terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 11: Pontes Judaicas:O que Descobrimos

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/11)

O artista Olafur Eliasson fez uma obra emblemática: uma ponte com formas circulares que fica em Copenhaguen. A função desta ponte vai além da travessia eficaz, mais rápida possível e tem mais um objetivo: fazer com que aqueles que passam por ela apreciem a paisagem.

Terminamos o primeiro ciclo do 5.8 sobre pontes, tendo falado sobre as pontes entre judaísmo e ciência, direitos humanos, música e filosofia. No episódio de hoje, Laura Trachtenberg Houser e Rogério Cukierman observam a paisagem pela qual passaram ao cruzar tantas pontes e refletem sobre os assuntos que mais chamaram nossa atenção.

Referências do Episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Chamando Deus para enfrentar nosso descaso (CIP)


Um midrash que eu adoro [1] compara o patriarca Avraham a um sujeito andando pela estrada quando ele vê um farol aceso, o fogo brilhando intensamente. “Como pode ser que este farol está em chamas e a torre não se consome?” Se deu conta, então, de que havia alguém que tomava conta do fogo no farol, garantindo que ele continuasse iluminando o caminho dos navegadores sem consumir a torre. Assim era Avraham, diz o midrash, que viu um mundo em movimento, pegando fogo, sem, no entanto, se consumir. Deve ter alguém que toma conta do fogo para garantir que ele não consuma o mundo. Foi assim que Avraham intuiu a presença de Deus no mundo.

Um professor querido, o rabino Or Rose, se baseia em uma obra chassídica famosa, o Kedushat Levi, escrito pelo rabino Levi Itzchak de Berditchev no final do século 18, para falar de como a presença de Deus se manifesta de formas distintas [2]. Algumas vezes, como na parashá desta semana, Deus escuta os gritos dos hebreus em servidão e interfere diretamente na história, enviando os dez golpes sobre Mitsrayim e abrindo o mar para garantir sua libertação; outras vezes Sua atuação se dá de forma bastante mais discreta e limitada. Na leitura do Kedushat Levi, Deus se revela na abertura do mar como um jovem sem barba, sem medo de demonstrar todo o Seu vigor, dizimando os inimigos em Seu caminho para atingir os objetivos que tinha estabelecido. Apenas sete semanas separam este evento do recebimento da Torá no Monte Sinai, mas o Kedushat Levi enxerga Deus se apresentando de forma muito diferente: como um senhor de longas barbas, contido, limitado, preocupado que todos os israelitas presentes àquele momento pudessem ter tranquilidade para escutar os ensinamentos sagrados da Torá.

Essa ideia de que Deus se manifesta de formas distintas, se preocupando com a maneira como espera que nós reajamos talvez nos ajude a processar o período que estamos vivendo e a decidir como agir. Nos últimos dias, temos escutado mensagens terríveis com relação ao desenvolvimento da pandemia no Brasil. As notícias que chegaram ontem de Manaus davam conta de que o oxigênio na cidade tinha se esgotado, transformado respiradores em câmaras de asfixia [3]. Hoje, a notícia é que 60 bebês prematuros tiveram que ser transferidos para outros estados por falta de capacidade de tratamento na rede hospitalar do Amazonas. Imagine ser o pai ou a mãe de um destes bebês, já angustiado pela situação, tendo agora que acompanhá-los em uma viagem que pode lhe custar a vida.

Ficamos à procura da intervenção divina nestas situações, mas não encontramos nada. Como dizia Castro Alves, 

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…  [4]

A chama do farol está acesa mas parece que há ninguém cuidando para que o fogo não queime toda a torre.

Eu sempre me espanto como somos muitos mais racionais quando analisamos a vida dos outros do que quando tomamos decisões nas quais estamos diretamente envolvidos. No dia 04 de agosto de 2020, uma explosão gigantesca destruiu boa parte de Beirute, deixando mais de 200 mortos, 7,500 feridos e 300.000 pessoas sem seus lares. Logo nos primeiros dias da investigação, fomos informados de que a explosão tinha sido causada por uma grande quantidade de nitrato de amônio armazenada no porto da cidade por sete anos sem maiores cuidados. Quando vimos aquelas notícias, todos apontamos nossos dedos acusadores para as autoridade políticas do Líbano e para os responsáveis pela administração do porto. Como puderam agir de forma tão irresponsável, deixando tal quantidade de material explosivo sem cuidados?

Pois bem: passamos os últimos meses sendo alertados de que as festas de final de ano e as férias escolares desafiariam nossa convicção no isolamento social. E não deu outra, assim como os líderes do porto de Beirute, resolvemos jogar com a sorte e correr o risco para o qual nos alertavam. Seja pelos relatos familiares ou pelas listas que circularam pelas redes sociais, todos sabemos que a queda da nossa atenção nas últimas semanas têm levado a um aumento assustador nas infecções por Covid, não só no Amazonas. A triste verdade é que desencanamos e os resultados do nosso descaso estão aparecendo. 

A média móvel de vítimas diárias pela doença voltou a superar 1000 pessoas e já somos mais de 207 mil famílias enlutadas no Brasil [5]. Chegamos a níveis de ocupação hospitalar mais altos do que no primeiro semestre, e desta vez não temos toda a capacidade criada no começo da pandemia para expandir o atendimento. O Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI que tinha criado em resposta à pandemia; o hospital de campanha do Pacaembu foi fechado ainda no primeiro semestre e os do Ibirapuera e do Anhembi no meio do segundo semestre. O governador do Amazonas tinha determinado o fechamento do comércio no final do ano para limitar a disseminação do vírus, mas foi forçado a voltar atrás por pressão de comerciantes e políticos [6]. O maior cargueiro da FAB, que poderia transportar tanques de oxigênio para Manaus ou vacina para todas as partes do país foi enviado no começo da semana para os Estados Unidos, onde ficará fazendo exercícios militares até o dia 5 de fevereiro. 

Em um artigo excelente do rabino Ruben no Estadão de segunda-feira, ele tratou da questão da vacina e da priorização à vida. Em uma metáfora bastante adequada, ele perguntou:

Se diante de um prédio em chamas a equipe de bombeiros começasse a debater preços, materiais, estratégias, hierarquias ou teologias, enquanto morre grande parte dos moradores, seguramente essa equipe seria processada e condenada. Pelo menos por omissão. Em algumas sociedades, por homicídio. Mais ainda se abandonasse o prédio para se dedicar a qualquer outro afazer, em vez de salvar vidas. [7]

A questão, no entanto, é que os moradores do prédio, vendo a construção  toda em chamas, continuam em suas festas particulares, sem se importar com os resultados terríveis do seu descaso.

No comecinho da nossa parashá, em uma passagem que leremos amanhã no serviço de Shacharit, Deus disse a Moshé:

Eu sou ה׳. Eu apareci a Avraham, a Itschac e a Iaacov como El Shadai, mas eu não Me revelei a eles pelo meu nome ה׳. (…) Eu escutei os gritos dos israelitas porque os Mitsrim os escravizam e eu me lembrei do nosso pacto. [8]

Eu escutei os gritos dos israelitas, שָׁמַעְתִּי אֶת־נַאֲקַת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל, prestem atenção ao verbo שָׁמַעְתִּי, da  mesma raíz que Sh’má.

Em contraposição, o faraó é representado na parashá como alguém cujo coração está endurecido, que não tem a capacidade de notar o sofrimento alheio ou de escutar o grito que sua opressão está causando. Nesta passagem, é a empatia com a dor do outro que diferencia a conduta de Deus e a do faraó.

Como disse o Kedushat Levi, Deus aparece de distintas formas a cada geração, levando em consideração suas necessidades e potencial. Esse é o momento de permitir que nossas fagulhas divinas escutem os gritos vindo da nossa sociedade e passem a tomar conta da torre para que o fogo do farol não a consuma completamente.

שמע ישראל, Sh'má Israel: este é momento, esta é a hora.

Shabat Shalom,


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

“Pragas” e “golpes” contemporâneos

Faz uns vinte anos que eu comecei a colecionar hagadot de Pêssach. Começou pequeno, eu comprei minha primeira hagadá porque ia fazer um curso sobre seu texto e me encantei com as possibilidades de leituras contemporâneas deste texto milenar. Com o passar dos anos, fui descobrindo abordagens cada vez mais inovadoras e criativas para dar atualidade de relevância ao seder de Pessach, um dos rituais mais observados nas famílias judaicas, mesmo entre aquelas que se apressam em se auto-definir como “não-religiosas”. Na minha coleção, tenho hagadot hippies, vegetarianas, que tratam da questão dos refugiados contemporâneos e da escravidão moderna, textos que abordam questões de violência doméstica e a reprodução de uma hagadá histórica, preparada por sobreviventes da Shoá.

Na parashá desta semana, Vaerá, Moshé e Aharon se encontram com o faraó do Egito e exigem a libertação dos hebreus. Frente à recusa, Deus castiga o Egito uma vez, e uma segunda, uma terceira. Até que, ao final do décimo castigo, o faraó se convença a libertar os hebreus. Em hebraico, estes castigos são chamados “macot”, “golpes” ou “agressões”, foram traduzidos para outros idiomas como “pragas”. Em muitos dos textos alternativos que eu tenho na minha coleção há uma busca pela recontextualização desses dez golpes que afligiram o Egito e que, ao final, convenceram o faraó a libertar os hebreus -- novas listas das “dez pragas contemporâneas” que, invariavelmente, incluem a poluição, o preconceito de gênero e a LGTB-fobia, nossos vícios às telas, o câncer e outras doenças modernas e o antissemitismo. Neste contexto, faria sentido adicionar a Covid-19 a esta lista e chamá-la de mais uma praga dos nossos tempos.

Eu argumento, no entanto, que estas listas de pragas contemporâneas contêm uma profunda falha conceitual: seus ítens representam, de fato, terríveis problemas da nossa época, para os quais devemos buscar solução com urgência. Os dez golpes que afligiram o Egito, no entanto, não tinham essa característica! A diferença entre “pragas” e “golpes” é significativa; apesar de todo o sofrimento que trouxeram ao Egito, os golpes sobre os quais lemos em nossa parashá tinham um objetivo distinto e muito claro: convencer o faraó a libertar os escravos hebreus. Eram, portanto, ferramentas de pressão e de negociação, não instrumentos de tortura cujo objetivo fosse o de causar dor. Ao final do décimo (e mais potente) golpe, o faraó finalmente concordou com a libertação dos hebreus -- desta forma, a sequência de golpes atingiram o seu objetivo. Qual objetivo podemos encontrar nas chamadas “pragas contemporâneas”? Que bem maior elas buscam atingir?

Os golpes sobre o Egito deveriam ser comparados a greves ou a manifestações de rua: o desconforto que elas causam não é o seu objetivo final, mas a forma de pressionar para ter suas reivindicações atendidas. A legislação brasileira busca regulamentar estas manifestações para que seus direitos legítimos de expressão e de luta não gerem mais danos do que ganhos -- uma equação que, muitas vezes, depende de que lado estamos em determinada questão. No exemplo da Torá, enquanto nós celebramos a libertação dos hebreus, eu imagino que o ponto de vista egípcio coloque muito mais ênfase no aspecto devastador dos dez golpes. Até onde podemos ir na defesa dos nossos pontos de vista?

Na semana passada, tivemos um exemplo extremo de teste destes limites quando o Congresso americano foi invadido por grupos que pretendiam impedir, pela força, a validação dos resultados das eleições para presidente. Como um verdadeiro golpe, usaram do medo e da força da multidão para pressionar e tentar impor seu ponto de vista. Também no Brasil, temos assistido no passado recente grupos ameaçarem invadir o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal na tentativa de impor seus pontos de vista. Estas atitudes, ao fragilizarem nosso sistema democrático, não só se estabelecem como pragas, um mal que não traz benefício algum à sociedade, mas também como tentativas de golpe, em um sentido muito diferente da palavra.

Que possamos aprender os erros do nosso tempo, buscando solução para os problemas que afligem nossa sociedade, sem tentar impor nosso ponto de vista pelo uso do medo e da força.

Shabat Shalom!

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 10: Pontes Judaicas: Judaísmo & Filosofia

 (Originalmente publicado em: http://5ponto8.fireside.fm/10)

Por ser uma tradição que enfatiza tanto a ação, às vezes o judaísmo se parece com uma anti-religião, uma tradição religiosa que dá pouco espaço à teologia e às discussões filosóficas. E, mesmo assim, são inúmeras as contribuições do judaísmo à filosofia e vice-versa, de Philo de Alexandria, ainda no primeiro século antes da Era Comum, passando por Maimônides e por Baruch Spinoza, pelos cabalistas e pelos mestres chassídicos, não nos faltaram grandes filósofos, que nos fizeram repensar o judaísmo, nossa relação com a tradição e nosso papel no mundo.

Neste episódio vamos falar sobre as pontes entre filosofia e judaísmo com Francisco Moreno e com Ruben Sternschein.

Referências do Episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Rogério Cukierman

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Fazendo sentido de um ano montanha-russa (CIP)


Em 2007 eu me mudei de Los Angeles para Boston e nós resolvemos ir de carro. Para quem não tem o mapa dos Estados Unidos na cabeça, imagina uma retângulo deitado: Los Angeles fica no canto inferior esquerdo do retângulo, o que alguns insistem em chamar de sudoeste, e Boston ficano canto superior direito, que eles insistem em chamar de nordeste. Desse jeito, a viagem era uma verdadeira diagonal dos Estados Unidos, cruzando o país de sul a norte e de oeste a leste. Tudo contabilizado, foram quase 6.000 kilômetros que percorremos em duas semanas. Para essa aventura, tivemos a companhia do meu sobrinho Alê, que na época tinha 8 anos. Para quem já fez a maluquice de viajar tanto tempo com uma criança no carro, sabe que o roteiro precisa ser calibrado para cativar a atenção deles. Passeamos pelo Grand Canyon e por Zion National Park, fomos visitar o Lincoln Memorial e Washington DC  mas também fomos ao Aquário em Chicago, ao Zoológico em Denver e duas vezes a parques de diversões: à Disneylandia, ainda na Califórnia, e a Adventureland [1] em Iowa.

A maioria de vocês já deve ter ouvido falar na Disneylândia mas duvido que tenha muita gente que conheça Adventureland. Minha impressão é que éramos, no máximo, 20 pessoas no parque naquele dia. Logo de cara, fomos à montanha russa — daquelas cheias de loops e de viradas radicais. Quando achávamos que tínhamos nos acostumado com a rota e nos preparávamos para compensar a força centrífuga da próxima curva, ela nos enganava e fazia a curva para o lado contrário. Quando chegamos ao final da rota, a fila estava vazia e pudemos ir de novo sem precisar pegar fila, dessa vez bem na frente do carrinho! E assim fomos uma terceira vez depois dessa. Em todas elas, achando que tínhamos aprendido como usar o nosso peso para amenizar as mudanças radicais de direção só para nos darmos conta de que nossa preparação ajudava muito pouco….

Na parashá desta semana, damos adeus a Iaacóv, o terceiro patriarca, e a Iossêf, seu filho querido. A vida dos dois foi bastante como uma montanha-russa: altos e baixos e viradas inesperadas. Quando Iaacov se preparou para a batalha com seu irmão Essav, foi recebido para um abraço; quando Iossêf  exibia sua túnica listrada para seus irmãos, foi vendido como escravo; quando exercia seu poder na gestão do sistema de abastecimento egípcio, se viu frente-a-frente com seus irmãos, desesperados por mantimentos que o salvassem da seca na terra de Cnaán.

2020 como um todo teve um caráter inesperado, em que cada vez que nos achávamos preparados para o que viria, descobríamos novas surpresas; em que nossos planos sempre eram frustrados pela nossa absoluta incapacidade  de prever o que estava à frente. Nem tudo são notícias ruins… 2020 foi um ano em que descobrimos novas competências e novas formas de nos relacionarmos apesar das dificuldades. Aqui na CIP, nunca tivemos tantos participantes em nossos serviços religiosos, aulas e atividades culturais; nunca tivemos gente de tantas partes do Brasil e do mundo podendo se reunir para dizer adeus ou prestar apoio a seus entes queridos; nunca forjamos tantas parcerias, sejam elas locais como com a Hebraica e com o Hospital Albert Einstein, sejam elas com outras sinagogas do Brasil ou instituições internacionais. Mas não adianta dourar a pílula: se alguém nos oferecesse a oportunidade de correr pro começo da fila e viver 2020 de novo, pouquíssimos seriam aqueles que topariam o desafio. Este foi um ano em que aprendemos e crescemos bastante, mas que não queremos repetir.

Perto do final da parashá, logo depois do falecimento de Iaacov, Iossêf diz uma coisa para seus irmãos que sempre me deixou curioso pelo seu significado: 
וְאַתֶּם חֲשַׁבְתֶּם עָלַי רָעָה 
אֱלֹהִים חֲשָׁבָהּ לְטֹבָה
 לְמַעַן עֲשֹׂה כַּיּוֹם הַזֶּה לְהַחֲיֹת עַם־רָב׃
Apesar de vocês terem tido a intenção de me causar mal, Deus teve boas intenção
para garantir que acontecesse o que temos hoje: e mantivéssemos vivos um povo numeroso [2]

As implicações teológicas dessa afirmação de Iossêf são múltiplas, mas eu sempre fico me perguntando se é possível que tudo o que vivemos seja parte de um grande plano divino. A verdade é que eu não acredito nisso — mas no que eu acredito é que a tradição e a história judaicas têm nos mostrado como podemos aprender de momentos traumáticos da nossa história e aproveitá-los para transformar a nós mesmos e a o mundo. De alguma forma, a tradição judaica desenvolve esta ideia no conceito ירידה לצורך עלייה, a ideia de que algumas vezes precisamos de recuos temporários para podemos conquistar grandes avanços. 

Pessoalmente, eu me sinto mais confortável com o conceito  da busca por significado desenvolvido pelo psiquiatra austríaco Viktor Frankl inspirado pela sua experiência como prisioneiro de campos de concentração nazistas.  Pra Frankl, é dever da humanidade buscar o significado frente a cada situação traumática — mais do que as situações pelas quais passamos, é a forma como respondemos a estas situações que nos define. A experiência da escravidão no Egito passou a ser narrativa de fundação do povo judeu e a determinar nossa empatia permanente com as vítimas de todo processo de opressão. Apesar do trauma profundo que representou, a destruição do Templo no ano 70 EC permitiu o desenvolvimento do judaísmo rabínico, que tirou a ênfase dos sacrifícios animais como forma de relacionamento com o Divino e o substituiu pela reza e o estudo A mística judaica, a Kabalá, é, em grande parte, resposta ao intenso trauma representado pela Inquisição e pela expulsão dos judeus da Pensínsula Ibérica. Ainda é cedo para podermos saber de forma categórica como a experiência inenarrável da Shoá nos transformou, mas já podemos identificar duas vertentes: de um lado, o compromisso absoluto com os Direitos Humanos; de outro, a preocupação permanente de lutarmos contra o antissemitismo. 

Muito mais cedo para pensarmos como 2020 nos transformou e como faremos sentido do que este ano representou de fato. Se as mensagens de final de ano que eu recebi servirem como alguma indicação, há o desejo de aprendermos desta experiência e fazer de 2021 um ano significativamente diferente. Um ano em que valorizemos o abraço, um ano em que celebremos as conquistas e busquemos de fato a felicidade. Se eu poder adicionar à lista, que este seja um ano em que possamos reconhecer a absoluta interconectividade das nossas vidas, que o Sh’má nos inspire a perceber que, apesar de todas as diferenças aparentes, Deus representa a unidade de toda a realidade que nos cerca. Nunca foi tão evidente que cuidar do outro é o mesmo que cuidar de nós mesmos. Por um senso de auto-preservação pessoal e comunitária, eu torço para que este seja o significado que daremos à montanha russa que foi 2020.

Que seja um ano muito doce, com muitas alegrias e, principalmente, com muita saúde para todos nós.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 9: Pontes Judaicas: Judaísmo & Música

 (Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/9)

A música judaica “[d]efine-se como a música que derivou dos antigos cantos litúrgicos e orações praticadas no Levante há cerca de 3.000 anos atrás. A música judaica vem sendo constantemente adaptada, sem, no entanto, perder sua identidade, em meio aos diferentes ambientes étnicos, sociais, religiosos e culturais, em que tem existido e até florescido. A música do Judaísmo é um dos elementos fundamentais para a compreensão das tradições sagradas e seculares da Europa e do Oriente Médio, primeiramente por ter influenciadora e posteriormente, por ter sido influenciada pela música do Cristianismo e do Islamismo.”

Esta é apenas uma parte da definição de musica judaica segundo o Instituto da Música Judaica do Brasil. O fato é que a música acompanha a história e evolução judaica. Nos acompanha em momentos chave da nossa vida.

A música é um dos artefatos mais importantes da nossa cultura, além de ser inerentemente humana. Como dizia Nietzche, “sem a música, a vida seria um erro”

Neste episódio vamos falar sobre as pontes entre música e judaísmo com Yair Mau e Alexandre Edelstein.

Referências do Episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara