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sexta-feira, 2 de julho de 2021

Dvar Torá: Paz e justiça -- desejos e medos (CIP)


Quem participa do minián diário online da CIP, já deve ter notado que tem uma parte do serviço da qual eu gosto muito. Vem logo do Barechú, uma benção que agradece Deus, יוצר אור ובורא חושך, עושה שלוֹם ובורא את הכל, “que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria tudo”. A benção busca inspiração do Livro de Isaías na qual a tensão entre opostos fica ainda mais evidente. Lá, Deus se auto define como “aquele que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal.” [1]

Luz, escuridão; paz, mal - aparentemente, categorias estanques e bem definidas que nos ajudariam a conduzir uma vida de significado. A parashá desta semana, Pinchás, nos convida a reconsiderar esta perspectiva. Logo no comecinho da parashá, o texto dá continuidade a uma história que tinha começado na parashá da semana passada, Balak. Deus manifesta seu desconforto com o fato de homens israelitas estarem se envolvendo com mulheres moabitas e adotando suas práticas religiosas. Pinchás, um sobrinho-neto de Moshé, vê um homem israelita trazer uma mulher midianita ao acampamento e assassina os dois. Como resultado deste ato de violência, Pinchás é recompensado por Deus com um ברית–שלום, um “pacto de paz.” [2]

Se paz é, como indica Deus no verso de Isaías, o oposto de “mal”, qual paz poderia resultar de um ato de violência?

Às vezes, usamos tanto algumas palavras que paramos de nos preocupar com o que elas de fato significam. O que será que é paz? Ou, em um contexto judaico, o que será que é שלום? No dicionário, aparecem 4 significados para o verbete:
  • שַׁלְוָה, מְנוּחָה, שֶׁקֶט, “calma, descanso, silêncio”;
  • מַצָּב לְלֹא מִלְחָמָה, יַחֲסֵי יְדִידוּת, “estado sem gerras, relações de amizade”;
  • מַצָּב, מַעֲמָד, “estado, condição”;
  • נֻסַּח בְּרָכָה מְקֻבָּל בִּפְגִישַׁת בְּנֵי אָדָם, “fórmula de saudação comum quando duas pessoas se encontram”
O que nenhuma destas quatro definições indicam é a relação morfológica entre שלום e שלם, ou entre paz e completo. Se pensarmos um pouco, nos daremos conta de que meia-paz é o mesmo que paz nenhuma. O Rappa, uma banda de reggae brasileiro expressou isso especialmente bem na sua música “Minha Alma”, de 1999:

(…) paz sem voz não é paz é medo
às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz 
qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz [3]

Para quem, hoje, no Brasil, paz é uma realidade? De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, em 2019, 6375 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais [4], quase 80% delas negras. Isso quer dizer que quase 14 negros são mortos pela polícia por dia no Brasil. Dá pra falar em Paz?! [4]

Em 2020, 175 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, o que nos coloca na vergonhosa posição de líderes no mundo no assassinato de pessoas transsexuais [5]. Os povos originários têm tido seus direitos atacados, suas reservas invadidas e até o marco legal que os protege questionado nos últimos anos. Quem tem paz no Brasil de hoje?

Nas manifestações que se seguiram ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, um grito de guerra antigo e comum dizia “No Justice, no Peace”, “Sem Justiça, não haverá Paz.” [6]

Diferentemente de Luz e Escuridão, Paz e Mal, Justiça e Paz não parecem termos que se contradizem, como este slogan parece indicar — mas há uma tensão. Muitas vezes, nossa “Paz” é importunada quando segmentos pra quem essa ideia é um sonho distante nos sacodem da dormência em suas demandas por “Justiça”. “Paz”, de alguma forma, parece ser um privilégio de quem tem assegurada a “Justiça” ou de quem é beneficiado pela “Injustiça”. Uma outra música popular, desta vez de Mooki, rapper isralense, מדברים על שלום, "Falam sobre Paz", de 2001, trata dessas questões:

Todos falam sobre a paz, mas ninguém fala sobre a justiça
Para um é o paraíso e para o outro o inferno
Quantos dedos estão sobre o gatilho?
Então ficamos sozinhos, falamos com a parede – não há com quem falar
Se ao menos entendêssemos que todos somos um – veremos tudo se juntar [7]

Nossa parashá também lida com questões de Justiça, ou da falta dela. Tselofchad, um membro da tribo de Menashé, morre, deixando cinco filhas e nenhum filho. Pelas regras vigentes, apenas filhos homens recebiam herança. As filhas de Tselofchad pediram aos líderes israelitas, Moshé entre eles, que reconsiderassem a questão, porque isso implicaria que a família ficaria sem suas terras. Deus escuta seus apelos e decide que seu pedido é justo e que, no caso da morte de um homem sem herdeiros homens, as filhas receberiam a herança.

Em geral, apontamos para a solução desta questão como exemplo de flexibilidade da legislação bíblica e da possibilidade de sua transformação. E, mesmo assim, a solução parece incompleta. Assim como não existe meia paz, não pode existir meia justiça — e sistemas baseados em privilégios a certos grupos não podem ter nem paz, nem justiça. Um sistema que privilegie os filhos, no qual as mulheres só tenham direito à herança quando não tiverem irmãos homens nunca pode ser considerado justo. E em um mundo em que a justiça de alguns está ameaçada, a paz de todos está em risco.

Nossa parashá dá tons e complexidade a temas que muitas vezes tratamos como óbvios. Paz não é óbvia, nem tampouco justiça, especialmente quando vivemos em realidades de desigualdade extrema, na qual o sexo, a cor da pele ou o CEP da residência têm pesos desproporcionais não só sobre como nascemos, mas também sobre a vida e a morte que teremos. A paz que você quer no seu bairro pode ser inconcebível em outra parte da cidade; a justiça da periferia inviável para quem vive no centro.

Como explicar que Pinchás tenha recebido o pacto de paz e que a solução determinada para as filhas de Tselofchad tenha sido considerada justa? 

Em um artigo de uma professora querida, a rabina Rachel Adler, ela diz que a Torá foi escrita com fogo preto sobre fogo branco, mas que o documento que temos hoje é escrito com tinta sobre a pele de animais mortos.  E, mesmo assim, como um milagre, o fogo divino se faz presente nos nossos rolos de Torá. Em nossas leituras, continuamos buscando — nem sempre com sucesso — estas fagulhas divinas no texto, insights que nos ajudem a iluminar nossas vidas. [8]

Da minha parte, eu acho que a Torá nos provoca para que debatamos e continuemos recebendo o prêmio — para que inquiramos e busquemos  construir sociedades em que, de fato, tenhamos paz e justiça para todos — ou nas palavras do salmista, até o dia em que a bondade e a verdade se encontrem; que a justiça e a paz se beijem. [9]

Que assim seja, ainda nos nossos dias! Shabat Shalom!



sexta-feira, 9 de abril de 2021

Dvar Torá: Três Desafios ao Legado da Shoá (CIP)


No fim de semana passado eu assisti o novo filme do Tom Hanks no Netflix, News of the World [1]. Sem dar muito spoiler, é a história de um veterano da Guerra Civil americana que viaja pelas cidades dos Texas lendo e interpretando as notícias dos jornais para pessoas que não sabiam ler ou que não tinham acesso a jornais. De alguma forma, é um precursor do William Bonner e da Renata Vasconcelos.

Em uma de suas viagens, ele encontra uma menina abandonada à beira da estrada. Seus documentos contam que ela havia sido sequestrada por uma tribo indígena e tinha crescido na tribo — a história dela é a história de dois massacres: o massacre dos seus pais pela tribo indígena e o massacre da tribo pelo exército branco. É nesta condição que ela é encontrada à beira da estrada. Em determinado ponto da história a menina e o leitor de notícias visitam uma velha casa abandonada, a impressão é que o lugar em que sua família foi morta. Ao deixar a casa para trás, o capitão Kidd, o personagem de Tom Hanks, diz para Johanna, a menina órfã: “Eu quero te afastar de toda esta dor e toda esta matança. Te deixar livre disso. Reviver não é bom. Você precisa esquecer isso, seguir em frente. Siga esta linha sem olhar para trás.” Johanna, balança a cabeça e lhe responde: “não. Para seguir em frente, você deve primeiro se lembrar.”

Yehuda Kurtzer, presidente do Instituto Shalom Hartman na América da Norte e autor do livro “Shuva, o futuro do passado judaico”, escreveu na introdução desta sua obra que “o calendário judaico apresenta uma ‘temporada da memória’ longa e fortemente ritualizada, que começa para valer no Shabat Zakhor, o Shabat do “Lembrar" imediatamente antes de Purim. Exatamente um mês depois, chega Pessach e suas encenações, cumprindo nossa obrigação de nos ver vivendo um momento-chave no passado judaico. Entre Pessach e Shavuot, marcamos uma espécie de período de luto prolongado para lembrar os alunos mortos de Rabi Akiva, um período que no passado mais recente foi pontuado com Yom HaShoah, Dia da Lembrança do Holocausto e Yom HaZikaron, o dia do memorial de Israel para seus soldados caídos. Depois de Shavuot, que marca o aniversário da entrega da Torá, o período da memória se esvai.”

Nós estamos no meio deste período da memória. Ontem, 5ª feira, foi Iom haShoá, o dia em que ritualmente lembramos dos 6 milhões de vidas ceifadas antes da hora pelo simples fato de serem judias.

Pouco mais de setenta e cinco anos do final de Segunda Guerra e da revelação total dos crimes praticados pelos nazistas, quando o número de sobreviventes ainda em vida diminui a cada dia, a memória da Shoá parece também se esvair. 

Eu quero falar hoje sobre três ameaças a que o legado da Shoá seja plenamente mantido.

A primeira ameaça são os negadores do Holocausto. Apoiados em teorias antissemitas e da conspiração e em jogos políticos sujos, há quem negue que a estado nazista e seus aliados tenham desenvolvido um sistema que primava pela eficiência no esforço de matar inocentes. Parte deste esforço vêm de pessoas que duvidam que a Terra seja redonda, que a humanidade tenha chegado à Lua ou que acham que as vacinas contra Covid sejam, na verdade, uma forma de nos controlar remotamente. É resultado de mentiras repetidas tantas vezes que as pessoas começam a duvidar se elas não têm um fundo de verdade. É resultado de uma visão de mundo alimentada e manipulada por muitas fontes que imagina uma realidade de dominação e abuso de poder em que poucos, em geral judeus, controlam todos os recursos. Incentivando esta narrativa, alguns estados como o Irã, em disputa direta com o Estado de Israel, que acreditam que seu conflito será resolvido ou minimizado se os judeus forem hostilizados em todo o mundo. Contra essa ameaça, precisamos continuar insistindo em educação e em rebater cada uma das mentiras — além de trabalhar com as empresas de mídia e, em particular com as empresas de mídia social, para impedir que elas sejam replicadas.

A segunda ameaça à memória da Shoá é a sua banalização.  Comparações pouco efetivas em que chamar alguém de nazista equivale a usar um palavrão, sem que haja qualquer elemento que justifique a analogia. Soldados israelenses retirando colonos judeus de assentamentos na Faixa de Gaza foram comparados a soldados nazistas por aqueles que se recusavam a sair; políticos que decretaram toques de recolher durante a atual pandemia de Covid pensando no bem-estar da população por quem eram responsáveis foram comparados a nazistas. Pode-se debater se a decisão de unilateralmente retirar os assentamentos de Gaza ou decretar toques de recolher eram as decisões políticas corretas em cada um destes contextos, mas eu não consigo entender de que forma a acusação de nazista está relacionada às atitudes que são criticadas. Quando a comparação com o Nazismo ou com a Shoá passa a valer para tudo, ela passa a não ter mais relevância alguma. Ela perde seu poder de persuasão e banaliza o genocídio e o sofrimento profundo que estão associados a este período histórico.

A terceira ameaça não vem da negação ou da banalização da memória da Shoá, mas da sua sacralização. Analogias e metáforas funcionam porque descrevem a realidade apelando à nossa capacidade de estabelecer relações que vão além da identidade perfeita. Quando, frente a um mal-estar emocional, eu digo que estou sentindo um nó no estômago, é óbvio que meu estômago não está literalmente contorcido em formato de nó. Quando, em uma analogia dos anos 80, diziam que São Paulo era a Bélgica do Brasil, não era porque aqui falássemos francês e alemão. O terceiro risco à memória da Shoá é o de não permitirmos que as lições que aprendemos deste episódio terrível nos sirvam também em outros momentos históricos — mesmo que as soluções genocidas não venha de um Adolf Hitler, mesmo que as vítimas não sejam mais os judeus, mesmo que técnica de extermínio não envolva câmaras de gás e fornos crematórios. Ou seja, mesmo que não exista uma identidade perfeita entre a realidade contemporânea e o regime nazista dos anos 30 e 40, precisamos ser capazes de adotar paralelos entre estes períodos históricos. 

Vários são os testemunhos que dizem que mais que o ódio nazista, o que contribuiu para o genocídio foi o silêncio e a passividade do resto da população. Será que podemos usar esta lição e aplicá-la quando a vida de grupos inteiros estão em risco hoje em dia? Será que podemos educar as novas gerações dentro de princípios que discriminar baseado em crenças religiosas ou posições políticas não nos leva a construir uma sociedade inclusiva? Será que podemos defender o pluralismo de ideias como uma excelente ferramenta, talvez a única, para que sociedades e regimes políticos reconheçam suas mazelas e adotem ações corretivas? Será que podemos perceber que desumanizar aqueles de quem discordamos, chamando-os de vermes, ratos ou comparando-os ao vírus nos aproxima perigosamente da conduta da propaganda nazista e abre a porta para que alguém proponha uma solução fácil e violenta para nos livrarmos deste tipo de gente?! 

Ontem, lembramos das vidas de 6 milhões de seres humanos judeus que tiveram  sua humanidade negada — o legado da Shoá precisa ser o de lutar pela humanidade de todos, o tempo todo — sem negar sua veracidade histórica, sem banalizar sua memória e sem congelá-la no tempo. Nunca o mundo implorou tanto para que seja assim.

Shabat Shalom.


[2] Yehuda Kurtzer, “Shuva: the Future of the Jewish Past”, Brandeis University Press, 2012, location 172.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Podcast "Podfalar Em Companhia" - Ed. 71 (Jesuítas Brasil)

(originalmente postado em https://soundcloud.com/jesuitasbrasil/pode-falar-0)

A fim de auxiliar no diálogo sobre a democracia e a cidadania no país, convidamos o rabino Rogério Cukierman, que integra a Congregação Israelita Paulista (CIP), para falar sobre as colaborações que as religiões podem estabelecer no exercício da cidadania e da diversidade de perspectivas entre as comunidades religiosas. O rabino também abordou o papel do judaísmo no contexto de exclusão e da pandemia do coronavírus.

Ouça o podcast dessa edição do Em Companhia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 8: Pontes Judaicas: Judaísmo & Direitos Humanos

 (originalmente publicado em: http://5ponto8.fireside.fm/8)

Nos primeiros onze capítulos da Torá, não há nada que seja exclusivo ao povo judeu. São nesses capítulos que aparecem as famosas histórias de Adão e Eva, da Arca de Noé e da Torre de Babel. É só no capítulo 12, com o começo da história do patriarca Avraham que começa a narrativa específica judaica. Mesmo assim, nos nossos serviços religiosos e na educação judaica, falamos muito mais das narrativas claramente judaicas da Torá do que seu início. O que isso significa para o equilíbrio entre os aspectos universais e particulares dentro do Judaísmo?

E numa tradição que fala tanto em obrigações, de que forma os direitos são valorizados?

Direitos Humanos, este é o tema do nosso episódio de hoje. Nossos convidados são Rafael Reuben, assistente jurídico da missão israelense em Genebra e Juana Kweitel, diretora-executiva da Conectas, ONG de direitos humanos.

Notas do episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Luan Zanholo e Rogerio Cukierman

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Eu sou um Racista em Desconstrução: um pedido de desculpas pra Iaiá (CIP)


Quando eu era pequeno, eu tinha uma babá. O nome dela era Maria, mas eu a chamava de Iaiá e o nome acabou pegando. A foto da qual eu mais me lembro dos meus primeiros anos sou eu aos dois anos dentro do mar, acho que em Santos, o barrigão pra fora, um enorme sorriso malandro no rosto — e a Iaiá no fundo, de vestido, até os joelhos dentro do mar. Nessa idade, eu dividia o quarto com o meu irmão e lá só tinham as nossas duas camas. Quando eu ficava doente, a Iaiá deitava no chão pra me colocar pra dormir e estava lá caso eu chorasse no meio da noite.

Em 1976, quando eu tinha cinco anos, passou na TV um dos maiores ícones da teledramaturgia brasileira. A novela “Escrava Isaura” contava a história de uma escrava por quem o senhor da fazenda se apaixona. Isaura era branca mas todos os outros escravos retratados na trama eram pretos; pretos assim como a Iaiá. Vendo aquela realidade e o que acontecia na minha casa, eu logo entendi qual era a regra do jogo. Fui conversar com a minha mãe e, muito sério, pedi pra ela que, quando chegasse a hora de dar a alforria pra Iaiá, ao invés disso, ela desse a Iaiá pra mim.

Eu conto essa história pra me juntar a uma série de outras figuras que se declararam “racistas em desconstrução”.  Fabio Porchat, um dos criadores da iniciativa escreveu “É chocante e desconfortável, mas é a verdade. É essencial e urgente que eu diga isso antes que mais vidas sejam prejudicadas. Carrego em mim preconceitos estruturais e estou aqui pra dizer que participei dessa construção nociva, e, de forma perigosamente sutil, absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência. Não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida, mas a partir de agora eu sou um racista  em desconstrução, e começo o trabalho de transformação.” [1]

Eu conto a história da Iaiá com vergonha, mas ciente de que eu preciso assumir minha história se eu quero o direito de sonhar com um país diferente. Eu conto essa história porque, apesar da minha barriga estar perigosamente parecida àquela que eu tinha aos dois anos e de gostar do sorriso malandro na foto, eu não quero mais me reconhecer na conduta daquele menino e para isso é necessário um profundo processo de t’shuvá.

A gente costumar associar t’shuvá às Grandes Festas, mas é um processo que precisa acontecer o ano todo. T’shuvá, que muitas vezes é traduzido por arrependimento, é muito mais do que isso; é um processo sobre o qual a tradição judaica se debruça com especial atenção. Na sua origem, o termo quer dizer “retorno” e representa o nosso esforço para retornarmos à melhor versão de nós mesmos, de corrigirmos nossas ações quando erramos, repararmos os erros que causamos e garantirmos que eles não voltem a acontecer. No começo de todo processo de t’shuvá está o reconhecimento do erro…

Infelizmente, essa talvez seja a parte mais difícil. Eu amava a Iaiá profundamente e o sorriso no meu rosto na foto que eu mencionei evidencia isso. Seria fácil me esconder atrás desse amor e dizer que ela era como se fosse da família, que o meu pedido para minha mãe tinha sido o jeito de uma criança de cinco anos expressar seu amor pela babá. É bem possível que fosse isso mesmo, mas era também resultado do racismo estrutural em que vivemos e no qual eu fui criado, em que aquela moça preta que morava na minha casa era sujeitada constantemente, inclusive por mim e pela minha família, ao preconceito naturalizado pela nossa cultura.

O primeiro passo para reconhecer o erro é parar de dizer que a Iaiá era parte da família, porque ela não era. Quando íamos jantar fora, ela não ia; quando viajávamos, ela só era convidada se fosse para tomar conta de mim; quando eu ia soprar a velinha do bolo de aniversário, ela nunca esteve lá na frente, junto com meu pai e minha mãe. A Iaiá era uma babá querida, cuja subjetividade foi muitas vezes negada, que foi objetificada, mas esses erros nunca foram reconhecidos sob a desculpa de que ela “era quase da família”.

Sim, eu sou um racista em desconstrução, tentando iluminar os aspectos da minha biografia dos quais não me orgulho para poder lidar com eles.

O patriarca Iaacov tem uma história parecida. Seu nome ao nascer, Iaacov, numa tradução livre, quer dizer “enganador”. Iaacov (יעקב) vem de ekev (עקב), “calcanhar”, porque ele nasceu agarrando o calcanhar de seu irmão gêmeo na tentativa de passar na frente na hora do parto e ser o filho primogênito. Iaacov só deu um prato de ensopado de lentilhas para seu irmão faminto quando ele prometeu lhe entregar em troca seu direito à primogenitura; Iaacov enganou seu pai e se fez passar pelo irmão para receber a benção que era destinada ao outro; quando Iaacov sonhou com os anjos subindo e descendo uma escada, ele acordou e tentou fazer uma barganha com Deus: “se Deus estiver comigo e me proteger no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então ה׳ será o meu Deus.” [2] Relacionamentos não eram o forte do nosso patriarca e ele avaliava toda pessoa que encontrava de acordo com a utilidade que tinha para seu plano. 

Depois de passar 20 anos fugindo da ira do seu irmão, Iaacov resolveu enfrentar seus erros e voltar para a terra dos seus pais. Seu amadurecimento parece evidente na forma como ele fala com Deus no comecinho da nossa parashá: 

קָטֹנְתִּי מִכֹּל הַחֲסָדִים וּמִכָּל־הָאֱמֶת אֲשֶׁר עָשִׂיתָ אֶת־עַבְדֶּךָ 
כִּי בְמַקְלִי עָבַרְתִּי אֶת־הַיַּרְדֵּן הַזֶּה
וְעַתָּה הָיִיתִי לִשְׁנֵי מַחֲנוֹת׃
Eu não mereço os favores nem a bondade com que Você tratou teu servo. 
Quando atravessei este Jordão, eu tinha apenas um bastão, 
agora possuo dois acampamentos. [3]

O processo de amadurecimento de Iaacov é endereçado de forma mais enigmática alguns parágrafos depois. Iaacov está sozinho ao lado de um rio quando um homem aparece e os dois brigam durante toda a noite. Quando o Sol começa a nascer, Iaacov pede uma benção ao sujeito, que vem na forma de uma troca de nome. “Seu nome não será mais Iaacov, mas Israel, pois você lutou com Deus e com homens e prevalesceu.” Mesmo tendo sobrevivido, Iaacov saiu desta luta machucado na perna e passou a andar mancando a partir de então. [4]

A tradição tem tentado há séculos encontrar algum sentido nessa história. Alguns comentaristas acreditaram que Iaacov lutou com o anjo da guarda de Essav, seu irmão [5]. Outros, optaram por analisar o texto como se fosse um sonho, usando uma abordagem psicanalítica. Nesta visão, o oponente é simultaneamente Essav, Itzchak e Deus, pessoas que Iaacov feriu durante sua vida e com as quais ele se reconcilia por meio da interação com o “homem” [6].

Em um texto que eu escrevi no primeiro ano da minha educação rabínica, eu disse o seguinte: 

É lá, nas margens do Iabok, que ele viu Deus face a face. Ele vê a pessoa que se tornou, o trapaceiro, o enganador, alguém que não consegue desenvolver relacionamentos com as pessoas ao seu redor e que está sempre fugindo em vez de enfrentar seus problemas. Ele sonha com um homem, que é simultaneamente um anjo, Deus e o próprio Iaacov. Ele vê um Deus que “forma a luz e cria as trevas, [que] faz a paz e cria o mal” [7]. Ele finalmente entende seu papel, a responsabilidade de escolher entre o certo e o errado. É um processo doloroso, pois Iaacov tem que reconhecer todos os erros que cometeu. Ao amanhecer, uma parte dele quer acordar desse sonho, juntar-se à sua família e seguir com a vida, mas Iaacov resiste à tentação e continua lutando consigo mesmo neste processo de busca da alma, até sentir que vale a pena as bênçãos que ele recebeu. Em algum momento, o “homem” pergunta seu nome e, chorando, ele responde “Iaacov, o enganador”, e a resposta é “você não precisa mais ser um enganador; seu nome será Israel, porque você lutou com Deus e consigo mesmo e se tornou uma pessoa melhor. ” Intrigado, Iaacov pergunta “e quem é você, para mudar meu nome?”, “Você não precisa perguntar, você sabe quem eu sou” foi a resposta. Iaacov reconheceu a natureza transformadora da experiência que teve nas margens do Iabok e chamou o lugar de Peniel, porque lá, pela primeira vez, ele teve a coragem de se olhar no espelho e, ao fazer isso, viu a face de Deus.

Mas Iaacov não se tornou uma pessoa perfeita depois daquele dia. Seu mancar o lembrou de que somos todos seres humanos e todos temos fracassos, mas precisamos tentar se quisermos melhorar. Quando o sol nasceu, terminou uma longa noite na vida de Iaacov.

Nos últimos meses, todos temos tido a chance de nos olharmos no espelho e o resultado nem sempre é satisfatório. Individualmente e como sociedade, temos visto muitas mazelas na imagem que reflete quem somos. A questão da injustiça racial tem gritado especialmente alto para mim. O assassinato do João Alberto Silveira Freitas no Carrefour em Porto Alegre foi só a ponta de um iceberg gigantesco. Pior: não fomos para as ruas, não interrompemos nossas rotinas. Alguns de nós pararam de comprar no Carrefour, como se isso fosse corrigir a profunda desigualdade racial em que vivemos e continuamos com nossas vidas.

Eu sei que eu já falei de racismo há seis meses, quando George Floyd foi assassinado por um policial nos Estados Unidos — mas não dá pra marcar essa caixinha como endereçada e continuar com as nossas vidas como se uma prédica tivesse cumprido sua função. Palavras são só palavras e é nas nossas ações que esta questão será decidida: nas nossas condutas pessoais e nas políticas comunitárias que resolvermos implementar. Que ações vamos tomar para diminuir o racismo na nossa comunidade? Na nossa cidade? No nosso país?

Outro dia alguém perguntou como se chama alguém sentado a uma mesa com vários nazistas, onde os comentários antissemitas correm soltos sem serem contestados. “Nazista” é o nome que se dá a uma pessoa assim, foi a resposta. De forma similar, não podemos permanecer passivos quando comentários racistas são feitos na nossa frente ou nas nossas instituições — se não formos ativamente antiracistas, então estaremos sendo coniventes com a propagação do ódio, estaremos sendo racistas também.

O conflito de Iaacov, que na minha leitura representa seu primeiro encontro verdadeiro consigo mesmo, o deixou marcado pelo resto da vida. O encontro não foi fácil e deixou sequelas — re-examinar nossas condutas tampouco é agradável mas é a única alternativa viável para crescermos como indivíduos e como sociedade. Que este seja o nosso caminho….

Shabat Shalom!


[1] https://blogs.ne10.uol.com.br/social1/2020/08/08/fabio-porchat-cria-campanha-sou-um-racista-em-desconstrucao/
[2] Gen. 28:20-21
[3] Gen 32:11
[4] Gen. 32:23-33.
[5] Por exemplo, Rashi e Nehama Leibowitz (1972). Studies in the Book of Genesis: In the Context of Ancient and Modern Jewish Bible Commentary (A. Newman, Trans.). Jerusalem: World Zionist Organization, Department for Torah Education and Culture, p. 72.
[6] Vonck, P. (1984). The crippling victory: The story of Jacob’s struggle at the river Jabbok (Genesis 32:23-33). African Ecclesial Review, 23, p. 75-87. 
[7] Isaías 45:7


A violência contra a mulher e o silenciar das vítimas

Nos últimos tempos, tem estado em moda a discussão de quem pode falar pelos marginalizados. Será que só judeus podem falar sobre a Shoá? Que só negros podem falar de racismo estrututal, que pessoas fora do universo LGBT+ não podem se manifestar por uma sociedade mais inclusiva?! Pessoalmente, eu acho que quanto mais vozes se juntarem pela construção de uma sociedade mais inclusiva e que valorize sua diversidade, melhor estaremos — mas há algo realmente estranho quando os segmentos oprimidos são excluídos da discussão sobre sua própria opressão. Imaginem uma conferência para discutir antissemitismo da qual judeus não façam parte; imaginem uma mesa redonda para falar de racismo em um canal de TV a cabo da qual não participe nenhum jornalista negro…

A parashá desta semana, Vaishlach, traz dois episódios de violência contra mulheres: no primeiro deles, Shchem, um morador da terra de Cnaán, violenta Diná, filha de Iaacóv [1]; no segundo, Reuben, filho de Iaacov, se deita com Bilá, sua madrasta [2]. Nos dois episódios não escutamos as vozes das mulheres: sabemos do vexame que esses atos trouxeram aos parentes homens da vítimas, como suas honras foram afetadas, que atos eles cometeram como vingança —  mas não sabemos como Diná e Bilá se sentiram, nunca ouvimos como elas fizeram para se recuperar do trauma da violência que havia sido cometida contra elas, como continuaram vivendo depois desses atos. Infelizmente, nas páginas da Torá Bilá e Diná são simplesmente objetos, suas subjetividades não foram reconhecidas.

Nas milhares de páginas de comentários escritos pela tradição rabínica, Diná e Bilá tampouco receberam direito à fala. Vários midrashim [3] colocam a culpa em Diná pela violência que foi cometida contra ela. Como é comum ainda hoje, esses midrashim culpam a vítima por ter se exposto e provocado a atenção de um homem. Outros comentários analisam os interesses estratégicos de Iaacov, dos seus filhos homens, de Reuven, de Shchem e seus compatriotas — os rabinos da nossa tradição, todos homens, se preocuparam com as motivações dos outros homens da história mas mantiveram as mulheres silenciadas.

Nas últimas décadas, o aumento de mulheres comentaristas da Torá e ordenação de mulheres rabinas têm ajudado a apontar para esse silenciamento e romper com ele. A rabina Lia Bass, a primeira brasileira a receber esse título, escreve a respeito da falta de perspectivas femininas: “nenhum dos comentaristas trata diretamente de Bilá. O foco deles é condenar Reuven por ter dormido com a concubina do seu pai; em outras palavras, por ter utilizado a propriedade do seu pai.” [4] A rabina Rachel Barenblatt escreve que “ao longo dessa narrativa, Diná não fala nem uma vez. Sua voz está totalmente ausente do fogo preto de nosso texto. Para ouvir a voz de Diná, olhamos para o fogo branco.” Ela está se referindo aos midrashim que, no entanto, em geral também não deram voz a Diná. A rabina Barenblat cita alguns midrashim de acordo com os quais “Diná se torna a esposa de Jó, o que é considerado uma punição para Iaacov” e elabora: “a forma como o sofrimento subsequente de Diná é visto como uma punição para seu pai, mas não para ela, é um sinal da sua invisibilidade na sua própria história.” [5]

Até hoje, a prática de silenciar mulheres vítimas de violência continua, assim como os questionamentos sobre quais práticas delas contribuíram para o ataque. Casos recentes têm explicitado como nosso sistema judicial está mal equipado para tratar do tema. [6] O silêncio das mulheres da parashá desta semana deve nos servir como alerta de que a violência nunca pode ser contabilizada na conta da vítima, que ainda sofre nova violência quando é objetificada e sua dor tratada como uma extensão do dano à honra masculina. 

A rabina Laura Geller pergunta: “o que acontece com Diná após o episódio? Nós não sabemos. Nunca ouvimos falar dela, como nunca podemos ouvir das mulheres da nossa geração que são vítimas de violência e cujas vozes não são ouvidas.” [7] Temos falhado nesse sentido, a ponto de, como diz Andrea Kulikovsky, alguma forma de violência sexual atingir todas as mulheres hoje em dia. [8]

Por cada uma de nós, por cada um de nós, precisamos fazer mais para acolher e dar voz às mulheres, para educar os homens, para romper com esse modelo tóxico de sexualidade e poder. Precisamos fazer muito mais.

Shabat Shalom.



[1] Gen. 34:1-31
[2] Gen. 25:22a
[3] Veja, por exemplo, Bereshit Rabá 80:1-5, Tanchuma Vaishlach 5.
[4] “The Women’s Torah Commentary”, Rabina Elyse Goldstein (ed.), p. 86.
[5] https://velveteenrabbi.blogs.com/blog/2013/11/on-dinah.html
[6] https://www1.folha.uol.com.br/.../o-que-ataque-a-mariana...
[7] https://www.myjewishlearning.com/article/comforting-dina/
[8] https://www.facebook.com/MulheresnaTora/posts/257348998275391



sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Dvar Torá: Os Tempos Estão Mudando; Nossas Respostas Precisam Mudar (CIP)


Um velho ditado diz que estamos sempre lutando a batalha do ano passado. Como se a vida fosse um longo video-game, vivemos identificando padrões e atuando de acordo com o que aprendemos das nossas experiências passadas. As eleições nos Estados Unidos são um bom exemplo disso - depois de preverem a vitória de Hillary Clinton em 2016, os institutos de pesquisa se adequaram para não repetir os mesmos erros: corrigiram a amostragem para incluir o nível de instrução e recalibraram os pesos da amostra. Mesmo assim, erraram feio nas eleições de dez dias atrás: previram vitórias avassaladoras dos democratas, tanto para a presidência quanto para a Câmara e o Senado. Tudo indica que Biden tenha efetivamente vencido a eleição presidencial, mas  por uma margem muito menor que a prevista, e os resultados das eleições legislativas foram bastante frustrantes para os democratas. Ainda que os problemas de amostragem de 2016 não tenham se repetido, novos desafios apareceram, para os quais os institutos não estavam preparados.

Em muitos outros cenários, nossas condutas pessoais repetem essa abordagem de nos prepararmos mais para as situações que enfrentamos no passado do que para aquelas que estão à nossa frente.
Há pouco mais de vinte anos, eu cursei uma disciplina no meu mestrado em economia  em Israel chamada “Escolhas Dinâmicas em Cenários Ambíguos”. Parece um curso desenhado especialmente para o contexto em que vivemos hoje, em que situações inéditas se apresentam o tempo todo, desafiando a forma como tínhamos nos preparado olhando para trás.

E o pior acontece quando os mesmos desafios se apresentam e, mesmo assim, continuamos despreparados. Na mesma época em que fazia o curso de economia do qual falei, aconteceu um episódio que marcaria minha experiência com a sociedade israelense. Dois jovens que passavam em uma van por uma estrada pouco movimentada, viram um idoso andando pelo acostamento. Colocaram um pedaço de madeira para fora do carro de forma que ele atingisse a cabeça do idoso a alta velocidade. O idoso morreu na hora. A notícia saiu nos jornais, mas continuamos todos com nossas rotinas, sem nos importarmos com o que ela significava. Naquela sexta-feira, o rabino Meir Azari nos alertou a todos do risco de nos transformarmos em uma sociedade que aceita este tipo de brutalidade como se fosse normal. 

No último domingo, a ciclista e ativista Marina Kohler Harkot foi atropelada enquanto andava na sua bicicleta na Avenida Paulo VI em Pinheiros. O motorista do carro que a atingiu fugiu sem dar socorro. Marina morreu no local [1]. A verdade é que eu só ouvi falar deste incidente ontem, e olha que eu checo sites de notícias de forma compulsiva ao longo do dia. Simplesmente, não era uma das notícias no meu radar. Letícia Lindenberg Lemos, colega de Marina no ciclo-ativismo e no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, disse a respeito do acidente: “Precisamos avançar na ideia de que somos todos seres humanos. Quando a pessoa que atropelou a Marina foge, é um sinal de que a humanidade está fugindo dessa pessoa. Não tem empatia pelo próximo para dar o mínimo de socorro.” [2] A verdade é que a humanidade foge de todos nós que seguimos com nossas vidas como se Marina não tivesse sido morta de forma covarde, assim como se tantas outras pessoas são todos os dias na nossa cidade.

O principal suspeito de atropelá-la se apresentou à polícia dois dias depois do ocorrido, quando já estava valendo a lei que proíbe prisões nos cinco dias anteriores a eleições. Vivemos resolvendo os problemas do passado sem nos darmos conta das questões que enfrentamos no presente. Em algum momento, era comum que autoridades prendessem apoiadores de oponentes políticos para impedir que eles participassem das eleições. Como a democratização do voto, esta prática se tornou menos comum e hoje poderíamos estabelecer proteções que fossem concedidas caso-a-caso. No entanto, a regra criada para proteger a população dos desmandos de seus governantes acabou se virando contra nós mesmos e acabou protegendo a falta de empatia e de socorro.

Na parashá desta semana, após a morte de Sará, Avraham trata da compra de meharat hamachpelá, a caverna em que ela seria enterrada. Na negociação entre Avraham e Efron, o hitita a quem a caverna pertencia,  Avraham diz: “נָתַתִּי כֶּסֶף הַשָּׂדֶה קַח מִמֶּנִּי וְאֶקְבְּרָה אֶת־מֵתִי שָׁמָּה”, “eu te dei o dinheiro pelo campo, tome de mim e eu enterrarei minha falecida esposa lá.” [3] Prestem atenção: “קַח מִמֶּנִּי”, “tome [o dinheiro] de mim.” Em outra passagem, sem nenhuma relação com essa, no final da Torá, o texto trata do divórcio e diz: “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ וְהָיָה אִם־לֹא תִמְצָא־חֵן בְּעֵינָיו כִּי־מָצָא בָהּ עֶרְוַת דָּבָר וְכָתַב לָהּ סֵפֶר כְּרִיתֻת וְנָתַן בְּיָדָהּ וְשִׁלְּחָהּ מִבֵּיתוֹ׃”, “quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido e se ela não mais lhe agradar por ele encontrar nela algo que o incomode, ele escreverá um documento de separação e o dará na mão dela e a mandará embora da sua casa.” [4] Deixemos de lado por um segundo todos os incômodos causados por este segundo texto… eu quero que você prestem atenção no comecinho do verso, que diz “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ”, ““quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido”. Em um verso diz “tome [o dinheiro] de mim” e no outro diz “quando um homem tomar uma mulher”. O uso do verbo לקחת, “tomar” nesses dois versos, que não tem nenhuma outra relação entre si, faz com que os sábios do Talmud juntem as duas passagens e concluam que, da mesma forma que o uso do verbo em uma instância caracteriza uma transação financeira, também na outra instância está caracterizada uma transação financeira. Dessa forma, com uma analogia que eu caracterizaria como bastante forçada, nossos sábios estabeleceram que o casamento é uma transação comercial. Apesar de todo o desconforto que estes conceitos nos trazem, lidos em seus contextos históricos, eles representam um avanço com relação ao que era praticado em outras sociedades. Ao estabelecer que as dimensões financeiras do casamento, os rabinos foram capazes de garantir proteção financeira para mulheres divorciadas e para viúvas, ainda que não tenham chegado nem perto do tipo de relação igualitária que buscamos em nossas relações contemporâneas. Através da sua analogia linguística forçada, os rabinos foram capazes de estabelecer proteções que eram um avanço em relação a outros períodos.

A rabina Rachel Adler, uma querida professora, afirma que “[os] textos descrevem o casamento de uma jovem virgem como uma transação comercial privada na qual os direitos sobre a mulher são transferidos do pai para o marido” [5]. O que foi solução para a situação de divorciadas e viúvas, hoje virou um problema. Os movimentos judaicos plurais têm se adaptado e revisto a liturgia e o texto da ketubá, o contrato matrimonial judaico. Já falei aqui do lindo trabalho desenvolvido pelo grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP para proteger vítimas de violência doméstica na nossa comunidade. Precisamos fortalecer estas iniciativas e fazer mais para que encorajemos relações igualitárias na nossa comunidade, inclusive do ponto de vista ritual. Não é possível que continuemos usando respostas para problemas do passado quando enfrentamos situações completamente distintas. Não é razoável que mantenhamos uma resposta formulada há mais de 1500 anos para outro problema simplesmente porque ela é tradicional….

Depois de amanhã, domingo, dia 15 de novembro, teremos eleições para prefeito. Com a pandemia, com a diminuição da audiência na TV aberta, com a mudança de hábitos , acabamos todos prestando menos atenção a quem são os candidatos a prefeito e a vereador e como eles pretendem endereçar os problemas do presente e do futuro. A Covid criou novos desafios para a cidade de São Paulo, explicitando o vergonhoso abismo na qualidade dos serviços públicos entre aqueles que vivem na região central e quem vive nas periferias. Que respostas apresentadas pelos candidatos tem o potencial de ajudar a criar uma cidade mais humana, mais solidária e mais justa? Entidades judaicas como a FISESP e o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil entrevistaram candidatos e nos oferecem uma boa oportunidade de nos informarmos mais antes das eleições. É fundamental que saiamos da nossa inércia e que enfrentemos os problemas atuais da cidade com coragem, criatividade, honestidade e justiça!

Shabat Shalom


[1] https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/11/suspeito-de-atropelar-e-matar-ciclista-em-sp-ainda-nao-foi-encontrado-pela-policia.shtml
[2] https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/11/por-que-falar-do-legado-de-marina-harkot-e-tao-urgente-quanto-falar-de-sua-morte.html
[3] Gen. 23:13
[4] Deut. 24:1
[5] Rachel Adler, “Engendering Judaism”, p. 171.



domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9



sexta-feira, 31 de julho de 2020

A montanha-russa de Av e a responsabilidade pelas nossas escolhas

Até que a labirintite me afastou dos parques de diversões, eu adorava andar em montanhas-russas, especialmente naquelas radicais com muitos loops. Tinha algo que me encantava naquela sucessão de subidas e descidas rápidas, em olhar o mundo de ponta cabeça para, logo em seguida, vê-lo em pé de novo. Estes dias, estamos vivendo a montanha-russa do calendário judaico: na semana que está terminando, tivemos Tishá beAv (9/Av), considerada a data mais triste do calendário, ponto focal de tragédias da história judaica e que a leitura rabínica associou à prática de sinat chinam, o ódio injustificado; seis dias depois teremos Tu beAv (15/Av), em que celebramos ahavat chinam, o amor sem motivo, e que a Mishná considera um dos dois dias mais felizes do ano [1]. Do dia mais triste a um dos mais felizes em seis dias, um desafio que deixa nossos sentimentos confusos, sem saber muito bem se estamos de pé ou de ponta-cabeça…. 

A parashá desta semana, VaEtchanán, também tem a sua dose de altos e baixos, incluindo passagens que lidam com os temas do ódio e do amor. É nela que encontramos uma das frases mais famosas de toda a Torá: “Sh’má Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um”, que pronunciamos na liturgia diária duas vezes ao dia. O parágrafo que segue esse verso (e que também faz parte da liturgia diária) começa dizendo que devemos amar a Deus “com todo o nosso coração, com toda a alma e com toda a nossa força.” [2] Ao longo dos séculos, nossos comentaristas têm questionado, de um lado, se é possível impor a obrigação de amar e, de outro lado, o que quer dizer amar com o coração, com a alma e com a força. Uma das respostas que eu mais gosto é aquela que diz que demonstramos nosso amor por Deus por meio  das nossas ações e da forma como tratamos a criação de Deus (o planeta, os animais e, principalmente, as outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança de Deus). O verso, portanto, não está legislando nossos sentimentos mas orientando as nossas ações e nos dizendo que devemos agir dessa forma em tudo o que fazemos, envolvendo nossas emoções, nossa razão e nossos recursos nesse processo. Quando conduzimos nossas vidas através do respeito, da generosidade e da empatia, tornamos concreta a ideia de amor sem motivo que celebramos em Tu beAv.

A montanha-russa da parashá faz uma curva e no seu finalzinho temos instruções sobre como os Israelitas deveriam tratar os povos que habitavam a terra de Israel quando lá chegassem [3]. As instruções falam da destruição desses povos, com imposições não negociadas e eliminando completamente suas práticas religiosas. Em linhas gerais, se parece com o que grupos religiosos fundamentalistas fazem com relação às outras religiões, as mesmas condutas que lamentamos em Tishá beAv quando foram praticadas contra o povo judeu. Considerando as formas como condenamos o ódio gratuito, é fundamental que reconheçamos o incômodo ao lermos essas passagens e que rejeitemos as práticas que elas implicam. O respeito à vida de todo ser humano, o pluralismo e a tolerância religiosa se tornaram, ao longo dos séculos, pilares fundamentais da tradição judaica e têm que determinar nossa leitura das passagens problemáticas da nossa tradição.

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida [4]. Da mesma forma, todas estas passagens fazem parte da Torá e da nossa tradição, mas precisamos reconhecer quais passagem nos encaminham para uma vida de respeito, empatia, pluralismo e parceria e escolhê-las, ao mesmo tempo em que indicamos claramente aquelas cujo caminho rejeitamos. O trabalho não é fácil, mas certamente leva a uma vida de muito mais significado.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Dvar-Torá: a responsabilidade pela reconstrução pós-pandemia (CIP)

Minhas escolhas musicais provavelmente não fariam o mesmo sucesso que as lindas canções que o Alê tem cantado pra gente toda semana. Ao lado de escolhas nada polêmicas, de velhas e novas vozes da MPB, de rock clássico e dos sucessos dos anos 80, eu gosto do que um crítico há alguns anos chamou de “rock irreverente” [1], mas que eu acho que faz parte mesmo é do lado irreverente da MPB. Um estilo que unia estilos musicais diversos com letras divertidas, quase piadas musicadas, mas nos convidavam também a reflexões profundas, como muitas vezes só o humor pode. O estilo incluei bandas como Língua de Trapo e Premeditando o Breque, a Banda Vexame, Os Mulheres Negras e outros. Com um papel de honra nesta lista de artistas, aparece Tom Zé, co-responsável pela Tropicália que encantou mais David Byrne do que seus conterrâneos. Entre as músicas do Tom Zé que eu mais gosto (e quem me conhece vai reconhecer facilmente o motivo), chamada “Tô”, anuncia:

Tô bem de baixo pra poder subir

Tô bem de cima pra poder cair

Tô dividindo pra poder sobrar

Desperdiçando pra poder faltar (…)

Eu tô te explicando pra te confundir

Eu tô te confundindo pra te esclarecer

Tô iluminado pra poder cegar

Tô ficando cego pra poder guiar [2]

Há pouco mais de dez anos, uma banda que tem entre seus membros o Arnaldo Antunes (que foi do Titãs) e o Edgard Scandurra, que foi do Ira!, retomou o estilo. Uma das suas músicas que eu mais gosto conta uma historinha que todo pai ou mãe com os filhos no carro já vivenciou:


Hoje é dia de festa do meu melhor amigo 

Eu tô dentro do carro mamãe tá dirigindo 

O trânsito atormenta está em câmera lenta 

Eu sigo perguntando mamãe tamo chegando? 

Mamãe tamo chegando? Mamãe tamo chegando? [3]

Percebam que a pressa de chegar está diretamente ligada ao que nos espera ao final da viagem — nunca tive que lidar com meus filhos reclamando pra chegar logo para tomar vacina ou para ajudar a limpar a casa.

Se uma viagem no carro que se estende um pouco mais gera esse nível de ansiedade nos nossos filhos, imagina uma jornada de 40 anos  pelo deserto que levaria os hebreus à Terra Prometida? Haja antiansiolítico!

Na parashá desta semana, os israelitas estavam começando a considerar como será a vida depois que eles cheguem à Terra de Israel: uma vida em direta oposição àquela que eles tinham no Egito, uma vida na qual eles seriam livres e autônomos e onde teriam a responsabilidade de construir uma sociedade que se importasse com todos, que tivesse ferramentas de proteção aos necessitados, especialmente para seus setores mais vulneráveis, que  eram exemplificados na Torá pela viúva, pelo órfão e pelo estrangeiro.

Duas tribos, no entanto, não compartilhavam deste sonho de sociedade — as tribos de Reuven e Gad pediram para não entrar na terra; para não cruzarem o Jordão [4]. Queriam ficar do lado de lá, onde há bom pasto para seu gado. A resposta de Moshé foi direta: “vocês querem que seus irmão vão à guerra enquanto vocês ficam aqui?” [5]

Em outra passagem da Torá o sentimento expresso por Moshé já havia sido codificado: “לֹא תַעֲמֹד עַל דַּם רֵעֶךָ”, “não fique indiferente ao sangue do teu próximo” [6], e re-afirmado na literatura rabínica, “אַל תִּפְרֹשׁ מִן הַצִּבּוּר”, “não se separe da sua comunidade” [7].

A pandemia de Covid-19 tem revelado nosso lado mais generoso — a comunidade judaica, em particular, têm feito projetos lindos de atenção aos segmentos mais vulneráveis, através do Ten Yad, da Unibes, do rabino Noach. Aqui na CIP, o Lar das Crianças tem feito um trabalho realmente de se tirar o chapéu com as famílias dos jovens que assiste; nosso voluntariado desenvolveu estratégias para contactar semanalmente os idosos na comunidade e saber do que eles precisam; nosso novo grupo de Jovens Adultos tem desenvolvido projetos de atendimento à população de rua.

Mas a pandemia também tem agravado a má distribuição de renda;  impedindo uma parte considerável dos jovens de seguir seus estudos por falta de equipamento com acesso à internet, especialmente em famílias com um número elevado de estudantes; forçado os segmentos mais vulneráveis a continuar trabalhando sub-empregado nos aplicativos de entrega para poder pagar pelo aluguel e pela comida; a usar o transporte público lotado; a usar um sistema de saúde que, apesar da imensa utilidade do SUS, não estava equipado para lidar com uma crise de saúde desta magnitude, Não é de se espantar, portanto, que as taxas de mortalidade dos diferentes bairros de São Paulo sejam radicalmente diferentes [8]. A forma como respondermos a estes desafios nos definirá como sociedade!

Eu tô cansado da quarentena. Não aguento mais ficar limitado às paredes do meu apartamento; sem poder sair de vez em quando pra tomar sorvete de maracujá na Baccio ou de caminhar pela Paulista de uma ponta a outra e voltar. De verdade, eu tô cansado e eu imagino que vocês estejam também e que, como eu, não possam mais esperar pra entrar na terra prometida do retorno ao contato presencial, do poder abraçar e dar as mãos e sair pra jantar junto. 

Nessa nova terra prometida, teremos uma nova chance para estruturar nossa sociedade. Seremos chamados a cruzar o rio, nos expor ao risco e abrir mão de alguns privilégios para garantir que a sociedade que estivermos construindo seja justa e que tomemos conta de quem mais precisa (e abrir mão de privilégios pode implicar pagar mais pela entrega nos aplicativos para garantir que os motoboys possam se alimentar quando estiverem entregando nossas refeições e viver em condições dignas ou considerarmos as soluções para o transporte público na periferia e não só para o nosso bairro quando formos escolher o prefeito daqui a alguns meses) — ou poderemos decidir ficar do outro lado do rio, sem nos expormos e sem a responsabilidade pelo nosso destino comum.

A resposta de Moshé às tribos que queriam ficar do lado de lá do rio funcionou e, no final, eles se juntaram às demais tribos na batalha pela conquista da terra que lhes tinha sido prometida [9]. Que neste 2020, possamos também ser todos nós parceiros na construção da nossa terra prometida, uma sociedade mais igual, mais acolhedora, mais inclusiva e mais justa

Shabat Shalom!


[1] https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/os-artistas-que-eram-uma-piada/
[2]  https://open.spotify.com/track/2YXpMdEMEoy48OPr6VTzpI?si=tNaz9JszRVennvrWXqDaPA
[3]  https://open.spotify.com/track/2O9ZjZvUlEp9xBQp60XznN?si=jtUXd6ziQCKRfq1szJG2BQ
[4] Num 32:1-5
[5] Num 32:6-15
[6] Lev. 19:16
[7] Pirkei Avot 2:4
[8] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/24/bairros-com-mais-negros-concentram-maior-numero-de-mortes-pela-covid-19.htm
[9] Num 32:16-27



sexta-feira, 10 de julho de 2020

Quando reviver a história é reforçar o trauma

Várias obras de ficção retratam um cenário distópico em que a Segunda Guerra Mundial tivesse terminado de uma outra forma. Atualmente, duas séries desenvolvem essa perspectiva: “O Homem no Castelo Alto” (Amazon Prime) e “O Complô Contra a América” (HBO). Eu me lembro de ter assistido um filme com um roteiro parecido nos anos 1990. Chamava-se “A Nação do Medo” (“Fatherland”, no original em inglês) e retratava a investigação de um assassinato na Alemanha de 1964, ainda sob o regime nazista, que acabava revelando as atrocidades cometidas e encobertas pelo regime, em particular a Shoá.

Às vezes, imaginar como seria o mundo em cenários históricos alternativos nos ajuda a entender melhor o que estamos vivendo hoje. Imagine se no cenário descrito no filme, um judeu tivesse conseguido esconder sua identidade e continuasse vivendo sob o regime nazista algumas décadas após o final da guerra. Pense como seria para ele enviar seus filhos à escola chamada Rudolph Hess, dirigir pela estrada Heinrich Himmler, ir a concertos no auditório Adolf Eichman, passar diariamente pelas estátuas homenageando Adolf Hitler. Imagine como seria se seus melhores amigos considerassem heróis pessoas que ele sabia serem responsáveis pelo extermínio de seu povo – e como seria se a memória dessas figuras históricas fosse considerada “patrimônio nacional.”

Como respondemos quando descobrimos que pessoas que admiramos tinham falhas morais sérias? Que um ator de quem gostamos praticava atos de assédio sexual com frequência? Que uma líder política que considerávamos séria enriqueceu enquanto ocupava cargos públicos? Que um escritor cujas histórias nos encantam também expressou opiniões racistas? Devemos apagar suas memórias, remover suas fotos dos livros de história, suas composições dos nossos sidurim? 

E se não estivéssemos falando de “falhas morais”, mas de atos concretos, crimes contra a humanidade, genocídio e escravização? Isso justificaria que estátuas fossem removidas das nossas praças? Que seus nomes fossem retirados das nossas ruas e estradas?

Na parashá desta semana temos a conclusão de uma passagem que começou na semana passada. Pinchás vê um homem israelita trazer uma mulher midianita para o acampamento e mata os dois. De acordo com a Torá, a resposta de Deus foi elogiosa a Pinchás, apontando sua ação como um exemplo a ser seguido. As camadas de comentários que se seguiram ao longo dos séculos, no entanto, foram bem menos generosas em suas análises destes atos. O Talmud de Jerusalém, por exemplo, afirma que a condenação à violência vem desde os tempos bíblicos e que Moshé e os anciões já tinham condenado a ação. Em outro exemplo, os massoretas, que entre o sexto e o décimo século da Era Comum codificaram a forma como os rolos de Torá são escritos e as entonações que usamos para ler o texto até hoje, estabeleceram que deve haver uma quebra em uma das letras da palavra “shalom” no pacto de paz (“brit shalom”) que Deus estabeleceu com Pinchás. Essa quebra simboliza o choque desses escribas com a ideia de que um pacto de paz fosse o prêmio por um ato da mais profunda violência. Pinchás, apesar de suas ações, continua no texto bíblico, assim como a aprovação expressa por Deus. Os comentários e a apresentação gráfica do texto, no entanto, deixam claro nosso choque e discordância com este tipo de ação. Além disso, essa passagem da Torá serve como oportunidade para reafirmarmos nosso efetivo compromisso com a paz e com a solução de problemas sem apelarmos à violência.

Em várias situações, a tradição judaica nos encoraja a ir além de relembrar nossa experiência histórica e a buscar efetivamente revivê-la. É assim que no seder de Pêssach revivemos a saída de Mitsrayim e nos sentimos pessoalmente libertados, e que na manhã de Shavuot, ao ler a passagem dos Dez Mandamentos, recebemos a Torá novamente. Imaginem, no entanto, reviver episódios traumáticos do ponto de vista pessoal ou comunitário? Imaginem se a cada Tishá BeAv tivéssemos que nos esforçar para reviver as torturas da Inquisição ou que durante a Contagem do Omer precisássemos reviver as tragédias que se abateram sobre os alunos de Rabi Akiva. De alguma forma, é isso que pedimos a pessoas cujos ancestrais foram escravizados, dizimados e oprimidos por algumas das figuras históricas cujos nomes e estátuas aparecem em destaque em espaços públicos; lhes impomos reviver sua opressão a cada vez que frequentam estes espaços.

Que aprendamos da história de Pinchás que não precisamos (nem devemos!) apagar nossa história, mas que é preciso indicar claramente onde, quando e porque recusamos condutas tomadas por nossos antepassados (até por nossos líderes) que não honram os valores que queremos perpetuar.

Shabat Shalom