sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


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