sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Dvar Torá: Nossas respostas ao antissemitismo (CIP)

כל העולם כולו גשר צר מאוד והעיקר לא לפחד כלל.
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

Pra quem esteve na CIP no serviço do segundo dia de Rosh haShaná e ainda se lembra, eu falei sobre o medo e sobre como, às vezes, ele pode nos congelar, nos impedir de caminhar para onde realmente precisamos ir, nos fechar nos nossos cantos sem a possibilidade de vislumbrar saída. Eu falei disso tudo inspirado por um podcast do New York Times que tinha retratado como a Ella, uma menina que tinha acabado de completar 9 anos, tinha lidado com os seus medos, enfrentando-os e colocando-os nas suas devidas proporções. Eu contei como, quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.” Aprender a viver com o medo sem deixar que eles nos paralise, que nos convença a abrir mão de quem somos ou que nos transforme em pessoas desconfiadas e amarguradas é uma das competências mais importantes que podemos desenvolver e ensinar neste começo de século 21.

No final de 2019 e começo de 2020, o New York Times revisitou os melhores episódios do seu podcast e lá estava a história da Ella e de como ela tinha enfrentado o seu medo. No final, apareceu uma novidade: Barbara Greenman, uma senhora de 70 anos que tinha se sentido inspirada pelo exemplo da Ella a confrontar os medos dela. “Quem sabe dos seus medos?”, perguntou a senhora à menina. “Quase todo mundo à minha volta”, foi a resposta. “Mesmo os teus colegas de classe?!” a pergunta voltou, com um certo ar de surpresa. “Sim, todo mundo sabe dos meus medos”, Ella respondeu. Nós adultos, em geral, temos vergonha dos nossos medos e, por isso, os escondemos. Para usar uma analogia comum nos nossos dias, é como se entrássemos no armário e guardássemos lá parte importante de quem somos; e, como não reconhecemos a verdade do medo, acabamos escondendo, junto com o medo dentro do armário, outras partes importantes das nossas identidades, justamente aquelas que poderiam, em algum momento, ser o gatilho disparador do medo.

Eu falo tudo isso, é claro, em um período de aumento assustador do antissemitismo a nível global. O ataque à família chassídica em Nova York na penúltima noite de Chanucá foi só a gota d’água que libertou, para alguns de nós, fantasmas que tentávamos manter controlados e trouxe à tona os nossos piores medos.

Será que o mundo não aprendeu nada da experiência terrível da Segunda Guerra?, nos perguntamos a nós mesmos? Em um mundo no qual cresce a intolerância às minorias e que marcha rapidamente para a escuridão do abismo, nosso esforço de acender velas de Chanucá parecia não ter tido sucesso em trazer de volta a luz, o respeito mútuo, a valorização da diversidade.

Quando eu tinha 15 anos, fui pela primeira vez a Israel em um programa organizado pela Agência Judaica. Veio um sujeito da segurança do Consulado falar com a gente sobre segurança no voo e ele nos disse: “se seu avião for sequestrado, não pense duas vezes antes de jogar fora qualquer elemento que te identifique como judeu. Tire o chai, a estrela de David, a chamsa, jogue tudo para longe. Neste momento, é melhor garantir que você fique vivo do que morrer como herói.” Para alguns de nós, o mundo inteiro, a ponte estreita sobre a qual todos nós caminhamos, foi tomada por fanáticos e o melhor que podemos fazer é garantir que fiquemos vivos — e nesse processo, jogam fora qualquer identificação judaica, qualquer sinal que os defina como potenciais alvos.

Yehuda Kurtzer, um dos acadêmicos do mundo judaico que eu mais respeito, escreveu o seguinte: 
Na frase do Rav Nachman, ‘não temer’ é o princípio essencial, mesmo ao longo das pontes mais estreitas. Não devemos pensar, especialmente nós que temos medo de alturas, que a ponte não seja aterrorizante. Mas não ousamos transformar certos sentimentos – aqueles que refletem nossas experiências do mundo, aqueles que não podemos controlar completamente – em crenças que definem como interpretamos o mundo e o que podemos fazer sobre isso. O grande paradoxo do anti-semitismo é que, em última análise, ele pode ser um ódio que desafia de tal forma uma explicação fácil, que ele nunca pode ser totalmente derrotado mas, ao mesmo tempo, não podemos nos permitir sucumbir à sua definição de quem somos. É por isso que me recuso a ter medo. Há muito o que fazer. [1]
Na parashá desta semana, lemos sobre o desfecho do encontro de Iossef com seus irmãos. Sem saber que fala com seu irmão, Iehudá explica para o vice-rei que manter seu irmão Biniamin preso no Egito seria o mesmo que matar seu pai, Iaacov. É só nesse momento que Iossef se dá conta de que sua estratégia de esconder sua verdadeira identidade dos seus irmão não daria nenhum resultado. Por outro lado, quando ele revela a verdade, tem a oportunidade de reconciliação com quem lhe tinha causado tanto sofrimento e a possibilidade de salvar toda a família de seu pai, que se muda para o Egito, fugindo da seca. Muitos são os comentaristas que mostram os paralelos entre a história de Iossef e a de Ester, aquela que lemos em Purim [2]. Ambas histórias acontecem fora da terra de Israel, tem como protagonistas israelitas que chegaram próximo ao poder, em parte auxiliados por sua beleza física, e que usam esta proximidade para salvar seu povo. Tanto no começo história de Iossef como na de Ester, a vida do rei é salva, mas algum tempo se passa antes que o ato seja reconhecido e recompensado. A lista de paralelos é longa, já foi apontada há bastante tempo e continua sendo objeto de estudo e pesquisa.

Assim como Iossef, Ester escondeu sua identidade durante boa parte da história – uma história que tem como uma das questões centrais a manutenção da identidade judaica na Diáspora. Em algum momento, sabendo que seu povo estava em perigo, Ester lamenta, mas indica que não está disposta a correr riscos para salvar os judeus da Pérsia. A resposta do seu tio, Mordechai, é direta e incisiva: “Não imagine que você, dentre todos os judeus, escapará com vida por estar no palácio do rei. Pelo contrário, se você ficar calada nesta crise, alívio e libertação chegarão aos judeus de outra parte, enquanto você e a casa de seu pai perecerão. E quem sabe, talvez você tenha alcançado a posição real apenas para uma crise dessas.” [3]

Uma resposta possível para o medo que estamos sentindo é nos fecharmos em nós mesmos, tentar escapar do ódio e da intolerância fingindo que não é com a gente. Há aqueles que arrancarão qualquer sinal de os identifique como judeus e, assim, se sentirão seguros. Uma segunda resposta, ainda dentro deste paradigma, é construir muros mais altos, contratar mais seguranças, se fechar dentro das bolhas e, assim, se sentir seguro.

Eric Ward, um americano ativista pelos direitos humanos, diz que “a forma como tratamos um ao outro de forma corajosa tem um impacto duradouro. Na sua essência, ser humano significa ver a humanidade do outro. Estamos em uma época em que esta habilidade está sendo desafiada.”  [4]

Quando, em resposta ao medo e a termos nossa humanidade negada, nos fechamos em nós mesmos e fingimos que não é com a gente, não estamos vendo a humanidade do outro — e, na minha opinião, deixamos de ser judeus. Há muitas opiniões sobre qual o ensinamento central da Torá: há quem diga que é “Ama a teu próximo como a ti mesmo” ou o conceito de termos sido criados à imagem de Deus [5] ou “não faça para o outro o que é odioso para você” [6]. Eu colocaria entre estes conceitos aquele de que devemos proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, “כִּי גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם”, “por que vocês foram estrangeiros na terra de Mitsrayim”. A tradição judaica é que nossa experiência histórica sob opressão nos ensina a nos solidarizarmos com as vítimas de opressão em toda parte. Ser judeu, para mim, é ter esta empatia para com o outro, é entender que antissemitismo, racismo, misoginia, islamofobia, GLBTQ-fobia são faces distintas do mesmo preconceito. A cada hora ele se manifesta contra um grupo, mas o problema é o mesmo. 

Não existe solução para o antissemitismo que não passe por resolver a questão mais ampla do preconceito e, por isso, não existe solução para o antissemitismo que não passe por estabelecermos parcerias com outros grupos e, juntos, procurarmos criar uma cultura de valorização apaixonada da diversidade. 

É urgente nos darmos conta de que é lindo que sejamos todos diferentes, com aparências diferentes, idéias diferentes, gostos diferentes, concepções diferentes de Deus. É lindo na comunidade judaica e fora dela; é lindo para aqueles com quem concordamos e, principalmente, para aqueles de quem discordamos. 

Parcerias não exigem que sejamos idênticos nem que concordemos em tudo, só exige que compartilhemos alguns valores centrais e que tenhamos um objetivo comum.

Por outro lado, não existe solução para o problema do antissemitismo enquanto acharmos que podemos jogar nossa identidade no canto como se fosse uma corrente com um chai, enquanto não desenvolvermos um orgulho profundo da nossa própria identidade judaica, cada um nos seus termos, não como se ela fosse superiora a qualquer outra, mas porque ela é nossa e ajuda a definir quem somos. É inconcebível permitir que antissemitas definam nossa identidade judaica: quem é judeu e quem não é; o que quer dizer ser judeu e o que não; que cara tem um judeu e que cara não tem; quais são nossos valores e quais não são. 

Uma das coisas das quais eu mais me orgulho no Judaísmo é a nossa tradição do debate e, por isso, “ser judeu” pode significar coisas radicalmente diferente para cada um de nós.

O American Jewish Committee lançou uma campanha para ilustrar este orgulho judaico, que ganhou a adesão da Fisesp e da CIP. O pedido é que você poste uma foto na 2a feira, dia 6 de janeiro, com algum símbolo judaico — as instruções exatas podem ser encontradas nas mídias sociais da CIP e da Fisesp. [7] 


Eu sugiro que sejamos criativos nas nossas escolha de “símbolos judaicos”: vamos usar esta campanha para sair dos estereótipos e mostrar a diversidade da nossa comunidade! Quem sabe um símbolo judaico é se engajar em uma campanha de Ticún Olam? Quem sabe é o maiô com que você treina natação na Hebraica todo dia? Ou é a árvore florida na frente da tua casa, que te lembra do processo constante de criação do mundo? Quem sabe é o teu amigo cristão, que te liga pra saber como você está quando ouve de algum ataque antissemita do outro lado do mundo? O Judaísmo é TEU, o símbolo judaico também! Não deixa os outros te imporem o que quer dizer ser judeu, nem os de dentro nem os de fora da comunidade judaica.


כל העולם כולו גשר צר מאוד  והעיקר לא לפחד כלל
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

O paradoxo desta ponte estreita é que é muito mais fácil passar por ela de mãos dadas, com mais gente ao nosso lado. Assim, também, é muito mais fácil não ter medo.

Shabat Shalom!

[3] Ester 4:13-14.
[5] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30b
[6] Talmud Bavli, Shabat 31a
[7] https://www.facebook.com/cipsp/photos/a.296046297191552/2482717198524440/?type=3&theater

3 comentários:

  1. B’’H.
    Caro rav. Rogério Cukierman, Shabat Shalom.
    Sou Renata Abreu estudante da escola Lafer na CIP. Evito ao máximo escrever hoje, mas este é um assunto muito importante _ antissemitismo_ por isso este comentário.
    Meus antepassados são judeus e judias Sefardim, os primeiros a colonizar o Brasil a cerca de 500 anos. Conforme debatemos rav Ruben S. certa vez, sei que há um gap, uma lacuna que tratei de preencher com Educação Judaica, por isso estou neste curso. Creio que não há conversão judaica, e sim revelação judaica, portanto, mesmo que eu estivesse com o cano da arma de um terrorista apontado para minha cabeça, eu não esconderia minha Judaicidade, não esconderia o Judaísmo que me esforço dia após dia para ter o direito de professar, viver e ser.
    Sabe quando confirmei que sou mesmo judia? Em junho de 2019, na época das festas católicas juninas, com toda educação, informei na empresa bancária em que trabalhava que não iria participar das comemorações, expliquei que sou de religião judaica, e apenas disse que não comemorava nenhuma data civil.

    ResponderExcluir
  2. ...Continuando:
    Todos sabiam que eu não sou cristã. Todos sabiam que eu trocava e negociava minhas folgas para o Sábado, e que trabalhava no horário bancário, o que me possibilitava cumprir o Shabat. Todos sabiam que eu evitava e por fim não mais comia comidas comuns, minha alimentação é vegetariana-kasher e levo sempre minha comida de casa, para cumprir a dieta Judaica.
    Porém, nesta época, comecei a sofrer no trabalho ataques antissemita de um jovem colega de trabalho, um rapaz 20 anos mais novo que eu, que sabia exatamente o que dizia para tentar me coagir e ofender. Ele falava pelas costas, outros colegas vieram me avisar depois.
    Nosso chefe, na época das festas juninas, fez uma reunião no final do expediente, dizendo que queria fazer uma festa junina pluralista, LGBTQ+, cheia de humor, com muita decoração e fantasias legais. Em dado momento desta reunião, este rapaz olhou para mim de forma maliciosa e disse ao nosso chefe “... Podemos pintar o rosto para a festa junina chefe? Podemos desenhar suásticas na cara? Rá Rá Rá Rá...” Alguns dias depois, eu estava com problemas com meus benefícios, uma situação bem séria que ocorreu por eu ter mudado de cidade, isso estava afetando meus resultados de trabalho e fui advertida pelo meu chefe, que me chamou para conversar e aplicar um feed back negativo. Neste momento, eu que havia me calado, explodi e reclamei sobre o ataque antissemita público que recebi.
    Meu chefe não sabia o que era o símbolo suástica, de forma bastante constrangedora para mim, tive que desenhar a cruz nazista para ele pesquisar no Google. Antes expliquei que este símbolo significava o hediondo extermínio de 6 milhões de irmãos e irmãs judias, além de outros tantos seres humanos como ciganos, homossexuais, prostitutas, desafetos políticos, doentes psiquiátricos...
    Eu fiquei furiosa. E o rapaz ficou surpreso e apavorado porque foi chamado a explicar se ele sabia sobre o que era sua “brincadeira “de extremo mal gosto. Sim ele, ao contrário do meu chefe sabia perfeitamente que a suástica é um símbolo nazista. Fomos chamados para uma reunião isolada, nosso chefe, ele e eu. Ergui meu tom de voz, e falei ao moleque “Você acha que sua brincadeira é atitude de homem? Você é homem suficiente para pedir desculpas sinceras e reconhecer seu erro?”

    ResponderExcluir
  3. ... Continuando:
    Eu realmente estava furiosa. Meus antepassados não participaram do Holocausto do século XX da era comum, mas meus antepassados foram mortos, roubados e expulsos em massa da Espanha e de Portugal, e depois foram expulsos na 2ª Inquisição da Coroa Portuguesa Católica instaurada aqui no Brasil, onde já havia uma comunidade grande e forte, no Estado do Pernambuco e que se difundiu por demais Estados do Nordeste do Brasil.
    E aquele bullyng no trabalho, aquela brincadeira sem noção e de extremo mau gosto, realmente mexeu com meus brios. O que eu queria realmente fazer? Dar uma surra de barra de ferro no moleque cretino, até ele nunca mais esquecer porque estava apanhando.
    Ele agiu de forma covarde, não se retratou e ainda se fez de vítima. E eu me senti como as vítimas de estupro que se apresentam na delegacia para prestar queixa: “você provocou, por isso aconteceu”, ou seja. Se eu tivesse escondido quem eu sou, uma pessoa judia, talvez eu não sofresse um ataque antissemita no trabalho. Justo numa empresa que alega que sua missão e visão é plural e que o respeito ás diferenças está acima de tudo. Mas é tudo uma grande farsa, assim como os colaboradores da Umbanda e do Candomblé que iam religiosamente de branco ás sextas-feiras numa clara demonstração de crença e fé, e sofriam maledicência e ataques para atestar que sua religião é diabólica, eu também sofri.
    E nesses 5 anos em que busco consolidar meu direito de exercer minha herança Judaica, outros fanáticos religiosos, evangélicos em sua grande maioria, vieram me atacar e tentar restringir meu direito de ser diferente quando afirmo que não acredito e não aceito a doutrina crista, ou seja não acredito no Jesus deles.
    Escrevo apenas para comunicar que nunca mais haverá um outro Holocausto. Porque eu rezo todos os dias para que Hashem proteja e salve a nossa Comunidade Judaica Mundial. Mas não é só isso, se preciso for, prefiro morrer como um herói de guerra, calcando meus coturnos do que me render, não posso permitir que nos tornem vítimas fatais novamente. D-us queira que eu jamais tenha que chegar as vias de fato, mas se preciso for, morro ou mato defendendo a minha vida, em qualquer circunstância. To Be a Rock and Not Holl.

    ResponderExcluir