sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Dvar-Torá: Reconhecendo nossos parceiros e seus apoios (CIP)

Esta semana, eu estava conversando com os professores de bar e bat-mitsvá sobre o papel da Torá na nossa tradição. Haviam aqueles que diziam que era é o nosso “Livro das Leis” e outros que diziam que ele é o “Livro das Nossas Histórias Sagradas”. Tentamos uma análise gramatical da palavra, sem muito sucesso: de um lado, a raiz da palavra Torá está associada à mesma raiz da palavra “moré”, professor, ou “morá”, “professora”. De outro lado, uma busca rápida no dicionário hebraico-hebraico mostra as associações da palavra “Torá” com lei, mandamento, instrução, fundamento para o comportamento e a fé” ou “livro de leis que Moshé deu ao povo de Israel.” [1]
Esse debate não é recente. Em resposta ao primeiro verso da Torá, aquele que dá início à narrativa da Criação do Mundo: “Quando Deus começou a criar o céu e a terra - a terra sendo desforme e vazia, com trevas sobre a superfície das profundezas e um vento de Deus varrendo a água - Deus disse: ‘Haja luz’; e houve luz” [2], Rashi, o mais famoso comentarista da Torá, disse: “Escutei do meu pai que a Torá deveria ter começado apenas em ‘Este mês será para vocês’”. [3] Imaginem só! O mundo sendo criado e o comentário de Rashi é que este assunto não é importante o suficiente para justificar que a Torá se inicie por ele! Deveria ter começado com um verso que faz parte da parashá desta semana, no começo da instrução sobre a comemoração de Pessach dali para frente. Esta é considerada a primeira mitsvá coletiva formalmente formulada na Torá e parece que o pai de Rashi acreditava que a Torá, sendo um livro de leis, deveria começar com leis! Todo o resto seria introdução desnecessária…
Eu, por outro lado, e eu confesso que aqui deve me influenciar bastante minha visão de mundo judaica e o papel que a halachá, a lei judaica, tem nesta visão de mundo, não acho que a Torá seja fundamentalmente um livro de leis e acho que o fato de que o livro não começa no verso “Este mês será para vocês” [4] é prova disso. Na minha leitura, a Torá é o livro das nossas histórias sagradas, de provocações sagradas que tem mantido nosso povo debatendo temas de importância fundamental por gerações e gerações. Nestas férias, eu comecei a ler um dos livros judaicos que estão em moda nos Estados Unidos: “Here All Along: Finding Meaning, Spirituality and a Deeper Connection to Life — in Judaism”; “Sempre Aqui: Encontrando significado, espiritualidade, e uma conexão mais profunda com a vida — no judaísmo”. Sarah Hurwitz, a autora, é uma ex-redatora-chefe dos discursos de Michelle Obama quando ela era a primeira dama dos EUA, que descobriu a profundidade no judaísmo que a educação judaica que tinha recebido na infância nunca tinha lhe transmitido. Eu me animei quando, frente às inúmeras perguntas que ela mesma levanta sobre uma passagem especialmente obscura, ela afirma na introdução: “A Torá não dá respostas claras para estas questões. Esta história não é simplesmente um conto com uma moral no final, é uma provocação, o convite para uma conversa — ou, talvez, um debate.”  [5] Isso!!!! Uma provocação, um convite a uma reflexão mais profunda…
Eu já contei que a primeira mitsvá da Torá está na nossa parashá — então deixa eu também identificar uma provocação que eu acho absolutamente pertinente para esta época do ano e para o que nós todos estamos vivendo.
Eu quero encorajar todo mundo a ler o comentário que o rabino Ruben escreveu sobre esta parashá para o Congregar. Quem não pegou um, encontra o texto também no site [6] e nas mídias sociais da CIP. O rabino Ruben fala do evento do Dia Internacional da Memória do Holocausto aqui na CIP e também do Fórum da Shoá, que aconteceu em Jerusalém com a presença de importantes líderes políticos internacionais. Eu estive aqui na CIP no domingo passado e fomos honrados com a presença de mais de 1.200 pessoas, entre elas importantes lideranças dos mundos político, diplomático, judaico e inter-religioso. Na segunda feira, eu estive em outro ato, desta vez no haShomer haTzair, onde lideranças dos movimentos negro, LGBTQI, de imigrantes, indígena e judaico discutiram como resistir ao silenciamento de suas vozes e à opressão da qual se sentem vítimas. Nas duas instâncias, parcerias importantes foram construídas entre lideranças judaicas e outros movimentos políticos, religiosos e sociais.
Tivemos um arco imenso de apoios — mas, ao invés de celebrarmos este sucesso, continuamos nos sentido abandonados, especialmente quando somos atacados. Só pra falar dos últimos meses, tivemos o episódio do Secretário de Cultura, da revista IstoÉ, da injúria contra o vereador aqui em SP, além de inúmeras suásticas marcadas em muros e um sem número de ofensas pessoais das quais nem ficamos sabendo. Em cada um destes episódios, nos sentimos sozinhos, sem ninguém para nos apoiar.
Quando lemos a história da saída do Egito, nem sempre é óbvio percebermos de que forma somos apoiados, mas os apoios estão lá, claros para quem se dispuser a encontrá-los. Shifra e Puá, as duas parteiras que desafiaram o faraó e se negaram a assassinar os bebês hebreus como ele havia instruído, eram, de acordo com boa parte dos comentaristas, duas mulheres egípcias que escutaram sua consciência. Bat-Yá, a filha do faraó que encontra Moshé boiando no rio Nilo e o adota, também não era hebreia. Como não eram hebreus os vizinhos que concordaram com o pedido dos hebreus e lhes deram objetos de ouro prata [7]. Também não eram hebreus a multidão que escolheu se juntar ao povo de Israel e lhes acompanhar no trajeto da servidão à Terra Prometida [8]. “Erev Rav”, é como eles são descritos no texto da Torá, uma “multidão diversa”. A rabina Gail Labovitz conta que, de acordo com alguns comentaristas, a sociedade egípcia estava dividida em três partes com relação à exigência de Moshé para que os hebreus fossem libertados: um grupo queria mantê-los escravos, estes morreram com as pragas; um grupo apoiava a demanda dos hebreus por liberdade, estes foram os que lhes deram prata e ouro; um terceiro grupo celebrou a libertação junto com os hebreus, são estes que compuseram o “erev rav”. [9]
Nossa sensação de isolamento e abandono também tem a ver como a forma como escolhemos enxergar os apoios que recebemos. Quantas vezes, ao lermos a história do Êxodo, não identificamos os apoios que recebemos, sem os quais, teria sido impossível termos sucesso na libertação? Da mesma forma, quantas vezes lemos nossa própria experiência como comunidade supervalorizando nossos adversários, mas sem dar a devida importância aos nossos parceiros? É verdade que estes apoios são muito mais explícitos em alguns momentos do que em outros, mas eles indicam que não estamos sozinhos. Juntos, os atos aos quais estive presente no domingo e na segunda-feira tiveram representantes de uma lista imensa de representações diplomáticas, de algumas dezenas de perspectivas religiosas e de quase todo o espectro político brasileiro. Se soubermos valorizar estes apoios e construir parcerias e alianças, podemos transformar estes apoios pontuais em relacionamentos permanentes, nos sentir bem acompanhados ao longo de todo o ano, incluindo quando nos sentimos atacados e ameaçados. Isso implica, é lógico, nos importarmos também com as dores e opressão dos outros — estarmos prontos a apoiá-los quando eles são atacados e entendermos que parcerias e alianças são relacionamentos que demandam mutualidade.
O livro das nossas histórias sagradas — histórias que não perdem a relevância, provocações que nos convidam a reavaliar nossas perspectivas, até nossos sentimentos, nossos medos e neuras!
No shabat que vem leremos sobre como, na saída do Egito, à beira do mar, perseguidos e com medo, encontramos a força e a coragem para, juntos, fazermos a travessia, nos libertarmos da opressão e encontrarmos a liberdade. Que no aqui e agora, nos sentindo também sozinhos e temerosos, que sejamos capazes de apreciar e celebrar os apoios que recebemos e que consigamos caminhar sem medo, sem nos sentirmos sozinhos ou abandonados.


[1] Dicionário Even Shoshan. Significados (1) e (2) para o verbete “תּוֹרָה”
[2] Gen. 1:1
[3] Rashi sobre Gen. 1:1
[4] Ex. 12:2
[5] Sarah Hurwitz, Here All Along: Finding Meaning, Spirituality and a Deeper Connection to Life — in Judaism, p. 11.
[7] Ex. 12:35-36
[8] Ex. 12:38

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