sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Dvar Torá: Os Tempos Estão Mudando; Nossas Respostas Precisam Mudar (CIP)


Um velho ditado diz que estamos sempre lutando a batalha do ano passado. Como se a vida fosse um longo video-game, vivemos identificando padrões e atuando de acordo com o que aprendemos das nossas experiências passadas. As eleições nos Estados Unidos são um bom exemplo disso - depois de preverem a vitória de Hillary Clinton em 2016, os institutos de pesquisa se adequaram para não repetir os mesmos erros: corrigiram a amostragem para incluir o nível de instrução e recalibraram os pesos da amostra. Mesmo assim, erraram feio nas eleições de dez dias atrás: previram vitórias avassaladoras dos democratas, tanto para a presidência quanto para a Câmara e o Senado. Tudo indica que Biden tenha efetivamente vencido a eleição presidencial, mas  por uma margem muito menor que a prevista, e os resultados das eleições legislativas foram bastante frustrantes para os democratas. Ainda que os problemas de amostragem de 2016 não tenham se repetido, novos desafios apareceram, para os quais os institutos não estavam preparados.

Em muitos outros cenários, nossas condutas pessoais repetem essa abordagem de nos prepararmos mais para as situações que enfrentamos no passado do que para aquelas que estão à nossa frente.
Há pouco mais de vinte anos, eu cursei uma disciplina no meu mestrado em economia  em Israel chamada “Escolhas Dinâmicas em Cenários Ambíguos”. Parece um curso desenhado especialmente para o contexto em que vivemos hoje, em que situações inéditas se apresentam o tempo todo, desafiando a forma como tínhamos nos preparado olhando para trás.

E o pior acontece quando os mesmos desafios se apresentam e, mesmo assim, continuamos despreparados. Na mesma época em que fazia o curso de economia do qual falei, aconteceu um episódio que marcaria minha experiência com a sociedade israelense. Dois jovens que passavam em uma van por uma estrada pouco movimentada, viram um idoso andando pelo acostamento. Colocaram um pedaço de madeira para fora do carro de forma que ele atingisse a cabeça do idoso a alta velocidade. O idoso morreu na hora. A notícia saiu nos jornais, mas continuamos todos com nossas rotinas, sem nos importarmos com o que ela significava. Naquela sexta-feira, o rabino Meir Azari nos alertou a todos do risco de nos transformarmos em uma sociedade que aceita este tipo de brutalidade como se fosse normal. 

No último domingo, a ciclista e ativista Marina Kohler Harkot foi atropelada enquanto andava na sua bicicleta na Avenida Paulo VI em Pinheiros. O motorista do carro que a atingiu fugiu sem dar socorro. Marina morreu no local [1]. A verdade é que eu só ouvi falar deste incidente ontem, e olha que eu checo sites de notícias de forma compulsiva ao longo do dia. Simplesmente, não era uma das notícias no meu radar. Letícia Lindenberg Lemos, colega de Marina no ciclo-ativismo e no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, disse a respeito do acidente: “Precisamos avançar na ideia de que somos todos seres humanos. Quando a pessoa que atropelou a Marina foge, é um sinal de que a humanidade está fugindo dessa pessoa. Não tem empatia pelo próximo para dar o mínimo de socorro.” [2] A verdade é que a humanidade foge de todos nós que seguimos com nossas vidas como se Marina não tivesse sido morta de forma covarde, assim como se tantas outras pessoas são todos os dias na nossa cidade.

O principal suspeito de atropelá-la se apresentou à polícia dois dias depois do ocorrido, quando já estava valendo a lei que proíbe prisões nos cinco dias anteriores a eleições. Vivemos resolvendo os problemas do passado sem nos darmos conta das questões que enfrentamos no presente. Em algum momento, era comum que autoridades prendessem apoiadores de oponentes políticos para impedir que eles participassem das eleições. Como a democratização do voto, esta prática se tornou menos comum e hoje poderíamos estabelecer proteções que fossem concedidas caso-a-caso. No entanto, a regra criada para proteger a população dos desmandos de seus governantes acabou se virando contra nós mesmos e acabou protegendo a falta de empatia e de socorro.

Na parashá desta semana, após a morte de Sará, Avraham trata da compra de meharat hamachpelá, a caverna em que ela seria enterrada. Na negociação entre Avraham e Efron, o hitita a quem a caverna pertencia,  Avraham diz: “נָתַתִּי כֶּסֶף הַשָּׂדֶה קַח מִמֶּנִּי וְאֶקְבְּרָה אֶת־מֵתִי שָׁמָּה”, “eu te dei o dinheiro pelo campo, tome de mim e eu enterrarei minha falecida esposa lá.” [3] Prestem atenção: “קַח מִמֶּנִּי”, “tome [o dinheiro] de mim.” Em outra passagem, sem nenhuma relação com essa, no final da Torá, o texto trata do divórcio e diz: “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ וְהָיָה אִם־לֹא תִמְצָא־חֵן בְּעֵינָיו כִּי־מָצָא בָהּ עֶרְוַת דָּבָר וְכָתַב לָהּ סֵפֶר כְּרִיתֻת וְנָתַן בְּיָדָהּ וְשִׁלְּחָהּ מִבֵּיתוֹ׃”, “quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido e se ela não mais lhe agradar por ele encontrar nela algo que o incomode, ele escreverá um documento de separação e o dará na mão dela e a mandará embora da sua casa.” [4] Deixemos de lado por um segundo todos os incômodos causados por este segundo texto… eu quero que você prestem atenção no comecinho do verso, que diz “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ”, ““quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido”. Em um verso diz “tome [o dinheiro] de mim” e no outro diz “quando um homem tomar uma mulher”. O uso do verbo לקחת, “tomar” nesses dois versos, que não tem nenhuma outra relação entre si, faz com que os sábios do Talmud juntem as duas passagens e concluam que, da mesma forma que o uso do verbo em uma instância caracteriza uma transação financeira, também na outra instância está caracterizada uma transação financeira. Dessa forma, com uma analogia que eu caracterizaria como bastante forçada, nossos sábios estabeleceram que o casamento é uma transação comercial. Apesar de todo o desconforto que estes conceitos nos trazem, lidos em seus contextos históricos, eles representam um avanço com relação ao que era praticado em outras sociedades. Ao estabelecer que as dimensões financeiras do casamento, os rabinos foram capazes de garantir proteção financeira para mulheres divorciadas e para viúvas, ainda que não tenham chegado nem perto do tipo de relação igualitária que buscamos em nossas relações contemporâneas. Através da sua analogia linguística forçada, os rabinos foram capazes de estabelecer proteções que eram um avanço em relação a outros períodos.

A rabina Rachel Adler, uma querida professora, afirma que “[os] textos descrevem o casamento de uma jovem virgem como uma transação comercial privada na qual os direitos sobre a mulher são transferidos do pai para o marido” [5]. O que foi solução para a situação de divorciadas e viúvas, hoje virou um problema. Os movimentos judaicos plurais têm se adaptado e revisto a liturgia e o texto da ketubá, o contrato matrimonial judaico. Já falei aqui do lindo trabalho desenvolvido pelo grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP para proteger vítimas de violência doméstica na nossa comunidade. Precisamos fortalecer estas iniciativas e fazer mais para que encorajemos relações igualitárias na nossa comunidade, inclusive do ponto de vista ritual. Não é possível que continuemos usando respostas para problemas do passado quando enfrentamos situações completamente distintas. Não é razoável que mantenhamos uma resposta formulada há mais de 1500 anos para outro problema simplesmente porque ela é tradicional….

Depois de amanhã, domingo, dia 15 de novembro, teremos eleições para prefeito. Com a pandemia, com a diminuição da audiência na TV aberta, com a mudança de hábitos , acabamos todos prestando menos atenção a quem são os candidatos a prefeito e a vereador e como eles pretendem endereçar os problemas do presente e do futuro. A Covid criou novos desafios para a cidade de São Paulo, explicitando o vergonhoso abismo na qualidade dos serviços públicos entre aqueles que vivem na região central e quem vive nas periferias. Que respostas apresentadas pelos candidatos tem o potencial de ajudar a criar uma cidade mais humana, mais solidária e mais justa? Entidades judaicas como a FISESP e o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil entrevistaram candidatos e nos oferecem uma boa oportunidade de nos informarmos mais antes das eleições. É fundamental que saiamos da nossa inércia e que enfrentemos os problemas atuais da cidade com coragem, criatividade, honestidade e justiça!

Shabat Shalom


[1] https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/11/suspeito-de-atropelar-e-matar-ciclista-em-sp-ainda-nao-foi-encontrado-pela-policia.shtml
[2] https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/11/por-que-falar-do-legado-de-marina-harkot-e-tao-urgente-quanto-falar-de-sua-morte.html
[3] Gen. 23:13
[4] Deut. 24:1
[5] Rachel Adler, “Engendering Judaism”, p. 171.



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