terça-feira, 13 de outubro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 4: Identidade Judaica: Novas Ondas

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/4)

leDor vaDor, de geração em geração -- pra muita gente, esta é a premissa básica do judaísmo, a ideia de transmitirmos nossas práticas, tradições e valores de uma geração para a outra. E apesar de falarmos e cantarmos sobre esta transmissão como algo óbvio, quase natural, podemos ler nas entrelinhas de vários textos judaicos que muitas vezes ao longo da nossa longa história, talvez todas as vezes, os mais jovens quiseram escrever a sua própria trajetória.

Continuamos falando em “liderança judaica do futuro”, mas esse futuro parece nunca chegar e o conceito de “liderança do futuro” não reconhece que parte da juventude já é liderança hoje, sem precisar esperar nenhum outro tempo. Mais do que isso: a juventude tem seus próprios sonhos de vida judaica, nem sempre totalmente alinhados com os de seus pais ou das grandes instituições comunitárias, mas que têm levado a atitudes concretas, que fazem diferença e mudam nosso caminho e pensamento como povo.

Como será, no Brasil de hoje, ser jovem e judeu com todas as outras identidades acopladas que cada um traz na mala? Quais são as transformações pelas quais lutam os jovens judeus? Quais são as novas identidades judaicas que eles estão construindo?

Essas são algumas das perguntas sobre as quais vamos conversar hoje com duas jovens lideranças judaicas: Guilherme Pasmanik e  Eduardo Barros.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Música de encerramento: Avraham Avinu interpretada por Eduardo Barros, com produção musical de Daniel Tauszig. Versão para o filme "200 Anos de Imigração Judaica do Mediterrâneo", do diretor Marcio Pitliuk.
Produção Executiva e Edição: Marie Naudascher

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Dvar Torá: o imperativo judaico da consciência ambiental

No dia 26 de novembro de 2017, o jovem Matheus Dutra Thomaz Aldeia, de 17 anos tomou seu café da manhã reforçado e, como tinha planejado, saiu da sua casa em Embu das Artes pra pegar o ônibus. O tempo passava e o ônibus não chegava e, quando veio, estava lotado. Quem anda de ônibus sabe que ônibus lotado sempre demora mais, para em todos os pontos, demora pras pessoas conseguirem entrar e sair. Quando, finalmente, Matheus conseguiu chegar ao seu destino, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da USP, os portões tinham acabado de fechar — e ele viu frustrado seu sonho de tentar uma vaga para o curso de Publicidade e Propaganda na USP [1].

Todo ano, no final de Iom Kipur, a cerimônia de Neilá, eu fico pensando nessas cenas, que a gente vê todo ano de gente que chegou alguns minutos atrasado para uma prova importante e deu com o portão fechado. Neilá quer dizer “trancamento” e como eu disse no final da cerimônia deste ano, há muito debate sobre o que de fato está sendo trancado. Pessoalmente, eu não acredito que os portões da t’shuvá o processo de introspecção, auto-análise e transformação se tranquem de verdade. Eles estão nos esperando o ano inteiro, só esperando darmos o primeiro passo, prontos para que usemos a chave que sempre levamos no bolso, abramos a porta e, pé-ante-pé,  entremos nesse espaço.

Segundo algumas tradições místicas, é só em Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot que a gente acabou de terminar, que o processo de inscrição, confirmação e selamento dos nossos nomes no Livro da Vida é encerrado. Como eu disse, eu acredito que as portas da t’shuvá tão abertas o tempo todo, mas Hoshaná Rabá também é um dia no qual pedimos especialmente por água. Segundo a Mishná, o mundo todo é julgado em Sucot com respeito às chuvas [2] e as comemorações das noites de Sucot na época do Templo em Jerusalém faziam uso intenso de água, com muita música e dança — realmente validando a idéia de que Sucot é Zman Simchateinu, o tempo da nossa alegria. De acordo com a Mishná, “uma pessoa que não tenha visto Simchat Beit haShoevá [essas comemorações], nunca viu alegria na vida.” [3] Esse é um dos versos associados a estas comemorações:

וּשְׁאַבְתֶּם מַיִם בְּשָׂשׂוֹן מִמַּעַיְנֵי הַיְשׁוּעָה. 
Vocês devem retirar água com alegria das fontes da redenção [4]

Neste contexto de pedidos por chuva, Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot é, então, o último dia para implorarmos por água na medida certa — e, como é normal nas nossas últimas chances, os pedidos são reforçados nesta data.

Vivemos em sociedades urbanas, nas quais, na maioria das vezes, não pensamos em como a água e as chuvas são essenciais para a vida. Além disso, a ideia de rezarmos por chuva nos parece tão contrária à nossa mentalidade científica que aqueles entre nós que se dispõe a participar destes rituais, o faz por concessão ao folclore judaico, sem realmente acreditar que uma reza ou um jejum por chuva possa ter qualquer impacto. 

O rabino Yedidya Sinclair, que trabalha com Hazon, a principal entidade judaica trabalhando em questões ligadas ao meio-ambiente e à sustentabilidade nos Estados Unidos, diz que esta perspectiva teve início após o terremoto de Lisboa de 1755, que os especialistas imaginam ter atingido um valor entre 8,7 e 9 na escala Richter. Voltaire, o filósofo francês da época do Iluminismo, entende que não é possível atribuir qualquer impacto teológico ao evento, que teria acontecido pelas forças da natureza e da Física, não por desígnio de um Deus benevolente que tivesse querido punir algum grupo em Lisboa. O paradigma da dissociação entre os eventos naturais, como os terremotos ou o clima o comportamento humano se estabeleceu, quase que incontestável, desde então até o final do século XX. De acordo com o rabino Sinclair, o furacão Katrina, que causou estragos enormes em Nova Orleans em 2005, é o primeiro desastre natural no qual esta perspectiva foi questionada. De acordo com o consenso científico, a ação humana tem levado a fenômenos climáticos mais extremos: tempestades, furacões, secas e incêndios muito mais devastadores do que eles eram no passado.

Tendências históricas precisam ser analisadas em contextos mais amplos, mas São Paulo viveu nas últimas semanas alguns dos dias mais quentes desde que a temperatura é registrada por aqui [5] e ainda falta mais de dois meses para o início do verão; mais de um quarto do Pantanal já foi queimado este ano [6]; a Califórnia enfrenta incêndios terríveis que colocam em risco milhões de pessoas. Depois de Katrina, vários outros furacões igualmente destrutivos afetaram o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos. Este ano [7], a Europa sofreu inundações como não via há 500 anos, a África Oriental e a América do Sul sofreram com nuvens de gafanhotos devastadoras [8]. A ideia de que a ação humana tem, sim, impacto nos fenômenos naturais não parece tão absurda como achavam os filósofos iluministas.

O rabino Sinclair diz que o Tratado de Tannit do Talmud deveria se chamado Tratado Mudança Climática, tal é a relevância dos assuntos lá levantados para a discussão do impacto da ação humana sobre o clima e sobre nossa condição de vida neste planeta. Ele diz “As primeiras dez páginas do volume tratam muito pouco de reza e muito sobre o estado das coisas na sociedade que levam a mudanças nas condições do clima: as chuvas vão parar por causa de roubos, as chuvas vão parar por causa das trapaças das pessoas. Tratar do questão das chuvas leva rapidamente à conclusão de que a forma de resolver este problema não é através das rezas, mas através da regeneração social e espiritual.

Mary Evelyn Tucker e John Grim, que dirigem o Forum de Religião e Ecologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos, escreveram: 

Uma crise ambiental dessa complexidade e abrangência não é resultado apenas de certos fatores econômicos, políticos e sociais. É também uma crise moral e espiritual que, para ser tratada, exigirá uma compreensão filosófica e religiosa mais ampla de nós mesmos como criaturas da natureza, inseridos em ciclos de vida e dependentes de ecossistemas. As religiões, portanto, precisam ser reexaminadas à luz da atual crise ambiental. [9]

A verdade é que a tradição judaica está muito bem equipada pra tratar desses assuntos. Eu quero convidar vocês a acompanharem nos seus sidurim a partir da página 16. Eu vou ler a tradução interpretativa do rabino Arthur Waskow para os 3 parágrafos do Sh’má, que eu considero uma excelente apresentação dos temas em termos relevantes para a nossa realidade:

Se você ouvir, realmente escutar o “Eu”, aquele “Eu” que fala por todo o Universo, esse “Eu” que fala do fundo de cada um de nós como o nosso ser mais pleno, mais completo.

Se você ouvir, realmente escutar, o que “Eu” ensino sobre as vínculos que te conectam com a Totalidade de toda a vida - para amar a Respiração da Vida e trabalhar pelo Poder Criativo do mundo com todo o teu coração e a cada respiração —  

então as chuvas cairão como deveriam, 
os rios vão correr, 
os céus vão sorrir 
e a boa terra te alimentará com abundância como os grãos, com alegria como o vinho, com suavidade como o azeite.
Mas se você dividir o mundo em partes e escolher um ou alguns para adorar — como deuses de riqueza e de poder, de ganância, da ambição, do vício em fazer e produzir sem interrupção para ser ou para praticar o Shabat, então a harmonia que você quebrou vai, com seus estilhaços, destruir a tua harmonia —

a chuva não vai cair [ou será ácida], 
os rios não correrão [ou irão transbordar porque você não deixou solo que a chuva possa encharcar], 
e os próprios céus se tornarão teus inimigos [a camada de ozônio deixará de te proteger, o dióxido de carbono que você despejar no ar queimará teu planeta], e você perecerá da boa terra que o Sopro da Vida exala por você.

Então, deixe essas verdades se estabelecerem no teu coração, Respire-as a cada sopro, encha cada ação das tuas mãos com elas e guie os teus olhos para enxergar profundamente ao observar a luz delas.

Ensine-as às crianças que viverão ou morrerão em um planeta que você transformou em ruínas ou que fez florescer. Compartilhe-as uns com os outros em suas casas, ao escolher como comer e como se aquecer; Compartilhe-as em suas estradas quando decidir como viajar e quais combustíveis usar;

Compartilhe-as conforme você cruzar cada limiar de vez em quando, de um lugar para outro.

Então, os teus dias e os dias dos teus filhos serão maduros e completos e muitos,

O que as árvores expirarem, você inspirará; o que você expirar, as árvores vão inspirar;

Como o Sopro da Vida jurou para aqueles que vieram antes de você, assim será também para você e para aqueles que te seguirem, a Terra será tão harmoniosa quanto o céu.

Aquele que é ilimitado disse a Moshé: Fale com Filhos de Israel. Diga-lhes para fazerem tsitsit nas pontas das suas roupas, ao longo de suas gerações. Peça-lhes que coloquem no canto tsitsit um fio azul roial. Este é o seu tsitsit. Olhe para isso e lembre-se de todas as mitsvot de ה׳. E cumpra-as, para que não vá atrás dos desejos do seu coração ou do que chamar a sua atenção, para que se lembre de cumprir todas as minhas mitsvot e ser santo para o seu Deus.

Se escutarmos, realmente escutarmos, o que a nossa tradição está nos dizendo — ela está afirmando que as nossas ações importam e têm impacto e é nossa responsabilidade cuidar pelo impacto das nossas ações. Quem assistiu a conversa ontem sobre Kohelet com os três rabinos da CIP e a rabina Nelly Altenburger [10] viu a relação que a rabina Nelly estabeleceu entre a destruição do Templo em Tishá b’Av e a construção da Sucá nesta época do ano. Com o Templo e sua estabilidade permanente, foram embora nossas certezas, nossa crença em um mundo no qual os sacrifícios seriam suficientes para sustentar nossa relação com o mundo. Uma sucá, com toda a sua fragilidade, é a resposta humana a um mundo que percebemos como vulnerável e em constante transformação. 

Eu ainda me lembro de quando levávamos de volta as garrafas de refrigerante de vidro pro supermercado e quando esta prática teve fim pela introdução das embalagens PET. Contrariando as palavras do Sh’má, nos deixamos sermos seduzidos pelos nossos olhos e principalmente pela conveniência. 

Pela conveniência de não ter que lavar, 
pela conveniência de não ter que guardar, 
pela conveniência de não ter que devolver,
pela conveniência de podermos agir sem considerarmos as implicações dos nossos atos para o futuro do planeta que deixaremos para nossos filhos.

Quem sabe, na sequência deste Hoshaná Rabá de 5781, escutemos nossas próprias súplicas, escutemos nossas próprias rezas, escutemos o que diz o Sh’má, e deixemos de idolatrar a conveniência.

Sucot chegou ao fim, o Livro da Vida, pelo que dizem por aí, está fechado. Mas os portões da tshuvá estão escancarados nos esperando. O mundo está gritando que espera nosso retorno e é só por teimosia que ainda não lhe demos ouvido.

Shabat Shalom e Chag Sameach

[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/fuvest-2018-candidato-chega-atrasado-perde-prova-e-culpa-problema-no-transporte-publico.ghtml
[2] Mishná Rosh haShaná 1:2
[3] Mishná Sucá 5:1
[4]  Isaías 12:3
[5]  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/02/sao-paulo-tem-novo-recorde-de-calor-em-2020-e-segunda-marca-mais-quente-da-historia-da-cidade.ghtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/10/estado-de-sao-paulo-registra-maior-temperatura-da-historia.shtml
[6]  https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/10/area-devastada-no-pantanal-e-maior-que-o-estado-de-alagoas-diz-inpe_116733.php
[7]  https://edition.cnn.com/2020/08/28/weather/rapid-fire-disasters-in-coronavirus-pandemic-weir-wxc/index.html
[8] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/08/21/argentina-monitora-10-nuvens-de-gafanhotos-risco-de-entrada-no-brasil-e-baixo.ghtml
[9] https://fore.yale.edu/Publications/Books/Religions-World-and-Ecology-Book-Series/Challenge-Environmental-Crisis
[10] https://youtu.be/wIY-BWFRMWk



sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma sinfonia para o ano novo!

Em uma conversa recente com o intelectual carioca Paulo Geiger que virou o terceiro episódio do podcast 5.8 [1], ele citou a frase “chadesh iameinu kekedem”, “renove os nossos dias como os outrora” [2] como evidência da constante e paradoxal busca judaica de transformação por meio  da tradição. Para ele (e eu concordo), o judaísmo conseguiu manter a si mesmo e seus valores relevantes ao longo dos séculos por ter tido a flexibilidade de se transformar continuamente.

Neste shabat temos uma leitura da Torá especial, por ser o primeiro dia de Sucot. Nela, Deus define alguns dos parâmetros básicos do calendário judaico: o shabat, Pessach, Shavuot, Rosh haShaná, Iom Kipur e Sucot [3]. Lendo esse texto em 5781, talvez não reconhecêssemos, pelas suas descrições, algumas das datas mencionadas: não se fala em entrega da Torá em Shavuot, da peregrinação pelo deserto em Sucot ou do começo do ano em Rosh haShaná. Todas essas, são interpretações rabínicas sobre o texto da Torá, evidência do processo que Paulo Geiger descreveu, de como mantivemos a relevância da tradição adaptando-a e atribuindo novos significados.

Como uma sinfonia bem composta, as festas judaicas dialogam entre si buscando harmonia e equilíbrio e suas mensagens têm se mantido incrivelmente atuais. O foco universal na liberdade do Pessach, por exemplo, é balanceado pela perspectiva particularmente judaica do pacto de Deus com nosso povo, simbolizado pela entrega da Torá que celebramos em Shavuot.

Nesta época do ano em que estamos, o foco na reflexão, na introspecção e na espiritualidade de Rosh haShaná e Iom Kipur levam a nosso crescimento pessoal mas poderiam nos cegar para a realidade do que acontece ao nosso redor, especialmente para os mais vulneráveis. Há um risco de, ao repetirmos o Unetanê Tokef e nos darmos conta da nossa própria fragilidade, desenvolvermos condutas que buscassem apenas à nossa própria salvação. Sucot dá resposta a esse risco e nos expõe às nossas fragilidades coletivas e do planeta, com foco em quem vive permanentemente em cabanas ou nas ruas.

Também as novas datas que os Rabinos incorporaram ao calendário judaico como parte de seu projeto de inovação por meio da tradição mantiveram sua relevância ao longo do tempo. Em Purim, entre outros assuntos, falamos de riscos da vida judaica na diáspora que tem sido especialmente verdadeiros nos últimos anos em várias partes do mundo: o risco de nos vermos sem poder algum e vulneráveis às autoridades do momento ou, de forma paradoxal e paralela, de sermos seduzidos pelo poder e abrirmos mão dos nossos valores. Em Chanucá, a festa em que buscamos trazer luz a um mundo cada vez mais tomado pela escuridão, questões parecidas se apresentam, dessa vez na terra de Israel: a possibilidade de respeitarmos as diferenças (e sermos respeitados) ao mesmo tempo em que dialogamos com outras culturas. A leitura rabínica de Tishá b’Av nos leva a considerar qual nosso papel para dar fim a uma cultura do ódio, no qual sermos indiferentes é sinônimo de conivência.

Dando ritmo a essa sinfonia, o Shabat marca, a cada semana, a possibilidade de apenas sermos. Com um longo respiro, buscamos nos centrar novamente, recarregando as baterias do corpo e as energias da alma. E cada maestro, cada solista, dão seus toques especiais à música, adequando-a aos tempos e à pluralidade da vida judaica.

Nesse ritmo, o calendário judaico tem o potencial de dar textura e significado ao nosso tempo -- mas depende de cada um de nós permitirmos que essa sinfonia faça parte da trilha sonora das nossas vidas. Quem sabe, 5781 é o ano em que você vai tentar fazer isso?

Shabat Shalom e Chag Sameach!


[1] https://5ponto8.fireside.fm/3
[2] Lamentações 5:21
[3] Lev. 23



terça-feira, 29 de setembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 3: Identidade Judaica: Gerações

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/3)

“Recriar o judaísmo para que continue o mesmo — o grande desafio de cada geração - significa trazê-Io de volta para dentro de nós, pois somos, em nosso corpos, mentes e espíritos individuais e comunitários. A única cerca, a única muralha que o protegerá’ como coisa viva, que o levará' para onde estivermos, como parte de nosso ser. Na geração das liberdades e do pluralismo, o judaísmo não e' carga nem responsabilidade. É um valor ao qual temos direito por herança. Que nos foi preservado para que o tenhamos para nós. E do qual podemos usufruir sem sacrifícios. Então terá sentido todo sacrifício para preservá-Io. E nossas comunidades, nossas instituições, muito mais que a proteção de seus muros, serão o espaço de nossa vivência, de nosso encontro, de nossa criação judaica."

Esse é um trecho do artigo Gerações, escrito pelo nosso convidado de hoje - Paulo Geiguer - publicado primeiro no Boletim da ARI em 1986 e depois na revista Devarim em 2011

Não por acaso, esse artigo foi publicado 2 vezes, com quase 30 anos de diferença e agora é citado aqui, no nosso podcast. Pois seus questionamentos continuam precisos, incisivos, provocadores, importantes e, principalmente, atuais.

Como nos transformar, como judeus, sem perder a essência? Como ser parte da comunidade judaica sem perder nossa própria autenticidade individual? Como sermos personagens ativos que, não simplesmente são levados pelos acontecimentos, mas que constróem sua história?

Nosso convidado desta semana é Paulo Geiger, um intelectual essencial da realidade judaica. Ensaísta, tradutor de autores israelenses fundamentais como David Grossmann e Amos Oz, redator de dicionários e enciclopédias, Paulo Geiger traz sua perspectiva e sua experiência sobre o que é ser judeu hoje no Brasil.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Produção Executiva e Edição: Marie Naudascher

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Dvar Torá: Sonhos que realinham nossos objetivos e nossa conduta (CIP)



No ano passado, eu fui convidado para dar uma palestra pra uma faculdade de enfermagem, cujos alunos queriam entender no que acreditam seus futuros pacientes judeus e quais cuidados específicos eles precisavam ter, especialmente nos casos de falecimento. Eu cheguei em cima da hora… a faculdade ficava em uma rua agitada, eu passei uma primeira vez procurando um lugar na rua onde parar e só achei um estacionamento lotado; dei a volta no quarteirão e, aí, encontrei um estacionamento recém-inaugurado que, desconhecido da maioria das pessoas, ainda estava a meia-lotação. O estacionamento tinha uma viela que levava a um bolsão de estacionamento. Orientado pelo sujeito que tomava conta, eu deixei meu carro na viela para poder sair mais facilmente e fui dar a minha palestra. 

Uma hora e meia mais tarde, eu saí da faculdade correndo, preocupado que o estacionamento fosse fechar. Que nada… o estacionamento estava cheio a 120% da capacidade. A viela em que eu tinha parado meu carro estava absolutamente tomada e não havia como tirar meu carro sem que todos os outros carros também saíssem.  Saí na rua e fiquei esperando com as outras pessoas que estavam alí. Descobri que a multidão que tinha chegado depois de mim era de fiéis de uma igreja evangélica que ficava na rua. As outras pessoas que esperavam comigo também tinham ido a um culto evangélico, um que tinha começado uma hora mais cedo e, por isso, tinha também terminado antes. Acabei conversando com eles. Descobri que o culto ao qual eles tinham ido dura, como regra, duas horas e que no seu centro há uma hora de pregação do pastor. Contei pra eles que se um rabino falar por uma hora sem parar, ele seria demitido durante o próprio shabat.

A grande exceção a essa regra foi Moshé rabeinu. O livro de D’varim, que estamos quase terminando, tem 11 parashiot que são basicamente três imensas prédicas de Moshé, relembrando dos episódios dos 40 anos anteriores vagando pelo deserto e preparando o povo para entrar na Terra de Israel. Nesta semana, a parashá é o início da terceira dessas prédicas, que começa com um poema encorajando o povo a corrigir seus caminhos, olhar para o passado consultando as gerações mais velhas e abandonar as práticas de idolatria a falsos deuses que eles adotaram ao longo dos anos [1]. 

Neste Shabat Shuvá em que a questão da t'shuvá, do retorno, está até no seu nome, há elementos demais nessa história para que deixemos passar batido. Depois de 400 anos em Mitsrayim, na terra das Águas Estreitas, o povo está retornando à Terra de Israel, quase chegando ao seu destino. Moshé encoraja que este retorno vá além da sua dimensão física e que o povo avalie também sua trajetória, as situações em que tinham adotado soluções fáceis e a se rendido à tentação de falsos deuses que ofereciam relações transacionais esporádicas ao invés de um pacto e do comprometimento mútuo que ele exigia. 

Em um verso no começo da parashá, Deus diz “זְכֹר יְמוֹת עוֹלָם בִּינוּ שְׁנוֹת דּוֹר־וָדוֹר”, “se lembre dos dias do mundo, considere os anos de geração em geração.” [2]  Shmuel Bornstein, um rabíno chassídico polonês do final do século 19, propôs que a palavra para anos, שנות, deveria ser lida como שינויים, mudanças [3]: “se lembre dos dias do mundo, considere as mudanças de geração em geração.” [4]

Para além da crise da Covid-19, nossas gerações vêm vivendo ritmos de mudanças que a maioria das gerações que nos precederam não chegaram nem perto. Pense nas mudanças sociais, tecnológicas e de valores dos últimos 150 anos. Pense em como o papel da mulher mudou, a integração dos judeus na sociedade foi radicalmente transformada, pense que o computador pessoal é um desenvolvimento dos últimos 50 anos, o smart-phone existe há menos de 15 anos. As tecnologias de vídeo-conferência, da qual passamos a depender nos últimos seis meses, estavam engatinhando no começo do século 21 e até poucos anos, funcionavam bastante mal ou eram muito caras. 

Quando mudamos, assumimos riscos — algumas vezes, acertamos em cheio; em outras, erramos feio. Em nossa época de mudanças intensas e frequentes, maiores são as chances de acharmos que a manipulação genética ou as novas técnicas da medicina moderna nos tornam semi-deuses; que a idolatria ao poder e ao dinheiro nos trará a felicidade com que sempre sonhamos; que nossa ascensão ao grupo social que almejávamos nos permite esquecer daqueles que eram nossos colegas quando éramos oprimidos. Neste ano, a velocidade das mudanças se acelerou ainda mais — e nosso processo de t'shuvá, que envolve, como diz nossa parashá, “se lembrar dos dias do mundo e considerar as mudanças de geração em geração,” é ainda mais necessário.

Mas eu quero focar em uma parte do processo de cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, e de t’shuvá sobre o qual falamos muito menos. Está também na nossa parashá: “לוּ חָכְמוּ יַשְׂכִּילוּ זֹאת יָבִינוּ לְאַחֲרִיתָם”, “se eles fossem sábios, considerariam isso, compreenderiam seu futuro.” [5] T’shuvá, retornar à melhor versão de nós mesmos implica, paradoxalmente, em pensar quem queremos ser, em vislumbrarmos qual será nosso futuro.

Ter um sonho nos permite saber pra onde caminhar mesmo que não consigamos chegar até o destino, teremos avançado durante a jornada. Em Pirkei Avot isto foi formulado da seguinte forma: “לֹא עָלֶיךָ הַמְּלָאכָה לִגְמֹר, וְלֹא אַתָּה בֶן חוֹרִין לִבָּטֵל מִמֶּנָּה”, “você não é obrigado a terminar a tarefa, mas também não tem liberdade para abandoná-la.” [6] Ao final da parashá, Deus instrui Moshé a subir no Monte Nevô, de onde ele poderia ver a Terra de Israel, mas nunca poderia entrar nela. Moshé liderou o povo para o sonho de conquistarem autonomia na terra que Deus tinha prometido aos seus patriarcas, mesmo sabendo que ele não faria parte desta conquista. O sonho, sabermos onde queremos chegar ou para onde retornar, é uma parte fundamental do processo de t’shuvá. A importância de ter um sonho que guie nossa conduta é expressa também pelo gato maluco de Alice no País das Maravilhas, que disse: “Se você não sabe aonde quer ir, não importa que caminho você tome.”

A cena de Moshé no alto da montanha vendo um sonho que ele nunca alcançaria em vida sempre me lembra uma outra cena famosa: Martin Luther King Jr. e seu famoso discurso: “I have a Dream”, “Eu tenho um sonho”, proferido ao final da Marcha sobre Washington em 1963. Nele, King detalhou seu sonho de uma nação mais justa: 

“Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado da sua crença: ‘Consideramos que essas verdades são evidentes por si mesmas, de que todos os homens são criados iguais.’ Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia até mesmo o estado do Mississippi, um estado sufocante com o calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que meus quatro filhos pequenos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter.” [7] Assassinado em 1968, Martin Luther King, assim como Moshé ,morreu antes de ver seu sonho se realizar.

Apesar de todas as mudanças, das video-conferências, dos smartphones e dos video-games, muitos dos nossos sonhos continuam inalcançados. Quase que como uma continuação da minha prédica de Rosh haShaná, na qual eu falei de alguns dos erros que estamos cometendo, eu quero formular aqui com vocês alguns dos meus sonhos — não porque eu ache que eles sejam universais e que vocês têm os mesmos sonhos que eu, mas como um exemplo de como podemos buscar esclarecer aonde gostaríamos de chegar para podemos traçar a melhor rota que nos levará até lá.

Este é o meu sonho:

Eu sonho com um mundo no qual a dignidade de toda pessoa, criada à imagem Divina, seja respeitada apesar das tentações de uma conduta diferente;

Eu sonho com um mundo no qual as oportunidades de cada pessoa não sejam determinadas pela família em que ela nasceu, pela cor da sua pele, por sua opinião política, por sua religião ou pelo seu órgão genital;

Eu sonho com um mundo no qual divergências levem ao crescimento, no qual o debate de ideias não se transforme em ataques pessoais;

Eu sonho com um mundo em que cada pessoa consiga investigar seus próprios privilégios e abrir mão deles, ainda que sempre seja difícil abrir mão de algo com o qual nos acostumamos ou que julgamos ser nosso por direito;

Eu sonho com um mundo em que os valores falem mais alto do que a forma como sempre fizemos as coisas, em que estejamos abertos a questionar nossas tradições e a criar algumas novas, sempre que a tradição estiver em oposição aos nossos valores;

Eu sonho com um mundo em que o Judaísmo sempre esteja ao lado dos oprimidos e dos vulneráveis e que ele consiga flexibilizar suas regras sempre que necessário para estar ao lado da viúva, do órfão e do estrangeiro.

Estes são os meus sonhos. Eu não tenho certeza que eu vou conseguir atingir algum deles na minha vida, mas se meus filhos chegarem perto, eu já me dou por satisfeito. Com a sinceridade, a verdade é que tem alguns dos quais eu me afastei em 5780. No meu processo pessoal de t’shuvá, reconhecer essas áreas e endereçá-las é parte essencial do processo de voltar a ser a melhor versão de mim mesmo. 

E você? Qual são os teus sonhos e como você tá na busca deles?

Shabat Shalom e Chatimá Tová! 


[1] Deut. 32:15b-18
[2] Deut. 32:7 
[3] https://www.myjewishlearning.com/article/the-times-are-a-changing/
[4] Deut. 32:7a
[5] Deut. 32:29
[6] Pirkei Avot 2:16
[7] https://kr.usembassy.gov/education-culture/infopedia-usa/living-documents-american-history-democracy/martin-luther-king-jr-dream-speech-1963/



domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9