terça-feira, 16 de março de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 14: Com o olhar para o futuro: o impacto de Israel sobre a identidade judaica na Diáspora

(originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/14)

Apesar de nos orgulharmos dos 3500 anos da história judaica, é inegável que alguns eventos dos últimos cem anos têm um peso desproporcional na forma como vivemos judaicamente hoje em dia. A criação do Estado de Israel é um destes eventos com impacto sobre a identidade judaica de virtualmente todos os judeus. Há judeus que concordam mais com as políticas do Estado, outros que concordam menos; há aqueles que o enxergam como o centro de sua vida judaica, outros que nele encontram sua antítese. Antes um fator de união da comunidade judaica, Israel manteve este papel ao longo das suas sete décadas, mas passou a ser também um motivo de discórdia. Por isso, queremos escutar vozes diversas sobre a forma como o Estado de Israel impacta a identidade judaica, nossa resiliência, nosso orgulho, nossa segurança. Hoje, damos o primeiro passo dessa investigação.

Nosso convidado deste episódio é o Samuel Feldberg, doutor em Ciência Política pela USP e um especialista em questões relacionadas a Israel.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

quinta-feira, 11 de março de 2021

A hora de cuidar da comunidade

Na última semana foram inúmeras as mensagens nos grupos de pais da escola do meu filho: manifestos pedindo o fechamento da escola tendo em vista a piora do quadro de saúde pública, manifestos pedindo que a escola continue aberta tendo em vista os impactos positivos para os alunos, matérias de jornais, vídeos de pediatras e de outros especialistas, debates acalorados. Não aconteceu em nenhum dos grupos dos quais faço parte, mas escutei relatos de que os debates algumas vezes descambaram para ofensas pessoais. Ao mesmo tempo, no entanto, vi gente manifestando arrependimento de ter se colocado tão incisivamente a favor desta ou daquela posição, temendo que a guerra de manifestos destruísse a comunidade escolar.

Com o passar da semana, fui me dando conta de que a grande maioria das pessoas, independentemente da sua posição com relação ao fechamento da escola, estava tentando proteger a comunidade. Alguns pensavam na comunidade de crianças pequenas, tão carentes do contato com seus colegas e que, por estarem vivendo em isolamento de outras crianças da mesma idade, ainda não tinham desenvolvido competências sócio-emocionais importantes. Outros pensavam na comunidade de alunos, familiares, funcionários e professores que usam o transporte público, que se arriscariam ao contágio em ambientes saturados se tivessem que vir à escola. Havia quem pensasse na comunidade da cidade como um todo, querendo proteger aqueles que precisam trabalhar mesmo sob as mais rígidas condições de quarentena: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, funcionários da limpeza pública e dos transportes coletivos. A forma como definíamos nossa comunidade, ou pelo menos a comunidade pela qual nos sentimos responsáveis, tinha um impacto imenso em qual política considerávamos correta.

A parashá desta semana, Vaiakhêl-Pecudei, começa com Moshé reunindo toda a comunidade e lhes instruindo sobre a hora de parar para o Shabat e lhes pedindo para doar, cada um de acordo com a generosidade do seu coração, para o projeto comum, a construção do Mishcán. Assim como na época de Moshé, temos um projeto conjunto de comunidade, no qual investimos o que temos de mais sagrado: nossa saúde, nosso bem-estar em todos os seus aspectos.

Em 2020, lemos Vaiakhêl-Pecudei no mesmo final de semana em que tivemos o primeiro Cabalat Shabat a portas fechadas na CIP. Ainda inexperientes com a tecnologia e em conduzir um serviço religioso com a sinagoga vazia, começamos a experimentar novos passos. Quem assistir a transmissão do serviço de hoje e compará-la com o que fizemos há um ano, rirá da falta de técnica, óbvia naquelas primeiras transmissões. Aprendemos muito neste ano, passamos a valorizar coisas que considerávamos óbvias, revisitamos conceitos e valores, mas algumas coisas continuaram as mesmas como eram doze meses atrás.

Vários comentaristas notaram que na parashá desta semana alguns aspectos do projeto de construção do Mishcán são repetidos várias vezes. Uma das opiniões é que a repetição serve para indicar que líderes precisam tratar o bem comum com muito cuidado e prestar contas das suas ações à frente da comunidade. Neste momento, com a piora dos índices de saúde pública, é função de cada um de nós exercer sua liderança e garantir que o projeto comum da nossas comunidade, garantir a saúde de todos, seja desempenhado com responsabilidade, cuidado e transparência. Cabe a cada um de nós se cuidar e, assim, ajudar a cuidar da comunidade que todos tanto valorizamos.

Shabat Shalom


terça-feira, 2 de março de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 13: Com o olhar para o futuro: o judaísmo ibérico e holandês no Nordeste do Brasil

(Oiginalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/13)

"Quem segue a pé de Chinatown em direção ao Distrito Financeiro de Nova York talvez passe inadvertido, à altura do número 55 da St. James Place, diante dos 22 metros de comprimento de uma mureta feita de pedras superpostas, encimada por grades pontiagudas e enferrujadas. Por trás dela, nada de excepcional parece chamar a atenção no pequeno descampado estabelecido metro e meio acima do plano da calçada, o solo coberto de musgo e ervas daninhas. À primeira vista, aparenta ser apenas um terreno baldio, simples vazio urbano dando para os fundos deteriorados de prédios populares de três e cinco andares.

Assim de passagem, só mesmo uma dose singular de atenção e curiosidade irá discernir a placa retangular ao rés do chão interno, as letras em alto-relevo recobertas de pátina própria ao tempo: Primeiro Cemitério da Sinagoga Espanhola e Portuguesa Shearith Israel da Cidade de Nova York 1656-1833”

Nossos convidado de hoje é Lira Neto, escritor e jornalista, recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em quatro ocasiões (2007, 2010, 2013 e 2014) e uma vez o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA (2014). Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutorando em História pela Universidade Nova de Lisboa. Lira Neto está publicando nestes dias o livro “Arrancados da Terra” pela Companhia das Letras, no qual ele trata dos processos que levaram a comunidade judaica portuguesa a se refugiar na Holanda e, de lá, fazer parte da invasão holandesa no nordeste brasileiro.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)


Nestes dias, nós completamos um ano de pandemia no Brasil: foi em 25 de fevereiro de 2020 que o primeiro caso foi registrado no Brasil. Vocês lembram como foram os primeiros dias da pandemia? O primeiro serviço de Cabalat Shabat que transmitimos online foi no dia 13 de março, ainda com a presença do público. Um dia antes, uma equipe de umas dez pessoas, entre profissionais e voluntários da CIP, tínhamos saído assustados de uma reunião com epidemiologistas do Einstein e entendido que a Covid-19 estava chegando com força e que era preciso nos prepararmos. Uma semana antes, ainda estávamos nos reunindo sem maiores preocupações e até tivemos um jantar comunitário de Purim mas tudo mudou a partir de então. No Cabalat Shabat do dia 13, teríamos uma Laila Laván, um acantonamento dos alunos de Bar e Bat que passariam a noite aqui na sinagoga e que foi cancelada na última hora. Já na semana seguinte, no shabat do dia 20/03, fizemos o Cabalat Shabat com a sinagoga vazia pela primeira vez e assim tem sido desde então….

Naqueles primeiros dias, o Ale gravou um vídeo pro facebook cantando uma música do Raul Seixas,“O dia em que a Terra parou”, com uma pequena mudança — a versão que o Ale cantou dizia: “nas sinagogas, ninguém para rezar pois sabiam que o rabino também não tava lá e o chazán não apareceu para cantar pois sabia que não tinha ninguém para escutar.” [1]

Pois é… estamos aqui, praticamente um ano depois, 251.661 [2] vidas perdidas depois, no número de ontem. Cada um de nós, cansados, carentes de um abraço apertado, sem aguentar mais aulas e reuniões por Zoom, festas de aniversário a distância, happy-hours em que a gente cada um toma a sua cerveja e come o seu petisco sem poder compartilhar com os outros… é como se a gente fosse sentindo aquela luzinha interior que cada um tem se apagando, um sentimento que é ainda mais agudo e doloroso quando a gente vê a luz dos nossos filhos diminuindo.

Se a gente voltar ainda mais no tempo, 5781 anos para ser exato, e voltar para a criação do mundo de acordo com a narrativa judaica, a Torá diz que a primeira coisa que Deus criou foi a Luz, e viu que era boa e distinguiu a Luz da Escuridão [3]. A mística judaica diz que esta primeira luz foi escondida e a luz que temos hoje é aquela que apareceu no quarto dia da criação, quando Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. Este assunto do que aconteceu com האור הגנוז, a Luz Priomordial que foi escondida, é assunto de muita especulação na literatura [4]. Há midrashim que dizem que ela está guardada para os tsadikim, para as pessoas especialmente justas e corretas, que a receberão no futuro [5]. O Zohar, por outro lado, a obra central da Cabalá argumenta que, se esta Luz Primordial tivesse sido inteiramente removida, não seria possível que a vida continuasse existindo. Pelo contrário, diz o Zohar, essa Luz foi escondida e plantada como uma semente, que gera frutos e suas próprias sementes e possibilita que o mundo continue existindo [6].

A liturgia diária talvez reflita um pouco desta perspectiva — na reza que. vem imediatamente depois do Barechú, que trata da questão da luz e na qual agradecemos a Deus por formar a luz e criar a escuridão, fazer a paz e criar tudo, nós afirmamos que Deus renova a todo dia e sempre os atos da Criação. Esta criação contínua que nunca para e que é nutrida pela Luz Primordial, ainda que não seja totalmente claro como este processo acontece.

Nesse momento em está mais difícil manter as nossas próprias luzes internas, as faíscas divinas que nutrem a nossa própria alma, eu adoraria descobrir um reservatório assim de luz escondida, animando um processo permanente de Criação. 

A parashá desta semana também trata de luz — logo no seu começo, ela traz a instrução para que os israelitas estabelecessem uma ner tamid, uma luz eterna que ficasse acesa o tempo todo. Os comentaristas quebraram a cabeça tentando entender o motivo para esta instrução. Hoje em dia é fácil: ligamos uma lâmpada em um fio que não está ligado a nenhum interruptor e garantimos que, a menos que falte luz elétrica, a luz eterna não se apagará. Imaginem, no entanto, antes da invenção da luz elétrica — manter a tal chama acesa permanentemente implicava ter uma fonte permanente de combustível, normalmente azeite que precisava ser sempre adicionado para que a chama não se apagasse.

Um professor querido meu, o rabino Nechemia Polen, diz que precisamos ler muitas passagens da Torá como instrumentos para alimentar a relação entre Deus e a humanidade, como buquês de flores que casais se presenteiam sem motivo algum ou as delicadezas do dia a dia que fazemos àqueles de quem gostamos. Pequenos gestos de apreciação cotidiana, que indica para a outra pessoa que ela é importante para nós. Um midrash [7] é rápido em afirmar que Deus não precisa desta luz, a instrução para colocá-la acima da arca só está lá para nosso benefício.

Quem sabe, foi justamente para este momento e outros momentos de desespero ao longo da história judaica, que a luz eterna foi estabelecida? Uma lembrança da nossa capacidade permanente de recriação em um mundo dinâmico, uma indicação que existem recursos escondidos até mesmo de nós mesmos aos quais podemos recorrer quando as notícias parecem especialmente desanimadoras, um recado claro de que depende de nós alimentarmos constantemente o azeite para que a nossa luz eterna continue brilhando, iluminando as nossas vidas e de todos aqueles ao nosso redor.

Aquela reza à qual eu fiz menção, ela termina dizendo אוֹר חָדָשׁ עַל צִיּוֹן תָּאִיר וְנִזְכֶּה כֻלָּנוּ מְהֵרָה לְאוֹרוֹ, “que uma nova luz brilhe sobre Tsión e que todos possamos vê-la em breve”. A tradição tem entendido que essa frase indica que a Redenção, esta nova luz que esperamos que brilhe sobre todos nós, não precisa ser inventada, ela apenas precisa ser revelada e tirada do seu esconderijo, um processo que envolve cada um de nós e nossos esforços de manutenção das nossas luzes eternas.

Que nesse shabat, ainda escondidos em nossas casas, possamos revelar nossas luzes e, assim ganhar impulso para iluminar o mundo todo. 

Shabat Shalom!


[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/25/brasil-bate-recorde-de-mortes-por-covid-19-registradas-nas-ultimas-24-horas-1582.ghtml
[3] Gen. 1:3-4
[4] https://www.jstor.org/stable/26833118
[5] Bereshit Rabá 3:6
[6] Zohar II 148b-149a. 
[7] Shemot Rabá 36:2

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O direito de esquecer e de ser esquecido e a responsabilidade de lembrar

Nossa memória tem a capacidade interessante de suavizar os sobressaltos pelos quais passamos ao longo de nossas vidas. Como se fosse uma lixa potente tratando de alisar a textura de um móvel áspero, vamos, ao longo dos anos, lembrando de versões mais amenas de conflitos, aumentando os papéis que tiveram as pessoas que amamos, diminuindo nossas próprias falhas. É uma ferramenta importante para que consigamos continuar vivendo depois de termos passado por episódios especialmente difíceis — na sua falta, continuaríamos recordando traumas, remoendo mágoas, vivendo no arrependimento. Tal qual uma obra literária ou um filme “baseados em fatos reais”, nossa memória mantém um pé naquilo que realmente aconteceu, mas com o outro busca aliviar o ônus de vivermos permanentemente com essas lembranças.

De um tempo para cá, no entanto, essa característica da nossa memória tem sido dificultada pela quantidade de registros que vamos deixando das nossas experiências e interações. De que adianta a memória suavizar um conflito se basta uma visita às mensagens do aplicativo para nos lembrarmos exatamente da dor que tínhamos sentido? Quando cometemos um deslize, os registros nas redes sociais não permitem que nossa memória o registre em tons mais suaves do que tinha originalmente. Tudo que escrevemos, fotografamos e filmamos está indexado pelas ferramentas de busca e a um clique de distância de quem procura saber quem somos, ainda que já não sejamos a mesma pessoa que produziu ou aparece nessas peças. Não só para presidentes que o pedido “esqueçam o que escrevi” já não é mais possível — tudo o que escrevemos, seja um artigo ou um status, se torna permanente. 

Quem consegue viver com a responsabilidade perpétua por cada ato desatento? Quem consegue sustentar relacionamentos cujas falhas sempre voltam a nos revisitar como fantasmas?

O shabat desta semana é chamado “Shabat Zachor”, “o shabat em que você é orientado a se lembrar”. Uma das passagens da Torá que leremos neste sábado começa com a instrução “Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito — como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, ele o surpreendeu na marcha, quando você estava faminto e cansado, e matou todos os retardatários em sua retaguarda” e termina ordenando “Portanto, quando Adonai teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que o Adonai teu Deus te dá por herança, apague a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça!” [1] A tensão entre a lembrança e o esquecimento fica evidente nessas linhas. Aqui, trata-se da memória de um ato que se cristalizou na tradição judaica como a expressão paradigmática da covardia e do mal. Nessas situações, nas quais o trauma de quem as viveu é evidente, onde fica a nossa conduta: será que nos esforçamos para lembrar e garantir que ações similares nunca mais aconteçam ou garantimos que as esqueçamos, poupando as vítimas de reviver aqueles momentos terríveis?

Como em tantos outros assuntos, não há respostas absolutas que contemplem todas as situações. Em um mundo que registra cada vez mais detalhes do que falamos, do que fazemos, para onde vamos, a sedução de momentos em que possamos de fato esquecer e sermos esquecidos, é tentadora. De outro lado, há a obrigação ética de lembrar para que aprendamos das nossas experiências, garantindo que — individual e socialmente — não caiamos sempre nas mesmas armadilhas. 

Que do encontro do nosso direito ao esquecimento com nossa responsabilidade por lembrar consigamos construir situações em que possamos crescer sem carregar permanentemente o peso do mundo e das nossas memórias nas nossas costas.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 25:17-19


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 12: Com o olhar para o futuro: mudanças judaicas na São Paulo do século XX

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/12)

Depois de um curto intervalo, começamos uma nova série no podcast 5.8 buscando subsídios nas lições da história judaica para nossa busca pelas chaves do futuro judaico. Neste episódio, conversamos com Lucia Chermont sobre a história da comunidade judaica de São Paulo no século XX e algumas das transformações pela qual ela passou neste período.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara e Rogério Cukierman

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Revendo até o que está escrito em pedra (CIP)


As expressões idiomáticas sempre fazem a gente pensar um pouco sobre o seu significado, especialmente quando elas são em um idioma que aprendemos quando somos mais velhos. Sempre aparece uma tradução de “a vaca foi pro brejo”, “testa de ferro” ou “enfiar o pé na jaca” para outro idioma que evidencia como é cultural o significado que atribuímos a estas expressões. Em algumas situações, a expressão brasileira me parece bem mais apropriada: “gota d’água” faz muito sentido pra mim, que tentei muitas vezes colocar até a última gota de água na garrafa só pra me dar conta de que aquela última gota é que fez o copo transbordar. A expressão equivalente em inglês e em hebraico, “o canudo que quebrou a coluna do camelo”, não me transmite a mesma sensação de familiaridade com a situação. Tem outras situações que não parecem fazer sentido algum e que são replicadas em vários idiomas: “chorar pelo leite derramado”, por exemplo. Eu não entendo seu significado, apesar de valer em português, em inglês, em hebraico, e, quem sabe, em outros idiomas também. Uma música antiga israelense do grupo Kaveret, propunha em tom de piada derramar leite quando víssemos pessoas chorando, por que - considerando que não se chora pelo leite derramado — elas parariam de chorar [1].  Uma vez, eu deixei uma garrafa de whisky cair no chão da garagem e ela se espatifou pelo chão. Pra quem gosta de whisky, ou pelo menos gosta do cheiro de whisky, junto com a dor por ter perdido aquela garrafa, veio o prazer o cheiro delicioso na minha garagem. Ao invés de chorar pelo whisky derramado, eu sentei na garagem, fechei suas portas e passei um tempo apreciando os aromas. Será que é isso que quer dizer chorar pelo leite derramado?!

Uma expressão comum ao inglês e ao português é dizer que algo está “escrito em pedra”, ou “written in stone” querendo dizer que é imutável. Ou talvez a expressão seja mais usada no seu negativo, querendo dizer que algo “não está escrito em pedra”, querendo dizer que é negociável.

Vivemos em um momento de intransigências — em que parece que todo mundo quer que suas opiniões estejam escritas em pedra, com a garantia de que elas sejam imutáveis, independente dos fatos que sejam apresentados.  Ou que suas decisões sejam inscritas em pedra, que nunca mudem mesmo que as condições de alterem radicalmente. 

Daqui a duas semanas, vamos comemorar a festa de Purim. Pra quem se lembra de história de Meguilat Ester, o livro de Ester que lemos nesta data, ele conta que um primeiro ministro maldoso convenceu o rei da Pérsia a matar todos os judeus do Império e que foi só através da intervenção de Ester, a esposa judia do rei, que o plano foi impedido. Uma coisa que eu nunca consegui entender é quase no final da trama quando o rei diz sobre o decreto determinando o extermínio dos judeus: “וְנַחְתּוֹם בְּטַבַּעַת הַמֶּלֶךְ אֵין לְהָשִׁיב”, “algo que foi validado com o anel do rei não pode ser revogado.” [2]

Por que?? Se o rei mudou de opinião e entendeu que ele havia sido manipulado em um processo com o qual não concorda mais, por que ele não pode revogar um decreto emitido em seu nome?!

Na parashá desta semana, Deus faz os Dez Anúncios para o povo de Israel, que ficaram conhecidos como Os Dez Mandamentos. Inscritos em tábuas de pedra, estas eram palavras que determinavam balizes éticas mínimas para a nossa conduta. Não matar, não roubar, respeitar nossos pais e nossas mães.

Exceto que…. essas palavras, apesar de inscritas em pedra, também mudaram.

O segundo dos Dez Anúncios diz o seguinte:

Você não terá outros deuses além de mim. Você não deve fazer para si uma imagem esculpida, ou qualquer semelhança do que está nos céus acima, ou na terra abaixo, ou nas águas sob a terra. Você não deve se curvar a eles ou servi-los. Pois eu, ה׳ teu Deus, sou um Deus apaixonado, que visito a culpa dos pais nos filhos, na terceira e na quarta geração daqueles que me rejeitam, mas mostrando bondade para com a milésima geração daqueles que me amam e guardam as minhas mitsvot. [3]

No entanto, uma outra passagem da Torá, que aparece no livro de Devarim, Deuteronômio, vai na direção contrária, afirmando que “os pais não serão condenados à morte por seus filhos nem os filhos pelos seus pais: uma pessoa deve ser condenada à morte apenas pelos seus próprios crimes.” [4]

Um midrash explica a discrepância entre estas duas passagens da Torá  imaginando uma cena em que Moshé contesta Deus em sua decisão sobre a forma como a regra havia sido inicialmente estabelecida: 

Moshé disse: “Senhor do Universo, veja quantos malfeitores já geraram justos! Eles deveriam ser removidos pelas iniquidades de seus pais? Terach era um criador de ídolos, mas seu filho, Avraham, era justo; assim também Chizkiá era justo, mas Acaz, seu pai era um malfeitor; Ioshiahu era justo, mas Amon , seu pai era um malfeitor. É apropriado que os justos sejam feridos pelas iniqüidades de seus pais?!” Deus lhe disse: “Você Me ensinou! (…) anularei as Minhas palavras e preservarei as tuas palavras, como está escrito 'Os pais não serão condenados à morte pelos filhos, nem os filhos pelos pais’” [5]

Diferente do rei Achashverosh da história de Ester, Deus não responde que suas palavras já estão escritas em pedra e que não podem ser alteradas. Quando Lhe são apresentados argumentos convincentes, o Divino está aberto para reconhecer que até mesmos as Suas palavras podem ser alteradas — qual, então, seria o motivo para que não pudéssemos revisitar as nossas?

Metaforicamente escrever palavras em pedras implica congelar nossas opiniões, impedir que elas evoluam e respondam a novos contextos, a novas informações, às transformações pelas quais todos nós passamos. Em um cenário de tantas incertezas e de mudanças tão dinâmicas, profundas e frequentes como temos vivido, me parece que este é o pior erro que podemos cometer.

Que sejamos como Deus, prontos para revisitar até o que está escrito em pedra e humildes para reconhecer quando não temos razão.

Shabat Shalom!


[2] Ester 8:8
[3] Ex. 20:4-6
[4] Deut. 24:16
[5]  baMidbar Rabá 19:33