sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Dvar Torá: Reafirmando nossa humanidade apesar da tecnologia (CIP)

Em seu livro sobre a revolução francesa “18 do Brumário de Napoleão Bonaparte”, impressionado com os papéis de Napoleão Bonaparte e seu sobrinho, Luís Napoleão, que foi o primeiro presidente eleito da França, mas deu um golpe e se tornou seu último monarca, Karl Marx cunhou uma de suas frases mais famosas: “a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”. [1]

Em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial estava chegando ao seu fim, uma pandemia atacou uma população que já estava desgastada pelos quatro anos da guerra: com a população mal nutrida e em péssimas condições de higiene, a infecção atacou em cheio,  causando uma reação excessiva do sistema imunológico e milhões de vítimas [2]. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram por esta doença, que na verdade não estava originalmente associada à Espanha. Os estudos mostram que a pandemia teve origem, provavelmente, em acampamentos militares norte-americanos, mas por causa do esforço de guerra, a censura militar impedia que notícias sobre a infecção de soldados americanos fossem divulgadas; sobrou para a Espanha, que não participava da guerra e onde a imprensa podia noticiar livremente as infecções. Estima-se que cerca de 500 milhões de pessoas se infectaram entre fevereiro de 1918  e abril de 1920. No Brasil, as estimativas são de que mais da metade da população da cidade de São Paulo se contaminou pelo vírus e na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 12.700 pessoas morreram devido à pandemia [3]. Por todo o mundo, autoridades políticas negaram sua gravidade; quando a seriedade da doença foi compreendida, medidas de distanciamento social foram adotadas; cinemas, escolas e centros religiosos foram fechados e máscaras passaram a ser usadas em locais públicos [4].

 “A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Um aspecto no entanto, faz com que a história da pandemia de 1918 e a que estamos vivendo hoje sejam radicalmente diferentes e basta um pouquinho de matemática para percebermos: 500 milhões de pessoas infectadas em 1918, entre 50 e 100 milhões de mortos. A taxa de letalidade era entre 10% e 20% daqueles que se infectavam. Hoje, com quase 42 milhões de infectados e 1.140.422 mortos [5], a taxa de letalidade está na casa de 2,7% — o que ainda é muito alto e justifica todas as medidas de proteção que estamos adotando, mas é muito menos que 20%!

O que explica essa diferença nos números? Em 1918, não existiam remédios anti-virais [6] ou antibióticos [7] que permitissem tratar as infecções secundárias. O primeiro respirador artificial foi desenvolvido apenas em 1928 [8] e a Internet, que tem permitido que médicos de todo o mundo compartilhem, em tempo real, suas experiências no tratamento da doença, não fazia parte nem do sonho das pessoas antes do anos 1960.

Em resumo, o desenvolvimento tecnológico tem salvado vidas todos os dias, tanto na prevenção de novas infecções quanto no tratamento daqueles que já se infectaram. Negar os benefícios que a tecnologia tem trazido às nossas vidas, quando eu falo com vocês através das telas, seria no mínimo tolice.

A parashá desta semana, no entanto, traz alguns alertas sobre os impactos negativos da tecnologia.[9]

Na época sobre a qual a Torá fala, a tecnologia mais recente era o desenvolvimento do tijolo queimado e da argamassa. Com eles, a humanidade acreditou que poderia se transformar em deuses se construíssem uma torre que chegasse até o céu. Deus percebeu que, no ritmo em que eles iam, nada estaria fora do seu alcance e agiu para que seus planos fossem frustrados.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não são poucas as experiências contemporâneas nas quais o desenvolvimento tecnológico tem permitido que acreditemos na possibilidade de nos tornarmos deuses.

Quando eu leio a história da Torre de Babel, imediatamente eu penso na ovelhinha Dolly, o primeiro mamífero nascido por um processo de clonagem, em 1996 [10]. Graças ao desenvolvimento científico e tecnológico que ela desencadeou, especialmente na área de células tronco, temos hoje a possibilidade de curar doenças para as quais não havia qualquer tratamento.

O desenvolvimento de técnicas de clonagem, no entanto, também abriu a possibilidade de manipulação genética para fins de eugenia, um conceito ultrapassado de melhoria genética da espécie humana, popular no século 19 e que deu roupagem científica a preconceitos raciais.  Já imaginou se toda a população pudesse ter olhos azuis? Ou aquela covinha na bochecha quando sorri? Quando seres humanos acreditam que nosso desenvolvimento tecnológico nos permite decidir quais características genéticas a população terá no futuro, onde fica a ética? Onde fica a moral? A busca de bebês que sejam a materialização dos sonhos biológicos de seus pais dá expressão ao sonho maligno do Dr. Josef Mengele, o anjo da morte de Aushwitz, que usava os prisioneiros judeus para seus experimentos.
 
Mas não é só na medicina que a tecnologia tem nos confundido sobre o que ela nos possibilita fazer. Aplicativos inocentes nos nossos celulares permitem que as operadoras saibam todo lugar em que passamos, quem visitamos e quanto tempo ficamos em cada lugar. Tecnologias de reconhecimento facial permitem que padres e rabinos identifiquem quais comentários fazem mais sucesso pela forma como as feições dos fiéis respondem às suas prédicas e sermões. Deep fake, a irmã mais nova no parquinho das maldades, permite que recriemos o que de fato aconteceu, construindo aparições em vídeo onde a voz e a imagem dizem uma coisa, mas a realidade dos fatos diz exatamente o seu oposto.
Muitas vezes, o mesmo desenvolvimento tecnológico que salva vidas coloca na ponta dos nossos dedos capacidades que nos seduzem, que nos fazem sentir todo-poderosos e que traem nosso sonho de uma sociedade mais justa, mais aberta, mais inclusiva. 

Uma outra forma como a tecnologia tem permitido que nos sintamos deuses é o efeito da caixas de ressonância criadas pelas redes sociais. Em uma live no domingo passado [11], em que lançou a edição em português do seu livro “O Impasse de 1967”, o dr. Micah Goodman falou de como o negócio de empresas como facebook, YouTube e Twitter, é reter a nossa atenção e como, infelizmente, ideias extremas e que confirmem aquilo no que já acreditamos capturam nossa atenção com muito maior eficiência. Por isso, as redes sociais tendem a gerar uma radicalização do discurso, dando legitimidade a ideias que germinavam apenas nos segmentos mais extremos da população e a criar contextos uniformes, que dão a aparência de que todos concordam com a tua opinião.

Nessas caixas de ressonância, em que nossas opiniões reinam sem que sejam questionadas, nos sentimos deuses, senhores absolutos de toda a razão. Nesses cenários, não existe incentivo algum para escutar a perspectiva do outro; não existe nem mesmo o reconhecimento de que este outro, que pensa diferente, existe. Neste cenário polarizado, em que cada um se considera o único dono da verdade, o diálogo com quem pensa diferente é uma traição inaceitável. Basta ver a reação da massa quando um político eleito por uma plataforma ideológica é visto conversando com um político que representa outra ideologia. A política, a arte da produção de consensos, de busca de campos comuns, tem sido negada, não só pelos escândalos de corrupção, mas principalmente por uma pureza ideológica que não aceita nenhum tipo de concessão.

Yeshayahu Leibowitz, um filósofo ortodoxo israelense de ideias polêmicas e que incomodava todos os governos de Israel, afirmou que o conceito de Bavel, a cidade em que todos tinham a mesma linguagem e as mesmas palavras é um eufemismo para falar de totalitarismo, a situação em que todos são forçados a pensar o mesmo e no qual uma ideia diferente é percebida como uma traição.

Leibowitz escreveu: 
“Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre.” [12]

O que o tijolo queimado e a argamassa produziram na geração da Torre de Babel, as redes sociais replicaram na nossa geração: a possibilidade de acharmos que somos quase-deuses e, assim,  que todos devem pensar o mesmo que nós e adotar o nosso discurso.

Para Leibowitz, a resposta de Deus, espalhando as pessoas pelos quatro cantos da terra e fazendo com que adotassem idiomas diferentes, não foi uma punição, mas um sinal da compaixão infinita de Deus pela humanidade. Para ele, foi só em um mundo em que não havia mais uma única língua e um único discurso que Avraham, o mais iconoclasta dos nossos patriarcas, pôde aparecer e questionar a tradição dos seus pais.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não faz sentido desejarmos viver em um mundo sem tecnologia, da mesma forma que não faria sentido para Avraham rejeitar o uso do tijolo queimado e da argamassa. No entanto, é fundamental que reconheçamos também os efeitos nocivos que a tecnologia pode trazer consigo — a notícia boa é que nenhum deles é inevitável. Podemos assinar jornais nos quais posições plurais sejam expressas; podemos buscar diálogo com quem pensa radicalmente diferente da gente; podemos rejeitar ou limitar o uso de tecnologias que, apesar de oferecerem comodidades, invadem a nossa privacidade ou, ainda pior, nos permitem invadir a privacidade dos outros.

Que nesta distopia em que temos vivido, na qual nos tornamos cada vez mais dependentes da tecnologia, tenhamos a coragem de olhá-la nos olhos e re-afirmar a nossa humanidade.

Shabat Shalom

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Eighteenth_Brumaire_of_Louis_Bonaparte
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu
[3] https://brasilescola.uol.com.br/historiag/i-guerra-mundial-gripe-espanhola-inimigos-visiveis-invisiveis.htm
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu#Public_health_management
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data acessado em 23/10/2020.
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Antiviral_drug
[7] https://en.wikipedia.org/wiki/Antibiotic#History
[8] https://en.wikipedia.org/wiki/Ventilator#History
[9] Gen. 11:1-9
[10] https://en.wikipedia.org/wiki/Dolly_(sheep)
[11] https://youtu.be/dE9jvFAOd1c
[12] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Ch. 2: Bereshit - Noach




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