sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Dvar Torá: O respeito pelo direito do outro ser quem é (CIP)

No domingo começou um novo ciclo do Daf Iomi, um projeto que começou em 1923 e na qual pessoas do mundo todo estudam a mesma folha do Talmud, uma por dia, até terminar de ler o Talmud Bavli inteiro em pouco menos de 7,5 anos. O ciclo começou com o tratado Brachot, “Bençãos” — e eu comecei a pensar um pouco sobre as bençãos que damos e que recebemos nas nossas vidas….
Além disso, esta semana eu tive a honra e o prazer de fazer parte do ato inter-religioso da formatura da Faculdade de Medicina da USP. O que a gente diz em uma hora dessas? Uma opção é buscar um livrinho de bençãos - e eu tenho certeza de que deve haver uma versão judaica destes livrinhos e ler uma benção escrita especialmente para formatura de médicos - coisas que seriam bonitas e relevantes, mas também absolutamente genéricas. Eu fiquei pensando em palavras um pouco mais personalizadas, que conversassem com a realidade de cada formando. Como conciliar as necessidades individuais de 123 formandos nos cinco a dez minutos que cada um de nós tinha para falar? Essas eram algumas das perguntas que eu  tinha quando eu comecei a me planejar para participar do ato.
Quando eu recebi minha ordenação rabínica, a rabina Sharon Cohen-Anisfeld, que era a diretora do meu seminário, me deu uma benção que refletia com grande aderência quem eu era e quem eu ainda sou. Ainda hoje, passados oito anos daquele momento, ler o que ela me disse enche meus olhos de lágrimas. De algum jeito, eu queria ter para aqueles formandos um papel semelhante; tarefa impossível, por que eu não os conhecia…. 
Na parashá desta semana, Iaacov se dirige a cada um de seus filhos homens. Infelizmente, se Diná, a filha sobre a qual a Torá nos conta, e as outras filhas de Iaacov mencionadas em midrashim, também receberam suas benção, isso não é mencionado na história desta semana. Algumas semanas atrás, lemos sobre o episódio em que Iaacov ludibria seu pai, Itschak, para ganhar sua benção como primogênito no lugar de Esaú. A benção que ele recebeu foi:
Que Deus te dê o orvalho do céu e a gordura da terra, abundância de novos grãos e vinho. Que povos te sirvam, e as nações se curvem a você; Domine seus irmãos, e deixe os filhos da tua mãe se curvarem a você. Malditos os que te amaldiçoarem, abençoados os que te abençoarem. [1]
De um lado, é a benção de um pai que quer o melhor para o seu filho. De outro lado, é uma benção tão genérica que poderia ser dada a qualquer um. Não há nada nela que reflita a personalidade de quem a está recebendo, fem faz diferença que Itschak achava que estava abençoando Essáv mas acaba abençoando Iaacov no seu lugar. 
Quando chegou a hora de Iaacov abençoar seus filhos, ele escolhe a rota oposta à de seu pai e busca algo individualizado para dizer a cada um, misturando benção, crítica e previsão do futuro, com uma transparência e honestidade que chegam a ser chocantes e, em alguns casos, chegam a se parecer com maldições. Pinchas Peli, um rabino ortodoxo israelense da segunda metade do século 20, escreveu que “nossas vidas frequentemente ficam confusas e enroladas por falta de uma definição precisa de quem e o que realmente somos. Assim, o testamento de Jacó era de fato uma ‘bênção', porque tinha como objetivo ajudar seus filhos a encontrar sua própria identidade.” [2] Cada um com a sua identidade, uma benção diferente e personalizada para cada filho. Iaacov conhecia cada um dos seus filhos de forma individualizada e percebia suas forças e suas fraquezas. Além disso, ele procurava perceber qual era o caminho que cada um deles estava trilhando para si mesmo, não aquele com o qual ele tinha sonhado.
Esse é um desafio constante que temos na interação com outras pessoas: reconhecer o direito que cada um tem de tomar suas próprias decisões e buscar apoiar aqueles em que amamos na busca do seu próprio caminho. 
Há alguns anos, quando eu morava nos Estados Unidos, participei de um fórum de diálogo inter-religioso para judeus, cristão e muçulmanos. Ao final de um evento, uma moça de outra religião me abordou, contando que ela tinha estado perdida, sem rumo na vida, mas que tinha se encontrado em um determinada doutrina religiosa. “Eu não entendo como posso amar alguém e não rezar para que essa pessoa encontre o caminho também”, ela me disse. Eu respondi: “eu fico muito feliz que você tenha encontrado sua verdade nesse caminho, mas esse é um caminho que levou você à sua verdade. Agora, eu preciso encontrar o meu caminho, que leva à minha verdade.” A moça saiu confusa, especialmente com o fato de que um rabino não tivesse indicado que a minha perspectiva era absoluta e que ela deveria abandonar a sua fé e adotar a minha. É fundamental reconhecer a individualidade de cada pessoa e o fato de que não existem respostas universais que sirvam a todos; o que é benção para um, por ser maldição para outro.
É difícil viver em um mundo em que as certezas não sejam absolutas; em que as verdades sejam, em muitos casos, relativas — a gente fica sem saber por o que torcer para o outro. Mas é também lindo e é o espaço criado pelo abandono das certezas absolutas que nos dá a possibilidade de sermos realmente livres.
O rabino Eugene Borowitz, um dos grandes teólogos do movimento reformista americano no século 20, propõe o seguinte exercício mental: 
Tomemos o caso de um pai que tem o poder de insistir numa determinada decisão e uma boa dose de experiência na qual basear seu julgamento. Neste caso, a vontade de impor é quase irresistível. No entanto, se é uma questão que o pai acha que a criança pode dar conta – ou melhor, se tomar essa decisão e assumir a responsabilidade de forma autônoma ajudará a criança a crescer como indivíduo, então, o pai maduro deve se retirar e tornar possível para a criança tomar a decisão e, assim, se tornar mais completamente ela mesma. (…) Dar espaço para o outro significa exatamente isto, incluindo permitir que a criança tome decisões tolas de vez em quando. Nunca poder fazer a coisa errada significa não ser verdadeiramente livre. [3]
A liberdade está na possibilidade de fazermos algo de que o outro discorda. Se só tivéssemos a possibilidade de fazer aquilo sobre o qual há consenso ou sobre o qual as pessoas que detêm autoridade sobre nós estão de acordo, então não teríamos realmente liberdade alguma. Este conceito se aplica tanto à liberdade de expressão quanto à liberdade de ação. 
Muitas vezes, pais, mães, avós, tios, padrinhos, professores têm dificuldade em lidar com o fato de que nossos filhos, netos, sobrinhos, afilhados, alunos tomam decisões das quais discordamos radicalmente. Mas criar de verdade, educar de verdade, é vislumbrar a benção que eles podem ser no seu próprio caminho, na sua própria verdade.
Que nesse shabat, um dia em que as bençãos flutuam no ar, possamos efetivamente reconhecer o outro  de forma plena, enxergando e respeitando seus sonhos, seus desejos, suas discordâncias e também os assuntos em que concordamos. Que nesse dia especialmente abençoado possamos torcer para que cada um de nós encontre o caminho que leva à sua própria verdade e que, juntos, possamos iluminar mutuamente esta trajetória de descobertas.

[1] Gen. 27:28-29.
[3] Eugene B. Borowitz (1924-2016), “Tzimtzum: A Mystic Model for Contemporary Leadership”, Religious Education 69(6), 1974.


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