sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dvar Torá: A volta pra caverna e a busca por um judaísmo contemporâneo (CIP)


Sabe aquela história do “faço o que eu digo mas não faça o que eu faço”?! Quem nunca?! Quem nunca cometeu uma pequena hipocrisia dessas, de dar um conselho de acordo com o que acredita que seja a atitude correta mas se permitiu desviar deste caminho na sua conduta pessoal? Eu sei que eu faço isso com alguma frequência, mas desde que não venha de um lugar de julgamento e maldade, também não acho que seja a pior coisa do mundo…

Um destes meus pecados, de dizer uma coisa e fazer outra, é o jurar não gostar das mídias sociais e viver encontrando assuntos para as prédicas de postagens de facebook. Desta vez, foi em um grupo de educadores judaicos, em que um rabino ortodoxo postou o seguinte comentário na semana passada: 

Amigos - revirei os olhos enquanto ouvi um aluno [meu] descrever Ticún Olam como uma mitzvá. Revirei os olhos porque estou muito ciente e muito preocupado de que a educação judaica tenha sido, essencialmente, enrolada na vaga plataforma liberal americana sob a bandeira mitzvah de "Ticún olam". Preocupado porque, sério… É isso? Será que nossa tradição de 4.000 anos pode realmente ser tão vigorosamente resumida pelas nossas ações em defesa do meio ambiente, na resposta a George Floyd? Isso é tudo?
Então desvirei meus olhos e vi claramente que, para nossa juventude, a crise climática, o racismo (…) e as questões de justiça são 1000% mais reais e mais urgentes do que questões sobre se uma mulher deve contar no minián ou nas nuances da akedá, o episódio da Torá que descreve o quase-sacrifício de Itscahk . E é claro que as pessoas vão se importar com o que é real para elas. E todo esse aperto de pérolas sobre como todas as 613 [mitsvot] foram substituídos por Ticún Olam são, na verdade, apenas os gemidos de um representante de um sistema e abordagem que estão ameaçados de irrelevância ou extinção. "Seu velho mundo está envelhecendo rapidamente. Portanto, saia do novo se não puder dar uma mão."

E eu quero saber: as coisas antigas são realmente relevantes? Por quê? Exatamente por quê? Como? E como as escolas podem tirar a poeira de seu antigo judaísmo e realmente focalizá-lo nas coisas que realmente importam para os alunos reais? Ou pelo menos torná-lo relevante?

Como um pequeno exemplo disso, existe uma maneira de ensinar a tefilá, a reza, não como um momento incômodo e irritante [em que alguém tenha que se certificar os meninos estão de kipá] e que ninguém está usando o celular [escondido], mas na verdade como uma força poderosa para mudar o mundo que [vemos] caindo aos pedaços? Pelo menos mudando a nós mesmos? E se não, podemos parar de fazer nossos alunos rezarem para, [no lugar,] talvez ir recolher algum lixo? Ou a reza é importante no processo de ajudar as crianças a ver seu mundo e ver seu papel nele, ou ela é um dinossauro do velho mundo, reforçando continuamente a narrativa de que o judaísmo é irrelevante e que não [podemos] nos preocupar com o clima e a justiça porque temos assuntos mais importantes? Como o mundo vindouro?

Nossa, gente. Socorro!!!!
Este não é um novo desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel escreveu algo semelhante há mais de 60 anos e que, desde que eu li pela primeira vez, tem me inspirado na busca por um judaísmo de significado:
“Quando a fé é completamente substituída pelo credo
a adoração pela doutrina, 
o amor pelo hábito; 
quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; 
quando a fé se torna uma herança em vez de uma fonte viva; 
quando a religião fala apenas em nome da autoridade e não em nome da compaixão 
então, sua mensagem se torna sem sentido. ” [1]
Podemos voltar ainda mais no tempo e perceber que a busca por um judaísmo de significado nas nossas vidas, que possa de fato ser uma tradição viva, que dialogue com os dilemas que vivemos em 2021 e não negue o encontro com o desconforto da nossa realidade na busca de uma espiritualidade pura, aparece também em uma das histórias mais famosas de LaG baOmer.

Em LaG baOmer, acredita-se faleceu o rabino Shimon bar Yochai, uma figura especialmente iluminada que, de acordo com um mito, foi o redator do Zohar, uma das obras centrais da Kabalá, uma expressão mística judaica.

Diz a lenda no Talmud [2] que Shimon bar Yochai foi condenado à morte pelas autoridades romanas por tê-las criticado. Ele e seu filho, Elazar, após buscarem refúgio no Beit Midrash por algum tempo, foram se esconder em uma caverna. Por milagre, uma árvore de alfarroba nasceu sobre a caverna e lhes dava comida; e uma fonte de água apareceu e lhes dava água. Todo dia, eles tiravam sua roupa e se enterravam até o pescoço na areia e, assim, eles passavam todo o dia estudando. Quando chegava a hora, eles saíam da areia, se vestiam, e rezavam para, logo em seguida, voltar a se enterrar, nús, na areia. Assim, eles garantiam que suas roupas não se gastassem… Assim eles viveram por 12 anos. O profeta Eliahu se colocou na entrada da caverna e disse “que informará Shimon bar Iochai que o imperador morreu e seu decreto foi revogado?!”. Shimon e Elazar saíram da caverna e viram pessoas semeando e arando a terra. Shimon bar Iochai disse: “como estas pessoas podem abandonar uma vida de eterno estudo da Torá e desperdiçá-la com questões terrenas?!” Todo lugar para o qual Shimon bar Iochai direcionava sua vista queimava imediatamente. Uma voz Divina apareceu e lhe disse: “Você saiu da caverna para destruir o Meu mundo?! Volte para a caverna!”

Como disse Heschel, quando o Judaísmo fecha seus olhos para as dores do presente para se dedicar exclusivamente a guardar as jóias do passado, perdemos nossa função no mundo. Quando o desempenhar funções religiosas fala mais alto que a necessidade de preservação da vida, perdemos nossa mensagem e o sentido destas funções. Quando, em troca de manter vivo o judaísmo, estamos dispostos a abrir mão da nossa humanidade, não reconheço mais esse judaísmo.

A observância judaica e o comprometimento com o mundo não precisam ser mutuamente excludentes. A textura que o calendário judaico dá à nossa experiência do tempo, a forma como as práticas religiosas judaicas permitem que abramos nossos olhos para questões que nem sabíamos que existiam, a abordagem crítica que o estudo de textos judaicos desenvolve em cada de nós, a força que a comunidade judaica tem quando se une em torno de um objetivo comum — todos estes fatores devem nos levar a estarmos mais conectados com o mundo que nos cerca.

Deus mandou Shimon bar Iochai de volta para a caverna estudar um pouco mais porque, seu desdém pelo cuidado com o mundo e com a humanidade revelados nas ações do agricultor demonstravam que, apesar dos 12 anos que ele tinha passado estudando na caverna, ele não tinha aprendido os pilares centrais do judaísmo.

Que cada um de nós consiga encontrar seu próprio equilíbrio — valorizando a tradição judaica e lhe dando um papel de destaque nas suas práticas cotidianas e que, através delas, estejamos cada vez mais comprometidos com a construção de um mundo mais justo, mais igual, mais saudável para todos.

Shabat Shalom

[1] Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man, p. 3.
[2] Talmud Bavli Shabat 33b


terça-feira, 27 de abril de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 17: Educação Judaica: Educação & Shoá

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/17)

Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas. (Texto encontrado após a Segunda Guerra Mundial, num campo de concentração nazista.)

Nesse mês relembramos, dia 7 de Abril, os judeus mortos no Holocausto, durante o Iom haShoá. Em 19 de abril nos lembramos do Levante do Gueto de Varsóvia, que teve início nesta data, em 1943. 

Tão importante quanto relembrar, é aprender. Para que nunca mais uma barbárie assim aconteça. Mas também para saber reconhecer discursos e políticas que possuem bases similares no presente. E, assim, combatê-las. O que aconteceu nos marcou como judeus que somos. Mas seu ensino pode ajudar a nos transformar nos judeus que queremos ser. Hoje essa será nossa discussão.

Nossos convidados são Celso Zilbovicius, Diretor Educacional do projeto Marcha da Vida dos Universitários, e Menashe Zugman, educador e guia de turismo há mais de 35 anos, dedicado ao tema da Shoá.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A morte é parte da vida

O nome da primeira parte da parashá dupla desta semana, Acharei Mot, nos remete de volta ao episódio da morte dos dois filhos de Aharón, Nadav e Avihu, sobre o qual lemos há algumas semanas [1]. Naquele episódio, os dois filhos ofereceram um “fogo estranho” a Deus e foram consumidos pelo fogo. Moshé orienta seu irmão e sobrinhos a não demonstrarem sinais de luto pela morte de Nadav e Avihu e Aharón parece aceitar a instrução sem questionamentos. 

De volta à leitura desta semana, em sua tradução literal, Acharei Mot (o título da parashá) significa “depois da morte de...” porque, nela, Deus ordena instruções que Moshé deve passar a Aharón na sequência da morte de Nadav e de Avihu. 

Vivemos em uma época de comportamentos ambíguos com relação à morte. De um lado, os avanços científicos dos últimos séculos ampliaram de forma significativa nossa expectativa de vida, desenvolvendo remédios para doenças tratáveis, melhorando as condições sanitárias de parte considerável da população (ainda que muito trabalho ainda siga a ser feito nessa área), criando vacinas que possibilitaram a prevenção e até a erradicação de algumas doenças. A mortalidade infantil no estado de São Paulo, por exemplo, caiu de 188,9 por 1.000 nascidos vivos em 1900 para 10,7 por 1.000 nascidos vivos em 2018, uma redução de 94%! [2] Com esses ganhos, não causa surpresa que a morte tenha se tornado um tabu entre nós. No passado, convivia-se mais com a morte, especialmente com a morte jovem, e, por isso, o assunto era tratado com maior naturalidade. Hoje, vivemos como se nossas vidas fossem durar para sempre e não nos preparamos para nos despedirmos de nossos entes queridos quando eles se vão. Vivemos como se sempre fôssemos ter uma chance a mais para perseguir um sonho ou para ter uma conversa importante; quando a morte chega, na grande maioria das vezes, nos pega despreparados…

O outro lado da ambiguidade, no entanto, é que a grande disponibilidade de estatísticas faz com que fiquemos atordoados entre tantos números das nossas vidas. Perdemos a sensibilidade para a singularidade de cada vida humana, para a dor imensa que a morte de uma única pessoa pode causar. A tradição judaica ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] mas é difícil verdadeiramente assimilar este conceito quando as mortes são contabilizadas aos milhares. Por exemplo, a média móvel dos mortos por Covid no Brasil quase quintuplicou desde o começo do ano [4] e, após nos chocarmos por algumas semanas com o aumento, logo nos acostumamos e voltamos a nos comportar como se a doença não trouxesse risco algum.

Tudo muda, é claro, quando perdemos alguém muito próximo. O silêncio, como o de Aharón, pode ser a resposta de alguns à morte de uma pessoa da família, mas há também quem chore, quem grite, quem fique com raiva, quem queira aproveitar a sua vida ao máximo antes que ela também termine ou quem perca totalmente a vontade de viver. Para alguns, a perda lhes ajuda a ganhar perspectiva sobre o que é realmente importante na vida, enquanto, para outros, tudo perde a perspectiva e o significado. A dor pela perda é absolutamente subjetiva e não segue padrões pré-definidos. Há quem chegue ao final da shivá tendo-a processado completamente, mas há também quem só se dê conta da dimensão da sua perda meses depois de terminado o período de shloshim. Parte do processo de luto inclui aceitar que não há fórmulas prontas e sermos generosos com nós mesmos e com aqueles à nossa volta.  O sábio Hilel nos ensinou que não devemos julgar outra pessoa até que estejamos no mesmo lugar que ela [5] e o lidar com a perda pela morte é uma das situações em que este princípio deve ser aplicado com especial afinco.

Na parashá desta semana, após a perda dos seus filhos, e sem ter tido a oportunidade de processar seu luto, Aharón começa a receber as instruções e se ocupar das funções especiais do sacerdócio. Que seu exemplo dolorido nos sirva de lição para que a morte não seja tratada como tabu nem tampouco ignorada. A morte de cada pessoa é um evento natural, parte da vida, e, mesmo assim, um momento no qual um mundo inteiro é destruído.

Que neste shabat, cada vida que nos tocou e que partiu deste mundo possa ser lembrada e que sua luz possa continuar iluminando o nosso caminho.

Shabat Shalom,


[1] Lev. 10:1-7

[2] https://bit.ly/3gs1CBB

[3] Mishná Sanhedrin 4:5

[4] https://bit.ly/3dDGG91

[5] Pirkei Avot 2:4



terça-feira, 13 de abril de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 16: Com o olhar para o futuro: o que aprendemos

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/16)

Dizem por aí que um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la. A frase, no entanto, parece não caber para o povo judeu -- somos um povo que se define pelas suas relações históricas e que se orgulha da forma como lembramos do passado e, mesmo assim, insistimos em reviver o tempo, seja de forma ritual nas celebrações judaicas, seja de forma literal, reencenando múltiplas vezes os mesmos conflitos e sofrendo perseguições bastante similares.

Hoje revisitamos mais uma vez a relação entre a comunidade judaica e sua história.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Dvar Torá: Três Desafios ao Legado da Shoá (CIP)


No fim de semana passado eu assisti o novo filme do Tom Hanks no Netflix, News of the World [1]. Sem dar muito spoiler, é a história de um veterano da Guerra Civil americana que viaja pelas cidades dos Texas lendo e interpretando as notícias dos jornais para pessoas que não sabiam ler ou que não tinham acesso a jornais. De alguma forma, é um precursor do William Bonner e da Renata Vasconcelos.

Em uma de suas viagens, ele encontra uma menina abandonada à beira da estrada. Seus documentos contam que ela havia sido sequestrada por uma tribo indígena e tinha crescido na tribo — a história dela é a história de dois massacres: o massacre dos seus pais pela tribo indígena e o massacre da tribo pelo exército branco. É nesta condição que ela é encontrada à beira da estrada. Em determinado ponto da história a menina e o leitor de notícias visitam uma velha casa abandonada, a impressão é que o lugar em que sua família foi morta. Ao deixar a casa para trás, o capitão Kidd, o personagem de Tom Hanks, diz para Johanna, a menina órfã: “Eu quero te afastar de toda esta dor e toda esta matança. Te deixar livre disso. Reviver não é bom. Você precisa esquecer isso, seguir em frente. Siga esta linha sem olhar para trás.” Johanna, balança a cabeça e lhe responde: “não. Para seguir em frente, você deve primeiro se lembrar.”

Yehuda Kurtzer, presidente do Instituto Shalom Hartman na América da Norte e autor do livro “Shuva, o futuro do passado judaico”, escreveu na introdução desta sua obra que “o calendário judaico apresenta uma ‘temporada da memória’ longa e fortemente ritualizada, que começa para valer no Shabat Zakhor, o Shabat do “Lembrar" imediatamente antes de Purim. Exatamente um mês depois, chega Pessach e suas encenações, cumprindo nossa obrigação de nos ver vivendo um momento-chave no passado judaico. Entre Pessach e Shavuot, marcamos uma espécie de período de luto prolongado para lembrar os alunos mortos de Rabi Akiva, um período que no passado mais recente foi pontuado com Yom HaShoah, Dia da Lembrança do Holocausto e Yom HaZikaron, o dia do memorial de Israel para seus soldados caídos. Depois de Shavuot, que marca o aniversário da entrega da Torá, o período da memória se esvai.”

Nós estamos no meio deste período da memória. Ontem, 5ª feira, foi Iom haShoá, o dia em que ritualmente lembramos dos 6 milhões de vidas ceifadas antes da hora pelo simples fato de serem judias.

Pouco mais de setenta e cinco anos do final de Segunda Guerra e da revelação total dos crimes praticados pelos nazistas, quando o número de sobreviventes ainda em vida diminui a cada dia, a memória da Shoá parece também se esvair. 

Eu quero falar hoje sobre três ameaças a que o legado da Shoá seja plenamente mantido.

A primeira ameaça são os negadores do Holocausto. Apoiados em teorias antissemitas e da conspiração e em jogos políticos sujos, há quem negue que a estado nazista e seus aliados tenham desenvolvido um sistema que primava pela eficiência no esforço de matar inocentes. Parte deste esforço vêm de pessoas que duvidam que a Terra seja redonda, que a humanidade tenha chegado à Lua ou que acham que as vacinas contra Covid sejam, na verdade, uma forma de nos controlar remotamente. É resultado de mentiras repetidas tantas vezes que as pessoas começam a duvidar se elas não têm um fundo de verdade. É resultado de uma visão de mundo alimentada e manipulada por muitas fontes que imagina uma realidade de dominação e abuso de poder em que poucos, em geral judeus, controlam todos os recursos. Incentivando esta narrativa, alguns estados como o Irã, em disputa direta com o Estado de Israel, que acreditam que seu conflito será resolvido ou minimizado se os judeus forem hostilizados em todo o mundo. Contra essa ameaça, precisamos continuar insistindo em educação e em rebater cada uma das mentiras — além de trabalhar com as empresas de mídia e, em particular com as empresas de mídia social, para impedir que elas sejam replicadas.

A segunda ameaça à memória da Shoá é a sua banalização.  Comparações pouco efetivas em que chamar alguém de nazista equivale a usar um palavrão, sem que haja qualquer elemento que justifique a analogia. Soldados israelenses retirando colonos judeus de assentamentos na Faixa de Gaza foram comparados a soldados nazistas por aqueles que se recusavam a sair; políticos que decretaram toques de recolher durante a atual pandemia de Covid pensando no bem-estar da população por quem eram responsáveis foram comparados a nazistas. Pode-se debater se a decisão de unilateralmente retirar os assentamentos de Gaza ou decretar toques de recolher eram as decisões políticas corretas em cada um destes contextos, mas eu não consigo entender de que forma a acusação de nazista está relacionada às atitudes que são criticadas. Quando a comparação com o Nazismo ou com a Shoá passa a valer para tudo, ela passa a não ter mais relevância alguma. Ela perde seu poder de persuasão e banaliza o genocídio e o sofrimento profundo que estão associados a este período histórico.

A terceira ameaça não vem da negação ou da banalização da memória da Shoá, mas da sua sacralização. Analogias e metáforas funcionam porque descrevem a realidade apelando à nossa capacidade de estabelecer relações que vão além da identidade perfeita. Quando, frente a um mal-estar emocional, eu digo que estou sentindo um nó no estômago, é óbvio que meu estômago não está literalmente contorcido em formato de nó. Quando, em uma analogia dos anos 80, diziam que São Paulo era a Bélgica do Brasil, não era porque aqui falássemos francês e alemão. O terceiro risco à memória da Shoá é o de não permitirmos que as lições que aprendemos deste episódio terrível nos sirvam também em outros momentos históricos — mesmo que as soluções genocidas não venha de um Adolf Hitler, mesmo que as vítimas não sejam mais os judeus, mesmo que técnica de extermínio não envolva câmaras de gás e fornos crematórios. Ou seja, mesmo que não exista uma identidade perfeita entre a realidade contemporânea e o regime nazista dos anos 30 e 40, precisamos ser capazes de adotar paralelos entre estes períodos históricos. 

Vários são os testemunhos que dizem que mais que o ódio nazista, o que contribuiu para o genocídio foi o silêncio e a passividade do resto da população. Será que podemos usar esta lição e aplicá-la quando a vida de grupos inteiros estão em risco hoje em dia? Será que podemos educar as novas gerações dentro de princípios que discriminar baseado em crenças religiosas ou posições políticas não nos leva a construir uma sociedade inclusiva? Será que podemos defender o pluralismo de ideias como uma excelente ferramenta, talvez a única, para que sociedades e regimes políticos reconheçam suas mazelas e adotem ações corretivas? Será que podemos perceber que desumanizar aqueles de quem discordamos, chamando-os de vermes, ratos ou comparando-os ao vírus nos aproxima perigosamente da conduta da propaganda nazista e abre a porta para que alguém proponha uma solução fácil e violenta para nos livrarmos deste tipo de gente?! 

Ontem, lembramos das vidas de 6 milhões de seres humanos judeus que tiveram  sua humanidade negada — o legado da Shoá precisa ser o de lutar pela humanidade de todos, o tempo todo — sem negar sua veracidade histórica, sem banalizar sua memória e sem congelá-la no tempo. Nunca o mundo implorou tanto para que seja assim.

Shabat Shalom.


[2] Yehuda Kurtzer, “Shuva: the Future of the Jewish Past”, Brandeis University Press, 2012, location 172.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Traga o Divino que você gostaria de ver no mundo!

De acordo com a tradição, foi no sétimo dia de Pessach, 21 de nissan, que o povo hebreu cruzou o Mar de Juncos e abandonou a terra das águas estreitas (Mitsrayim) para encontrar a liberdade na imensidão do deserto. Neste ano, 21 de nissan cai no shabat, quando o trecho da Torá tradicionalmente incluirá Shirat haYam, o poema que os hebreus cantaram ao cruzar o mar [1].

Não é difícil imaginar a angústia pela qual passavam aqueles hebreus antes da abertura do mar: de um lado, as tropas egípcias chegando; de outro, o mar à sua frente. Se ficassem, seriam mortos pelos soldados que os perseguiam; se seguissem, morreriam afogados. Finalmente, Moshé levantou seu cajado e o segurou sobre as águas do mar e Deus fez com que ele se abrisse, permitindo que o povo hebreu fizesse a travessia em segurança.

Ao analisar esta passagem, um antigo midrash diz que no Mar de Juncos, Deus apareceu ao povo como uma pessoa jovem e no Monte Sinai Deus lhes apareceu como uma pessoa idosa.[2] O mestre chassídico Levi Itschac de Berditchev, explica que esta ideia de que Deus era jovem quando abriu o mar se refere ao fato de que Deus subverteu as leis da natureza para abrir o mar, da mesma forma que jovens não prestam especial atenção às regras. A abertura do Mar, no entanto, foi uma exceção -- Deus costuma agir dentro das regras naturais, como o próprio Levi Itschac comenta a respeito das comemorações de Chanucá e Purim.[3]

Muitas vezes, ainda esperamos do Divino o nível de intervenção direta que vimos na narrativa de Pessach, comandando os eventos da história, prestando atenção aos clamores do povo, estabelecendo a justiça onde ela estava em falta. Nossa experiência histórica, no entanto, aponta em outra direção, na qual Deus espera que a humanidade aja, escutando os clamores dos vulneráveis, corrigindo suas injustiças (especialmente as sistêmicas), cuidando da Terra e de todos que nela vivem. O Deus jovem da abertura do mar deu lugar à “voz mansa e delicada” [4] e dependemos da fagulha divina em cada um para observarmos a ação Divina no mundo.

Não foram raros os momentos do nosso passado recente em que esperamos, passivos, a intervenção divina, mas parece que não vivemos na época do Deus jovem que subvertia as leis da natureza e hoje é nossa ação que se faz necessária. Em seu discurso na Marcha em Washington em 1963, imediatamente antes de Martin Luther King proferir seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, o rabino Joachim Prinz disse que, baseado em sua experiência vivendo na Alemanha Nazista, “o mais urgente, o mais vergonhoso, o mais vergonhoso e o mais trágico problema é o silêncio.”

Deus se manifesta de forma distinta em cada momento -- que este Shvií shel Pessach (o sétimo dia de Pessach) no qual voltamos a cruzar o mar dos juncos, nos inspire novamente e nos encorage a agir para um mundo em que todos possam chegar à sua amplidão e liberdade.

Shabat Shalom


[1] Ex. 15:1-18

[2]  Pessicta Rabati 21:5

[3] https://www.huffpost.com/entry/divine-light-human-hands-_b_793011

[4] 1 Reis 19:12


terça-feira, 30 de março de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 15: Com o olhar para o futuro: o impacto da Diáspora sobre a identidade judaica em Israel

(originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/15)

"Israel não é mais para todos os seus cidadãos." Este é o título de um dos textos do nosso convidado de hoje. Com pontos de vista diversos, até polêmicos, continuaremos explorando o papel de Israel na resiliência judaica dentro e fora da Diáspora, sobre Democracia, Direito, Cultura e muito mais.

Nosso convidado de hoje é Marcos Gorinstein, formado em Ciências Sociais pela UFRJ e mestrando em Estudos Latinoamericanos pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Marcos se mudou para Israel há 11 anos e desenvolve um projeto que ensina jiu-jitsu para crianças judias e árabes, Além disso, ele é produtos e apresentador dos podcasts Nos Anais da Mediná e Do Lado Esquerdo do Muro.

Referências:

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara