sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A esperança que supera o desespero

Há alguns anos, o rabino Ariel Kleiner e eu liderávamos juntos um grupo de estudos da parashá com midrash e arte na sala de estar da minha casa. Logo na segunda semana do projeto, nos deparamos com parashat Noach, que conta a história da Arca de Noé e que lemos esta semana novamente. O rabino Ariel e eu tínhamos entendimentos radicalmente diferentes de como o texto bíblico se relacionava com a realidade contemporânea. Para mim, focando na decisão Divina de destruir o mundo através de um dilúvio, este era um alerta para a nossa sociedade de como o comportamento irresponsável de uma geração tinha levado o planeta à sua quase-destruição; para ele, focando no final da história, quando as águas baixaram e Noé, sua família e os animais desceram da arca, esta era uma história sobre esperança, um exemplo de como, mesmo após as piores catástrofes, existe a possibilidade de reconstrução.

Bem no espírito dos debates rabínicos, a verdade é que nós dois tínhamos razão! Esta história da Torá é tanto sobre destruição quanto sobre reconstrução; é um alerta e também um sinal de esperança -- e nesses dois aspectos, profundamente necessária nos nossos dias. 

“A terra tinha se corrompido frente a Deus e tinha se enchido de violência” [1] parece uma descrição da realidade em que vivemos: a realidade em que vivemos nos leva perigosamente próximos a desastres, seja pelo esgotamento dos recursos naturais, pela acirramento dos conflitos sociais e internacionais, ou pela nossa incapacidade de demonstrarmos empatia pela situação do outro quando quadros de crise exigem ações coordenadas, seja pelo coronavírus ou por desastres naturais. Temos perdido nosso senso de responsabilidade para com o coletivo, do qual a recusa em usar máscaras em certos segmentos é apenas uma manifestação, como bem indicou Yehuda Kurtzer em um artigo recente [2]; a devastação ambiental bate recordes a cada ano, sem que consigamos diminuir a velocidade com que destruímos os recursos naturais; depois de seis décadas em que parecia que o mundo tinha aprendido uma lição das tragédias da primeira metade do século XX e buscava frear nacionalismos radicais, movimentos neonazistas e outras correntes baseadas no ódio ao diferente, incluindo muitos movimentos antissemitas, têm reaparecido em diversas partes do mundo; as democracias liberais, baseadas na sociedade civil e no respeito às instituições também parecem viver profunda crise; o sistema multilateral de relações internacionais que procurava evitar novos conflitos através da cooperação entre as nações está desmoronando e aumentam os conflitos entre as principais potências. Vista por esta perspectiva, nossa situação é desesperadora.

Na tradição judaica, no entanto, o desespero dá lugar à possibilidade de t’shuvá, a transformação das nossas condutas que possibilita nosso retorno à melhor versão de nós mesmos. Apesar de reconhecer nossa tendência a sermos seduzidos por nossos olhos e corações, há um otimismo inerente à visão judaica de mundo, de que reformaremos nossas condutas e, neste processo, ajudaremos a transformar o mundo. O rabino Ariel tinha razão: a história do Dilúvio não termina com a destruição do mundo, mas com a sua reconstrução e com a esperança, trazida pela pomba, de uma vida muito diferente. Assim,  a Torá não permite que o desânimo pelo estado atual das coisas nos leve a desistir: não permitiu na geração de Noach e continua não permitindo nos nossos dias.

O ciclo de leitura da Torá está apenas começando -- oferecendo a todos nós uma nova oportunidade de nos reencontrarmos com o texto central da nossa tradição e, através deste encontro, buscarmos transformar o mundo em um lugar justo para todos.

Shabat Shalom

[1] Gen. 6:11
[2] https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/10/brooklyns-anti-masking-protests-betray-a-broken-culture/616694/



Nenhum comentário:

Postar um comentário