sadios e doentes e que descubramos “que todos precisamos um dos outros e que somente com a solidariedade verdadeira, abrindo as portas das nossas casas, das nossas mentes, de nossos corações e de nossas mãos é que vamos conseguir sair da terra da escravidão para a terra da liberdade.”

O Alê Edelstein escolheu cantar e comentar uma passagem da hagadá que diz que “de geração em geração, cada pessoa precisa sentir-se como se ela mesma tivesse sido pessoalmente libertada de Mitsrayim”, e desejou que esta seja uma chave para o desenvolvimento de empatia, para que possamos nos colocar verdadeiramente no lugar do outro e sairmos juntos do nosso Egito.

O Alê Schinazi comentou sobre o paralelo entre as incertezas que vivenciamos hoje e aquelas vividas pelo povo de Israel na saída de Mitsrayim e nos 40 anos seguintes no deserto, sem saber exatamente o que aguardar, até quando esperar e quando seria a hora de avançar.

Estamos todos, do lado de cá e do lado de lá dessa telinha, tentando encontrar significados nessa crise. Pessach é também a festa da Primavera na terra de Israel e lembramos dela durante o seder comendo o carpás depois de mergulhá-lo na água com sal, símbolo das lágrimas dos nossos antepassados. Essa dimensão agridoce, da mistura da alegria da redenção com a dor da opressão está representada também no sanduíche de Hilel, que junta o doce do charosset com o amargo do maror. Yehudá Amichai tava certo, “uma pessoa precisa amar e odiar ao mesmo tempo, rir e chorar com os mesmos olhos, atirar pedras e juntá-las com as mesmas mãos. Fazer amor na guerra e guerra no amor. E odiar e perdoar e lembrar e esquecer, e organizar e confundir e comer e digerir o que a história leva anos e anos para fazer.” 

Essa crise — e eu não quero, de jeito nenhum, minimizar a sua extensão — não é só a água com sal, ela também tem o seu lado primavera, tem um tanto de charosset pra misturar com o maror. Ela nos oferece a capacidade única de nos reinventarmos, de nascermos de novo com a sabedoria que acumulamos e  de construirmos novas estruturas que reflitam melhor quem queremos ser daqui pra frente.

O episódio do Bezerro de Ouro, em que o povo acreditou que um objeto poderia ser Deus, foi, provavelmente, a crise mais séria no relacionamento entre Deus e o povo de Israel até então.  Naquele episódio, Moshé tinha quebrado as Tábuas da Lei, que tinham sido preparadas e inscritas por iniciativa única e exclusiva de Deus. Na parashá que leremos amanhã, Deus pede a Moshé que prepare um segundo conjunto de tábuas sobre os quais Deus escreverá os mandamentos. O rabino Art Green sugere que Deus reconhece que as primeiras tábuas, em cuja preparação apenas o Divino tinha participado, não ofereciam espaço para a manifestação humana e, por isso, estavam fadadas ao fracasso. Ao pedir a ajuda de Moshé para as segundas tábuas, Deus Se transforma e possibilita um pacto com Israel muito mais estável e sólido.

Agora, somos nós quem temos a oportunidade de nos transformarmos, de reconstruir nossas sociedades como comunidades muito mais estáveis e sólidas, com empatia, com preocupação com a inclusão — especialmente a dos mais vulneráveis —, em que cada um de nós possa escutar seu chamado para construir aqui nesse mundo a utopia representada pela era messiânica. O momento é agora para começarmos a sonhar, a imaginar, a planejar como serão nossas vidas do lado de lá desta longa travessia.

Nós mergulhamos o carpás na água com sal para nos lembrarmos das lágrimas dos nossos antepassados. Um dos comentários que eu mais gosto sugere que olhemos a questão por outro ponto de vista e pergunta: “porque a água com sal deve ser tocada pelo carpás, símbolo da primavera?” e ele mesmo responde: “para nos lembrar que chega a hora em que paramos de chorar.” Essa hora vai chegar e não vai demorar muito.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 27 de março de 2020

Perguntando "e seu estiver errado?"

Originalmente publicado no facebook

Hoje, preparando o café da manhã com meu filho, ele me perguntou se íamos precisar abrir outro pacote de leite. Eu disse pra ele que achava que sim, mas que queria ver se o que estava aberto daria — ele respondeu: “então, quer dizer que vc vai abrir outro pacote?”. Eu disse: “eu acho que sim, mas não sei.” E continuei: “você sabe a diferença entre achar e saber.” A resposta dele me surpreendeu: “claro que eu sei, pai! Meus primos *acham* que o Palmeiras é um time bom, mas eu *sei* que o Corinthians é muito melhor!”

As pesquisas afirmam que todos achamos que nossas opiniões são baseadas na análise racional dos fatos e no bom senso, enquanto as opiniões dos outros são baseadas nas suas crenças e preconceitos. Nesse sentido, quando as opiniões sobre como responder à crise de saúde pública pela qual estamos passando estão mais divididas do que nunca, com cada lado apresentando seus “fatos” contra as “opiniões” dos outros, me parece importante dar um passo para trás e se perguntar “e se eu estiver errado?”

E se a política de “confinamento vertical” estiver errada? Nosso sistema de saúde daria conta do aumento da demanda por leitos, vagas em UTI e respiradores? Ou veríamos, como a Itália viu, um aumento vertiginoso dos casos - tanto entre os mais idosos quanto entre os jovens - de tal forma que o sistema de saúde entraria em colapso e teria que decidir quem atender e quem não; quem iria para a UTI e quem morreria sem atendimento médico? Se este for o caso, não daria pra dizer “ups! estávamos errados, vamos recomeçar o jogo e decidir de forma diferente da próxima vez…”

Há políticas fiscais a serem adotadas para que a economia não entre em colapso com a quarentena. O editorial do New York Times de hoje (link no primeiro comentário) detalha as estratégias de países europeus para lidar com a crise: a Dinamarca reembolsa os empregadores por até 90% do salários de seus funcionários; na Holanda, a mesma regra se aplica para empresas que tiveram queda de, pelo menos, 20% na receita; o Reino Unido pagará até 80% dos salários das empresas que precisarem de ajuda. O FMI aprovou que gastos com o Corona Vírus não sejam incluídos nos cálculos de déficit primário. Há estratégias que amenizam o impacto econômico desta crise sem aumentar o número de pessoas infectadas com o coronavírus.

Precisamos entender a urgência do momento, deixar a politicagem de lado e agir como seriedade. É chato ficar em casa? É. É difícil lidar com os filhos cujas aulas presenciais foram suspensas? É. Vamos ter que gastar parte das nossas economias, tanto do ponto de vista pessoal quanto nacional? Com certeza. Mas é isso que o momento exige…

E seu EU estiver errado?? Eu também me preocupo com os efeitos econômicos desta quarentena forçada - o que acontecerá com a nossa economia ao final desta crise, em particular com as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade? Como eu disse acima, há políticas fiscais que precisam ser adotadas ao mesmo tempo em que praticamos a quarentena -- não dá pra acreditar que podemos deixar tudo para o livre mercado resolver... Se eu estiver errado e uma estratégia de quarentena menos rigorosa tivesse resolvido o problema, então teremos passado mais tempo do que o necessário confinados em casa e aumentado a dívida pública. Não são resultados bons, de forma nenhuma. O estado brasileiro já está quebrado e não precisa de mais dívidas -- mas dadas as opções, eu fico com ser mais precavido e garantir que salvarmos todas as vidas que pudermos.

O Judaísmo ensina que “uvacharta bachayim” — “vocês devem escolher pela vida” (Deut. 30:19). Nesse momento, mais do que permitir que cultos religiosos aconteçam, mais do que pensar em como radicalizar este ou aquele público, mais do que culpar a imprensa por divulgar a opinião dos maiores especialistas em saúde pública deste país, é fundamental pensar em como manter a vida — não só durante a crise mas também depois dela. E sempre pensar “e se eu estiver errado?”.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 20 de março de 2020

Dvar Torá: Percebendo a generosidade ao nosso redor (CIP)

Uma música israelense lançada há uns 15 anos, Shirat haSticker, fazia uma colagem de mensagens, principalmente políticas, de adesivos. O texto foi escrito pelo poeta David Grossman, transformado em rap pela banda haDag Nachash e trazia uma série de sobreposições de ideias opostas que levava a resultados inusitados. 

Fiquei pensando nessa música hoje, na esperança de compor uma prédica inteira com as dezenas, talvez centenas, de memes que eu recebi no WhatsApp, em grupos de amigos, de pais de colegas dos meus filhos na escola, e de outros conhecidos, todos tentando encontrar algum sentido e alguma graça nessa nossa nova rotina, com medo do vírus, do seu impacto na nossa saúde e nos nossos bolsos; sem saber o que fazer com nossos filhos com aulas presenciais suspensas, tendo que virar pai e professor, tudo ao mesmo tempo; assustados igualmente pela falta de informação e pelo excesso dela, especialmente assustados com a informação falsa, que cria pânico e que, por ironia, se espalha com ainda mais rapidez nesses nossos tempos de redes sociais.

No final, abandonei a ideia de uma prédica só com esses memes, mas guardei um que, sem qualquer motivo especial, me chamou especialmente a atenção. Dizia: “na verdade, ficar em casa não é tão ruim assim, mas me parece muito estranho um saco de arroz ter 8956 grãos e o outro, 8743.” Sonhamos com a possibilidade do ócio criativo, um tempo de descanso para nossas almas e corpos cansados. Sonhamos com a chance de colocar a leitura em dia, de arrumar a casa, de limpar a caixa de emails — mas ninguém queria que fosse nessas condições, preocupados com os idosos em nossas vidas e com aqueles nem tão idosos assim, com medo do que as próximas semanas nos reservam. E, nessa dúvida do que fazer com o tempo, acabamos fazendo coisas que o preenche sem lhe dar nenhum significado — como contar os grãos de arroz no saco.

Esta semana temos uma parashá dupla: Vayakhel-Pecudei. Logo no começo da parashá Vayakhel, Moshé congrega toda a comunidade — e a palavra Vayakhel quer dizer exatamente isso: “congregar”, da mesma raiz que “kehilá”, “congregação”. Então, Moshé fala do Shabat e na sequência, ele pede presentes para os rituais religiosos da época: para a construção do Mishkán, com todas as suas partes, para as roupas dos Kohanim, etc. E as pessoas responderam, com נדיבות לב, “generosidade do coração”, eles começaram a trazer ouro, broches, brincos, anéis e pingentes, fios coloridos azuis, púrpura e vermelhos, linho de alta qualidade, lã de cabrito, objetos de cobre e de prata, objetos de madeira sólida. E as pessoas, em sua generosidade, doavam seu tempo e sua expertise, tecendo, construindo e adaptando o que era doado. Em comunidade, eles se mobilizaram e, com generosidade, se entregaram à tarefa.

Hoje eu assisti um colega, o rabino Josh Whinston, cantar para seus filhos lindas músicas de Shabat com a câmera ligada na sala da sua casa, para que todos pudéssemos desfrutar deste momento. Com violões, pandeiros e outros instrumentos, a felicidade da família dele se transformou em felicidade de todos. Hoje, eu escutei de empresas de cosméticos que doarão sabonete líquido para comunidades menos favorecidas. Empresas de bebida no exterior e no Brasil, que converteram suas linhas industriais para produzir álcool gel. As empresas de TV a cabo estão disponibilizando seus pacotes de filmes de graça para as pessoas que ficarão em casa e muitas universidades no Brasil e no exterior estão oferecendo cursos online gratuitos. Em muitos prédios, vizinhos entraram em contato com os idosos seus vizinhos e se ofereceram para fazer as compras. Jornais liberaram o conteúdo de tudo o que se relacione ao Coronavírus. Artistas estão fazendo shows em suas casas e transmitindo pela internet. Produtoras de filmes disponibilizaram seus acervos. Professores das mais diversas competências passaram a dar aula online. Cada um, a partir da sua נדיבות לב, da generosidade do seu coração, resolveu fazer algo para o bem da comunidade, da קהילה.

Na parashá da semana passada, lemos sobre o bezerro de ouro, o pecado de achar que o Divino está na fisicalidade de um objeto. Estamos cada um em nossas casas, este salão de sinagoga vazio… a casca, o aspecto físico da nossa comunidade está vazio, mas continuamos com a capacidade de sermos uma comunidade, um grupo de pessoas que se importam uns com os outros, que se apóiam mutuamente, que são generosos uns com os outros, especialmente em momentos de dificuldade como este. A CIP continua ativa, com cursos, palestras e serviços religiosos transmitidos online; os rabinos e o resto do corpo profissional continuam prontos a atender vocês, agora pelo telefone ou por vídeo-conferência.

No começo da instrução para a construção do Mishkán, que lemos há algumas semanas em parashat Trumá, Deus diz ao povo que Lhe façam um Santuário “para que Eu possa morar entre eles”. No final de parashat Pecudei, a segunda parte da leitura deste Shabat, quando todos tinham se doado ao máximo pela constituição da comunidade, a presença Divina habitou entre eles. O Sfat Emet, um comentário chassídico polonês do final do século 19, entende que Deus habita literalmente dentro de cada um dos israelitas. 

É o ato de generosidade que torna esta intimidade possível, que faz com que Deus se torne parte de cada um de nós. É a verdadeira generosidade dos nossos corações, nem sempre com dinheiro, mais frequentemente com atitude, que transforma o distante e cósmico em um Deus próximo, intimo, parceiro. Era verdade nos tempos do deserto e continua sendo verdade em nossas cidades semi-desertas em tempos de Coronavírus.

Que nesse shabat, o distanciamento que esta pandemia nos impõe seja percebido como a prova de amor que realmente é; que continuemos nos importando, nos ajudando, nos acolhendo, apesar da distância física; que cada um possa oferecer o que tem de melhor para que saiamos mais fortes e mais unidos deste contexto surreal em que hoje nos encontramos.

Shabat Shalom!