sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Fazendo sentido de um ano montanha-russa (CIP)


Em 2007 eu me mudei de Los Angeles para Boston e nós resolvemos ir de carro. Para quem não tem o mapa dos Estados Unidos na cabeça, imagina uma retângulo deitado: Los Angeles fica no canto inferior esquerdo do retângulo, o que alguns insistem em chamar de sudoeste, e Boston ficano canto superior direito, que eles insistem em chamar de nordeste. Desse jeito, a viagem era uma verdadeira diagonal dos Estados Unidos, cruzando o país de sul a norte e de oeste a leste. Tudo contabilizado, foram quase 6.000 kilômetros que percorremos em duas semanas. Para essa aventura, tivemos a companhia do meu sobrinho Alê, que na época tinha 8 anos. Para quem já fez a maluquice de viajar tanto tempo com uma criança no carro, sabe que o roteiro precisa ser calibrado para cativar a atenção deles. Passeamos pelo Grand Canyon e por Zion National Park, fomos visitar o Lincoln Memorial e Washington DC  mas também fomos ao Aquário em Chicago, ao Zoológico em Denver e duas vezes a parques de diversões: à Disneylandia, ainda na Califórnia, e a Adventureland [1] em Iowa.

A maioria de vocês já deve ter ouvido falar na Disneylândia mas duvido que tenha muita gente que conheça Adventureland. Minha impressão é que éramos, no máximo, 20 pessoas no parque naquele dia. Logo de cara, fomos à montanha russa — daquelas cheias de loops e de viradas radicais. Quando achávamos que tínhamos nos acostumado com a rota e nos preparávamos para compensar a força centrífuga da próxima curva, ela nos enganava e fazia a curva para o lado contrário. Quando chegamos ao final da rota, a fila estava vazia e pudemos ir de novo sem precisar pegar fila, dessa vez bem na frente do carrinho! E assim fomos uma terceira vez depois dessa. Em todas elas, achando que tínhamos aprendido como usar o nosso peso para amenizar as mudanças radicais de direção só para nos darmos conta de que nossa preparação ajudava muito pouco….

Na parashá desta semana, damos adeus a Iaacóv, o terceiro patriarca, e a Iossêf, seu filho querido. A vida dos dois foi bastante como uma montanha-russa: altos e baixos e viradas inesperadas. Quando Iaacov se preparou para a batalha com seu irmão Essav, foi recebido para um abraço; quando Iossêf  exibia sua túnica listrada para seus irmãos, foi vendido como escravo; quando exercia seu poder na gestão do sistema de abastecimento egípcio, se viu frente-a-frente com seus irmãos, desesperados por mantimentos que o salvassem da seca na terra de Cnaán.

2020 como um todo teve um caráter inesperado, em que cada vez que nos achávamos preparados para o que viria, descobríamos novas surpresas; em que nossos planos sempre eram frustrados pela nossa absoluta incapacidade  de prever o que estava à frente. Nem tudo são notícias ruins… 2020 foi um ano em que descobrimos novas competências e novas formas de nos relacionarmos apesar das dificuldades. Aqui na CIP, nunca tivemos tantos participantes em nossos serviços religiosos, aulas e atividades culturais; nunca tivemos gente de tantas partes do Brasil e do mundo podendo se reunir para dizer adeus ou prestar apoio a seus entes queridos; nunca forjamos tantas parcerias, sejam elas locais como com a Hebraica e com o Hospital Albert Einstein, sejam elas com outras sinagogas do Brasil ou instituições internacionais. Mas não adianta dourar a pílula: se alguém nos oferecesse a oportunidade de correr pro começo da fila e viver 2020 de novo, pouquíssimos seriam aqueles que topariam o desafio. Este foi um ano em que aprendemos e crescemos bastante, mas que não queremos repetir.

Perto do final da parashá, logo depois do falecimento de Iaacov, Iossêf diz uma coisa para seus irmãos que sempre me deixou curioso pelo seu significado: 
וְאַתֶּם חֲשַׁבְתֶּם עָלַי רָעָה 
אֱלֹהִים חֲשָׁבָהּ לְטֹבָה
 לְמַעַן עֲשֹׂה כַּיּוֹם הַזֶּה לְהַחֲיֹת עַם־רָב׃
Apesar de vocês terem tido a intenção de me causar mal, Deus teve boas intenção
para garantir que acontecesse o que temos hoje: e mantivéssemos vivos um povo numeroso [2]

As implicações teológicas dessa afirmação de Iossêf são múltiplas, mas eu sempre fico me perguntando se é possível que tudo o que vivemos seja parte de um grande plano divino. A verdade é que eu não acredito nisso — mas no que eu acredito é que a tradição e a história judaicas têm nos mostrado como podemos aprender de momentos traumáticos da nossa história e aproveitá-los para transformar a nós mesmos e a o mundo. De alguma forma, a tradição judaica desenvolve esta ideia no conceito ירידה לצורך עלייה, a ideia de que algumas vezes precisamos de recuos temporários para podemos conquistar grandes avanços. 

Pessoalmente, eu me sinto mais confortável com o conceito  da busca por significado desenvolvido pelo psiquiatra austríaco Viktor Frankl inspirado pela sua experiência como prisioneiro de campos de concentração nazistas.  Pra Frankl, é dever da humanidade buscar o significado frente a cada situação traumática — mais do que as situações pelas quais passamos, é a forma como respondemos a estas situações que nos define. A experiência da escravidão no Egito passou a ser narrativa de fundação do povo judeu e a determinar nossa empatia permanente com as vítimas de todo processo de opressão. Apesar do trauma profundo que representou, a destruição do Templo no ano 70 EC permitiu o desenvolvimento do judaísmo rabínico, que tirou a ênfase dos sacrifícios animais como forma de relacionamento com o Divino e o substituiu pela reza e o estudo A mística judaica, a Kabalá, é, em grande parte, resposta ao intenso trauma representado pela Inquisição e pela expulsão dos judeus da Pensínsula Ibérica. Ainda é cedo para podermos saber de forma categórica como a experiência inenarrável da Shoá nos transformou, mas já podemos identificar duas vertentes: de um lado, o compromisso absoluto com os Direitos Humanos; de outro, a preocupação permanente de lutarmos contra o antissemitismo. 

Muito mais cedo para pensarmos como 2020 nos transformou e como faremos sentido do que este ano representou de fato. Se as mensagens de final de ano que eu recebi servirem como alguma indicação, há o desejo de aprendermos desta experiência e fazer de 2021 um ano significativamente diferente. Um ano em que valorizemos o abraço, um ano em que celebremos as conquistas e busquemos de fato a felicidade. Se eu poder adicionar à lista, que este seja um ano em que possamos reconhecer a absoluta interconectividade das nossas vidas, que o Sh’má nos inspire a perceber que, apesar de todas as diferenças aparentes, Deus representa a unidade de toda a realidade que nos cerca. Nunca foi tão evidente que cuidar do outro é o mesmo que cuidar de nós mesmos. Por um senso de auto-preservação pessoal e comunitária, eu torço para que este seja o significado que daremos à montanha russa que foi 2020.

Que seja um ano muito doce, com muitas alegrias e, principalmente, com muita saúde para todos nós.

Shabat Shalom!


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