sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Dvar-Torá: Reconhecendo nossos parceiros e seus apoios (CIP)

Esta semana, eu estava conversando com os professores de bar e bat-mitsvá sobre o papel da Torá na nossa tradição. Haviam aqueles que diziam que era é o nosso “Livro das Leis” e outros que diziam que ele é o “Livro das Nossas Histórias Sagradas”. Tentamos uma análise gramatical da palavra, sem muito sucesso: de um lado, a raiz da palavra Torá está associada à mesma raiz da palavra “moré”, professor, ou “morá”, “professora”. De outro lado, uma busca rápida no dicionário hebraico-hebraico mostra as associações da palavra “Torá” com lei, mandamento, instrução, fundamento para o comportamento e a fé” ou “livro de leis que Moshé deu ao povo de Israel.” [1]
Esse debate não é recente. Em resposta ao primeiro verso da Torá, aquele que dá início à narrativa da Criação do Mundo: “Quando Deus começou a criar o céu e a terra - a terra sendo desforme e vazia, com trevas sobre a superfície das profundezas e um vento de Deus varrendo a água - Deus disse: ‘Haja luz’; e houve luz” [2], Rashi, o mais famoso comentarista da Torá, disse: “Escutei do meu pai que a Torá deveria ter começado apenas em ‘Este mês será para vocês’”. [3] Imaginem só! O mundo sendo criado e o comentário de Rashi é que este assunto não é importante o suficiente para justificar que a Torá se inicie por ele! Deveria ter começado com um verso que faz parte da parashá desta semana, no começo da instrução sobre a comemoração de Pessach dali para frente. Esta é considerada a primeira mitsvá coletiva formalmente formulada na Torá e parece que o pai de Rashi acreditava que a Torá, sendo um livro de leis, deveria começar com leis! Todo o resto seria introdução desnecessária…
Eu, por outro lado, e eu confesso que aqui deve me influenciar bastante minha visão de mundo judaica e o papel que a halachá, a lei judaica, tem nesta visão de mundo, não acho que a Torá seja fundamentalmente um livro de leis e acho que o fato de que o livro não começa no verso “Este mês será para vocês” [4] é prova disso. Na minha leitura, a Torá é o livro das nossas histórias sagradas, de provocações sagradas que tem mantido nosso povo debatendo temas de importância fundamental por gerações e gerações. Nestas férias, eu comecei a ler um dos livros judaicos que estão em moda nos Estados Unidos: “Here All Along: Finding Meaning, Spirituality and a Deeper Connection to Life — in Judaism”; “Sempre Aqui: Encontrando significado, espiritualidade, e uma conexão mais profunda com a vida — no judaísmo”. Sarah Hurwitz, a autora, é uma ex-redatora-chefe dos discursos de Michelle Obama quando ela era a primeira dama dos EUA, que descobriu a profundidade no judaísmo que a educação judaica que tinha recebido na infância nunca tinha lhe transmitido. Eu me animei quando, frente às inúmeras perguntas que ela mesma levanta sobre uma passagem especialmente obscura, ela afirma na introdução: “A Torá não dá respostas claras para estas questões. Esta história não é simplesmente um conto com uma moral no final, é uma provocação, o convite para uma conversa — ou, talvez, um debate.”  [5] Isso!!!! Uma provocação, um convite a uma reflexão mais profunda…
Eu já contei que a primeira mitsvá da Torá está na nossa parashá — então deixa eu também identificar uma provocação que eu acho absolutamente pertinente para esta época do ano e para o que nós todos estamos vivendo.
Eu quero encorajar todo mundo a ler o comentário que o rabino Ruben escreveu sobre esta parashá para o Congregar. Quem não pegou um, encontra o texto também no site [6] e nas mídias sociais da CIP. O rabino Ruben fala do evento do Dia Internacional da Memória do Holocausto aqui na CIP e também do Fórum da Shoá, que aconteceu em Jerusalém com a presença de importantes líderes políticos internacionais. Eu estive aqui na CIP no domingo passado e fomos honrados com a presença de mais de 1.200 pessoas, entre elas importantes lideranças dos mundos político, diplomático, judaico e inter-religioso. Na segunda feira, eu estive em outro ato, desta vez no haShomer haTzair, onde lideranças dos movimentos negro, LGBTQI, de imigrantes, indígena e judaico discutiram como resistir ao silenciamento de suas vozes e à opressão da qual se sentem vítimas. Nas duas instâncias, parcerias importantes foram construídas entre lideranças judaicas e outros movimentos políticos, religiosos e sociais.
Tivemos um arco imenso de apoios — mas, ao invés de celebrarmos este sucesso, continuamos nos sentido abandonados, especialmente quando somos atacados. Só pra falar dos últimos meses, tivemos o episódio do Secretário de Cultura, da revista IstoÉ, da injúria contra o vereador aqui em SP, além de inúmeras suásticas marcadas em muros e um sem número de ofensas pessoais das quais nem ficamos sabendo. Em cada um destes episódios, nos sentimos sozinhos, sem ninguém para nos apoiar.
Quando lemos a história da saída do Egito, nem sempre é óbvio percebermos de que forma somos apoiados, mas os apoios estão lá, claros para quem se dispuser a encontrá-los. Shifra e Puá, as duas parteiras que desafiaram o faraó e se negaram a assassinar os bebês hebreus como ele havia instruído, eram, de acordo com boa parte dos comentaristas, duas mulheres egípcias que escutaram sua consciência. Bat-Yá, a filha do faraó que encontra Moshé boiando no rio Nilo e o adota, também não era hebreia. Como não eram hebreus os vizinhos que concordaram com o pedido dos hebreus e lhes deram objetos de ouro prata [7]. Também não eram hebreus a multidão que escolheu se juntar ao povo de Israel e lhes acompanhar no trajeto da servidão à Terra Prometida [8]. “Erev Rav”, é como eles são descritos no texto da Torá, uma “multidão diversa”. A rabina Gail Labovitz conta que, de acordo com alguns comentaristas, a sociedade egípcia estava dividida em três partes com relação à exigência de Moshé para que os hebreus fossem libertados: um grupo queria mantê-los escravos, estes morreram com as pragas; um grupo apoiava a demanda dos hebreus por liberdade, estes foram os que lhes deram prata e ouro; um terceiro grupo celebrou a libertação junto com os hebreus, são estes que compuseram o “erev rav”. [9]
Nossa sensação de isolamento e abandono também tem a ver como a forma como escolhemos enxergar os apoios que recebemos. Quantas vezes, ao lermos a história do Êxodo, não identificamos os apoios que recebemos, sem os quais, teria sido impossível termos sucesso na libertação? Da mesma forma, quantas vezes lemos nossa própria experiência como comunidade supervalorizando nossos adversários, mas sem dar a devida importância aos nossos parceiros? É verdade que estes apoios são muito mais explícitos em alguns momentos do que em outros, mas eles indicam que não estamos sozinhos. Juntos, os atos aos quais estive presente no domingo e na segunda-feira tiveram representantes de uma lista imensa de representações diplomáticas, de algumas dezenas de perspectivas religiosas e de quase todo o espectro político brasileiro. Se soubermos valorizar estes apoios e construir parcerias e alianças, podemos transformar estes apoios pontuais em relacionamentos permanentes, nos sentir bem acompanhados ao longo de todo o ano, incluindo quando nos sentimos atacados e ameaçados. Isso implica, é lógico, nos importarmos também com as dores e opressão dos outros — estarmos prontos a apoiá-los quando eles são atacados e entendermos que parcerias e alianças são relacionamentos que demandam mutualidade.
O livro das nossas histórias sagradas — histórias que não perdem a relevância, provocações que nos convidam a reavaliar nossas perspectivas, até nossos sentimentos, nossos medos e neuras!
No shabat que vem leremos sobre como, na saída do Egito, à beira do mar, perseguidos e com medo, encontramos a força e a coragem para, juntos, fazermos a travessia, nos libertarmos da opressão e encontrarmos a liberdade. Que no aqui e agora, nos sentindo também sozinhos e temerosos, que sejamos capazes de apreciar e celebrar os apoios que recebemos e que consigamos caminhar sem medo, sem nos sentirmos sozinhos ou abandonados.


[1] Dicionário Even Shoshan. Significados (1) e (2) para o verbete “תּוֹרָה”
[2] Gen. 1:1
[3] Rashi sobre Gen. 1:1
[4] Ex. 12:2
[5] Sarah Hurwitz, Here All Along: Finding Meaning, Spirituality and a Deeper Connection to Life — in Judaism, p. 11.
[7] Ex. 12:35-36
[8] Ex. 12:38

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

As muitas faces de Deus e as portas que elas nos abrem

Um midrash famoso diz que toda pessoa é conhecida por três nomes: um pelo qual seus pais a chamam, um pelo qual as outras pessoas a chamam, e um que ela constrói para si mesma [1]. O midrash aponta para o fato de que apresentamos diferentes facetas de nós mesmos em momentos diversos das nossas vidas: somos carinhosos e cuidadosos ao pegar um bebê recém nascido nos braços, animados quando celebramos uma data importante, agressivos quando reclamamos de uma injustiça.

Logo no começo da parashá desta semana, o texto indica que esta dinâmica também se aplica à relação de Deus com as pessoas. Deus diz a Moshé: “Eu sou Adonai.  Apareci a Avraham, Itschak e Iaacov como El Shadai, mas não permiti que eles conhecessem meu nome Adonai.” [2] (no texto da Torá em hebraico, Deus usa seu nome impronunciável, que eu traduzi como “Adonai”)

Nesta fala, Deus reconhece que o tipo de relacionamento que teve com os três patriarcas, fundadores da fé e da família que daria origem ao povo judeu, não era o mesmo que teria com Moshé, líder de uma nação escravizada, seu libertador e representante político.

O mestre chassídico Levi Itschac de Berditschev, comparou Deus no momento de abrir o mar para a saída dos hebreus do Egito a um jovem sem barba mas disse que, ao revelar a Torá no Monte Sinai, Deus apareceu como um velho, com longas barbas que envolviam e vestiam o mundo. Para o rabino, a saída do Egito é um modelo de força Divina, enquanto a entrega da Torá é um exemplo de Deus se controlando e limitando Seu impacto. [3] Neste seu comentário, ele reconhece que mesmo na relação com Moshé e a geração que foi libertada do Egito, Deus se comportou de formas distintas, respondendo às demandas de cada momento.

Da mesma forma, cada um de nós desenvolve seu próprio relacionamento com o Divino, que evolui e se transforma ao longo das nossas vidas. Quantas vezes não pedimos que Deus agisse como “curador-chefe”, nos livrando de uma doença que nos afligia? Em outros momentos, podemos ter pedido para que Deus fosse mais enérgico, nos encorajando a sair de uma estado de passividade para que assumíssemos a condução de nossa própria vida ou que Deus nos acolhesse e permitisse que, metaforicamente, deitássemos em Seu colo, recebêssemos cafuné e chorássemos nossa tristeza.

Esta riqueza de imagens para a realidade Divina é parte fundamental da tradição judaica que, em sua pluralidade teológica, acolhe até mesmo os mais racionais e aqueles para quem a palavra “Deus” não remete ao inexplicável, ou àquilo que está além da nossa compreensão. Para alguns, imagens mais consolidadas de Deus, tão presentes em filmes e até em muitas partes da liturgia judaica (Deus como Rei, como Pai, como Pastor), ao invés de abrirem a conexão espiritual, a bloqueiam e impedem que se estabeleça um vínculo. Para estes casos, talvez ajude a pensar em Deus como “fonte da vida”, “alma de toda coisa viva” ou “fagulhas da alma”, como sugere a poetisa judia americana Marcia Falk [4].

Se Deus se revela com todas estas faces e com todos estes nomes, cabe a cada um de nós deixar a porta entreaberta para que ao menos um aspecto do Divino possa nos acolher e encher nossos dias de significado e de possibilidades. Que assim seja este nosso Shabat!


[1] Midrash Tanhuma, Parashat Veyekel, ítem a 
[2] Ex. 6:2-3
[3] Or Rose, “Divine Limitation and Human Responsibility”, in Righteous Indignation: a Jewish Call for Justice, pgs. 25-27.
[4] Marcia Falk, The Book of Blessings.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Dvar Torá: O respeito pelo direito do outro ser quem é (CIP)

No domingo começou um novo ciclo do Daf Iomi, um projeto que começou em 1923 e na qual pessoas do mundo todo estudam a mesma folha do Talmud, uma por dia, até terminar de ler o Talmud Bavli inteiro em pouco menos de 7,5 anos. O ciclo começou com o tratado Brachot, “Bençãos” — e eu comecei a pensar um pouco sobre as bençãos que damos e que recebemos nas nossas vidas….
Além disso, esta semana eu tive a honra e o prazer de fazer parte do ato inter-religioso da formatura da Faculdade de Medicina da USP. O que a gente diz em uma hora dessas? Uma opção é buscar um livrinho de bençãos - e eu tenho certeza de que deve haver uma versão judaica destes livrinhos e ler uma benção escrita especialmente para formatura de médicos - coisas que seriam bonitas e relevantes, mas também absolutamente genéricas. Eu fiquei pensando em palavras um pouco mais personalizadas, que conversassem com a realidade de cada formando. Como conciliar as necessidades individuais de 123 formandos nos cinco a dez minutos que cada um de nós tinha para falar? Essas eram algumas das perguntas que eu  tinha quando eu comecei a me planejar para participar do ato.
Quando eu recebi minha ordenação rabínica, a rabina Sharon Cohen-Anisfeld, que era a diretora do meu seminário, me deu uma benção que refletia com grande aderência quem eu era e quem eu ainda sou. Ainda hoje, passados oito anos daquele momento, ler o que ela me disse enche meus olhos de lágrimas. De algum jeito, eu queria ter para aqueles formandos um papel semelhante; tarefa impossível, por que eu não os conhecia…. 
Na parashá desta semana, Iaacov se dirige a cada um de seus filhos homens. Infelizmente, se Diná, a filha sobre a qual a Torá nos conta, e as outras filhas de Iaacov mencionadas em midrashim, também receberam suas benção, isso não é mencionado na história desta semana. Algumas semanas atrás, lemos sobre o episódio em que Iaacov ludibria seu pai, Itschak, para ganhar sua benção como primogênito no lugar de Esaú. A benção que ele recebeu foi:
Que Deus te dê o orvalho do céu e a gordura da terra, abundância de novos grãos e vinho. Que povos te sirvam, e as nações se curvem a você; Domine seus irmãos, e deixe os filhos da tua mãe se curvarem a você. Malditos os que te amaldiçoarem, abençoados os que te abençoarem. [1]
De um lado, é a benção de um pai que quer o melhor para o seu filho. De outro lado, é uma benção tão genérica que poderia ser dada a qualquer um. Não há nada nela que reflita a personalidade de quem a está recebendo, fem faz diferença que Itschak achava que estava abençoando Essáv mas acaba abençoando Iaacov no seu lugar. 
Quando chegou a hora de Iaacov abençoar seus filhos, ele escolhe a rota oposta à de seu pai e busca algo individualizado para dizer a cada um, misturando benção, crítica e previsão do futuro, com uma transparência e honestidade que chegam a ser chocantes e, em alguns casos, chegam a se parecer com maldições. Pinchas Peli, um rabino ortodoxo israelense da segunda metade do século 20, escreveu que “nossas vidas frequentemente ficam confusas e enroladas por falta de uma definição precisa de quem e o que realmente somos. Assim, o testamento de Jacó era de fato uma ‘bênção', porque tinha como objetivo ajudar seus filhos a encontrar sua própria identidade.” [2] Cada um com a sua identidade, uma benção diferente e personalizada para cada filho. Iaacov conhecia cada um dos seus filhos de forma individualizada e percebia suas forças e suas fraquezas. Além disso, ele procurava perceber qual era o caminho que cada um deles estava trilhando para si mesmo, não aquele com o qual ele tinha sonhado.
Esse é um desafio constante que temos na interação com outras pessoas: reconhecer o direito que cada um tem de tomar suas próprias decisões e buscar apoiar aqueles em que amamos na busca do seu próprio caminho. 
Há alguns anos, quando eu morava nos Estados Unidos, participei de um fórum de diálogo inter-religioso para judeus, cristão e muçulmanos. Ao final de um evento, uma moça de outra religião me abordou, contando que ela tinha estado perdida, sem rumo na vida, mas que tinha se encontrado em um determinada doutrina religiosa. “Eu não entendo como posso amar alguém e não rezar para que essa pessoa encontre o caminho também”, ela me disse. Eu respondi: “eu fico muito feliz que você tenha encontrado sua verdade nesse caminho, mas esse é um caminho que levou você à sua verdade. Agora, eu preciso encontrar o meu caminho, que leva à minha verdade.” A moça saiu confusa, especialmente com o fato de que um rabino não tivesse indicado que a minha perspectiva era absoluta e que ela deveria abandonar a sua fé e adotar a minha. É fundamental reconhecer a individualidade de cada pessoa e o fato de que não existem respostas universais que sirvam a todos; o que é benção para um, por ser maldição para outro.
É difícil viver em um mundo em que as certezas não sejam absolutas; em que as verdades sejam, em muitos casos, relativas — a gente fica sem saber por o que torcer para o outro. Mas é também lindo e é o espaço criado pelo abandono das certezas absolutas que nos dá a possibilidade de sermos realmente livres.
O rabino Eugene Borowitz, um dos grandes teólogos do movimento reformista americano no século 20, propõe o seguinte exercício mental: 
Tomemos o caso de um pai que tem o poder de insistir numa determinada decisão e uma boa dose de experiência na qual basear seu julgamento. Neste caso, a vontade de impor é quase irresistível. No entanto, se é uma questão que o pai acha que a criança pode dar conta – ou melhor, se tomar essa decisão e assumir a responsabilidade de forma autônoma ajudará a criança a crescer como indivíduo, então, o pai maduro deve se retirar e tornar possível para a criança tomar a decisão e, assim, se tornar mais completamente ela mesma. (…) Dar espaço para o outro significa exatamente isto, incluindo permitir que a criança tome decisões tolas de vez em quando. Nunca poder fazer a coisa errada significa não ser verdadeiramente livre. [3]
A liberdade está na possibilidade de fazermos algo de que o outro discorda. Se só tivéssemos a possibilidade de fazer aquilo sobre o qual há consenso ou sobre o qual as pessoas que detêm autoridade sobre nós estão de acordo, então não teríamos realmente liberdade alguma. Este conceito se aplica tanto à liberdade de expressão quanto à liberdade de ação. 
Muitas vezes, pais, mães, avós, tios, padrinhos, professores têm dificuldade em lidar com o fato de que nossos filhos, netos, sobrinhos, afilhados, alunos tomam decisões das quais discordamos radicalmente. Mas criar de verdade, educar de verdade, é vislumbrar a benção que eles podem ser no seu próprio caminho, na sua própria verdade.
Que nesse shabat, um dia em que as bençãos flutuam no ar, possamos efetivamente reconhecer o outro  de forma plena, enxergando e respeitando seus sonhos, seus desejos, suas discordâncias e também os assuntos em que concordamos. Que nesse dia especialmente abençoado possamos torcer para que cada um de nós encontre o caminho que leva à sua própria verdade e que, juntos, possamos iluminar mutuamente esta trajetória de descobertas.

[1] Gen. 27:28-29.
[3] Eugene B. Borowitz (1924-2016), “Tzimtzum: A Mystic Model for Contemporary Leadership”, Religious Education 69(6), 1974.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Dvar Torá: Nossas respostas ao antissemitismo (CIP)

כל העולם כולו גשר צר מאוד והעיקר לא לפחד כלל.
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

Pra quem esteve na CIP no serviço do segundo dia de Rosh haShaná e ainda se lembra, eu falei sobre o medo e sobre como, às vezes, ele pode nos congelar, nos impedir de caminhar para onde realmente precisamos ir, nos fechar nos nossos cantos sem a possibilidade de vislumbrar saída. Eu falei disso tudo inspirado por um podcast do New York Times que tinha retratado como a Ella, uma menina que tinha acabado de completar 9 anos, tinha lidado com os seus medos, enfrentando-os e colocando-os nas suas devidas proporções. Eu contei como, quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.” Aprender a viver com o medo sem deixar que eles nos paralise, que nos convença a abrir mão de quem somos ou que nos transforme em pessoas desconfiadas e amarguradas é uma das competências mais importantes que podemos desenvolver e ensinar neste começo de século 21.

No final de 2019 e começo de 2020, o New York Times revisitou os melhores episódios do seu podcast e lá estava a história da Ella e de como ela tinha enfrentado o seu medo. No final, apareceu uma novidade: Barbara Greenman, uma senhora de 70 anos que tinha se sentido inspirada pelo exemplo da Ella a confrontar os medos dela. “Quem sabe dos seus medos?”, perguntou a senhora à menina. “Quase todo mundo à minha volta”, foi a resposta. “Mesmo os teus colegas de classe?!” a pergunta voltou, com um certo ar de surpresa. “Sim, todo mundo sabe dos meus medos”, Ella respondeu. Nós adultos, em geral, temos vergonha dos nossos medos e, por isso, os escondemos. Para usar uma analogia comum nos nossos dias, é como se entrássemos no armário e guardássemos lá parte importante de quem somos; e, como não reconhecemos a verdade do medo, acabamos escondendo, junto com o medo dentro do armário, outras partes importantes das nossas identidades, justamente aquelas que poderiam, em algum momento, ser o gatilho disparador do medo.

Eu falo tudo isso, é claro, em um período de aumento assustador do antissemitismo a nível global. O ataque à família chassídica em Nova York na penúltima noite de Chanucá foi só a gota d’água que libertou, para alguns de nós, fantasmas que tentávamos manter controlados e trouxe à tona os nossos piores medos.

Será que o mundo não aprendeu nada da experiência terrível da Segunda Guerra?, nos perguntamos a nós mesmos? Em um mundo no qual cresce a intolerância às minorias e que marcha rapidamente para a escuridão do abismo, nosso esforço de acender velas de Chanucá parecia não ter tido sucesso em trazer de volta a luz, o respeito mútuo, a valorização da diversidade.

Quando eu tinha 15 anos, fui pela primeira vez a Israel em um programa organizado pela Agência Judaica. Veio um sujeito da segurança do Consulado falar com a gente sobre segurança no voo e ele nos disse: “se seu avião for sequestrado, não pense duas vezes antes de jogar fora qualquer elemento que te identifique como judeu. Tire o chai, a estrela de David, a chamsa, jogue tudo para longe. Neste momento, é melhor garantir que você fique vivo do que morrer como herói.” Para alguns de nós, o mundo inteiro, a ponte estreita sobre a qual todos nós caminhamos, foi tomada por fanáticos e o melhor que podemos fazer é garantir que fiquemos vivos — e nesse processo, jogam fora qualquer identificação judaica, qualquer sinal que os defina como potenciais alvos.

Yehuda Kurtzer, um dos acadêmicos do mundo judaico que eu mais respeito, escreveu o seguinte: 
Na frase do Rav Nachman, ‘não temer’ é o princípio essencial, mesmo ao longo das pontes mais estreitas. Não devemos pensar, especialmente nós que temos medo de alturas, que a ponte não seja aterrorizante. Mas não ousamos transformar certos sentimentos – aqueles que refletem nossas experiências do mundo, aqueles que não podemos controlar completamente – em crenças que definem como interpretamos o mundo e o que podemos fazer sobre isso. O grande paradoxo do anti-semitismo é que, em última análise, ele pode ser um ódio que desafia de tal forma uma explicação fácil, que ele nunca pode ser totalmente derrotado mas, ao mesmo tempo, não podemos nos permitir sucumbir à sua definição de quem somos. É por isso que me recuso a ter medo. Há muito o que fazer. [1]
Na parashá desta semana, lemos sobre o desfecho do encontro de Iossef com seus irmãos. Sem saber que fala com seu irmão, Iehudá explica para o vice-rei que manter seu irmão Biniamin preso no Egito seria o mesmo que matar seu pai, Iaacov. É só nesse momento que Iossef se dá conta de que sua estratégia de esconder sua verdadeira identidade dos seus irmão não daria nenhum resultado. Por outro lado, quando ele revela a verdade, tem a oportunidade de reconciliação com quem lhe tinha causado tanto sofrimento e a possibilidade de salvar toda a família de seu pai, que se muda para o Egito, fugindo da seca. Muitos são os comentaristas que mostram os paralelos entre a história de Iossef e a de Ester, aquela que lemos em Purim [2]. Ambas histórias acontecem fora da terra de Israel, tem como protagonistas israelitas que chegaram próximo ao poder, em parte auxiliados por sua beleza física, e que usam esta proximidade para salvar seu povo. Tanto no começo história de Iossef como na de Ester, a vida do rei é salva, mas algum tempo se passa antes que o ato seja reconhecido e recompensado. A lista de paralelos é longa, já foi apontada há bastante tempo e continua sendo objeto de estudo e pesquisa.

Assim como Iossef, Ester escondeu sua identidade durante boa parte da história – uma história que tem como uma das questões centrais a manutenção da identidade judaica na Diáspora. Em algum momento, sabendo que seu povo estava em perigo, Ester lamenta, mas indica que não está disposta a correr riscos para salvar os judeus da Pérsia. A resposta do seu tio, Mordechai, é direta e incisiva: “Não imagine que você, dentre todos os judeus, escapará com vida por estar no palácio do rei. Pelo contrário, se você ficar calada nesta crise, alívio e libertação chegarão aos judeus de outra parte, enquanto você e a casa de seu pai perecerão. E quem sabe, talvez você tenha alcançado a posição real apenas para uma crise dessas.” [3]

Uma resposta possível para o medo que estamos sentindo é nos fecharmos em nós mesmos, tentar escapar do ódio e da intolerância fingindo que não é com a gente. Há aqueles que arrancarão qualquer sinal de os identifique como judeus e, assim, se sentirão seguros. Uma segunda resposta, ainda dentro deste paradigma, é construir muros mais altos, contratar mais seguranças, se fechar dentro das bolhas e, assim, se sentir seguro.

Eric Ward, um americano ativista pelos direitos humanos, diz que “a forma como tratamos um ao outro de forma corajosa tem um impacto duradouro. Na sua essência, ser humano significa ver a humanidade do outro. Estamos em uma época em que esta habilidade está sendo desafiada.”  [4]

Quando, em resposta ao medo e a termos nossa humanidade negada, nos fechamos em nós mesmos e fingimos que não é com a gente, não estamos vendo a humanidade do outro — e, na minha opinião, deixamos de ser judeus. Há muitas opiniões sobre qual o ensinamento central da Torá: há quem diga que é “Ama a teu próximo como a ti mesmo” ou o conceito de termos sido criados à imagem de Deus [5] ou “não faça para o outro o que é odioso para você” [6]. Eu colocaria entre estes conceitos aquele de que devemos proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, “כִּי גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם”, “por que vocês foram estrangeiros na terra de Mitsrayim”. A tradição judaica é que nossa experiência histórica sob opressão nos ensina a nos solidarizarmos com as vítimas de opressão em toda parte. Ser judeu, para mim, é ter esta empatia para com o outro, é entender que antissemitismo, racismo, misoginia, islamofobia, GLBTQ-fobia são faces distintas do mesmo preconceito. A cada hora ele se manifesta contra um grupo, mas o problema é o mesmo. 

Não existe solução para o antissemitismo que não passe por resolver a questão mais ampla do preconceito e, por isso, não existe solução para o antissemitismo que não passe por estabelecermos parcerias com outros grupos e, juntos, procurarmos criar uma cultura de valorização apaixonada da diversidade. 

É urgente nos darmos conta de que é lindo que sejamos todos diferentes, com aparências diferentes, idéias diferentes, gostos diferentes, concepções diferentes de Deus. É lindo na comunidade judaica e fora dela; é lindo para aqueles com quem concordamos e, principalmente, para aqueles de quem discordamos. 

Parcerias não exigem que sejamos idênticos nem que concordemos em tudo, só exige que compartilhemos alguns valores centrais e que tenhamos um objetivo comum.

Por outro lado, não existe solução para o problema do antissemitismo enquanto acharmos que podemos jogar nossa identidade no canto como se fosse uma corrente com um chai, enquanto não desenvolvermos um orgulho profundo da nossa própria identidade judaica, cada um nos seus termos, não como se ela fosse superiora a qualquer outra, mas porque ela é nossa e ajuda a definir quem somos. É inconcebível permitir que antissemitas definam nossa identidade judaica: quem é judeu e quem não é; o que quer dizer ser judeu e o que não; que cara tem um judeu e que cara não tem; quais são nossos valores e quais não são. 

Uma das coisas das quais eu mais me orgulho no Judaísmo é a nossa tradição do debate e, por isso, “ser judeu” pode significar coisas radicalmente diferente para cada um de nós.

O American Jewish Committee lançou uma campanha para ilustrar este orgulho judaico, que ganhou a adesão da Fisesp e da CIP. O pedido é que você poste uma foto na 2a feira, dia 6 de janeiro, com algum símbolo judaico — as instruções exatas podem ser encontradas nas mídias sociais da CIP e da Fisesp. [7] 


Eu sugiro que sejamos criativos nas nossas escolha de “símbolos judaicos”: vamos usar esta campanha para sair dos estereótipos e mostrar a diversidade da nossa comunidade! Quem sabe um símbolo judaico é se engajar em uma campanha de Ticún Olam? Quem sabe é o maiô com que você treina natação na Hebraica todo dia? Ou é a árvore florida na frente da tua casa, que te lembra do processo constante de criação do mundo? Quem sabe é o teu amigo cristão, que te liga pra saber como você está quando ouve de algum ataque antissemita do outro lado do mundo? O Judaísmo é TEU, o símbolo judaico também! Não deixa os outros te imporem o que quer dizer ser judeu, nem os de dentro nem os de fora da comunidade judaica.


כל העולם כולו גשר צר מאוד  והעיקר לא לפחד כלל
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

O paradoxo desta ponte estreita é que é muito mais fácil passar por ela de mãos dadas, com mais gente ao nosso lado. Assim, também, é muito mais fácil não ter medo.

Shabat Shalom!

[3] Ester 4:13-14.
[5] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30b
[6] Talmud Bavli, Shabat 31a
[7] https://www.facebook.com/cipsp/photos/a.296046297191552/2482717198524440/?type=3&theater

A subversão da justiça e a proximidade do poder

Recentemente, uma polêmica agitou a comunidade judaica brasileira: até que ponto deve haver alinhamento automático entre as entidades representativas da comunidade judaica local e os governos com os quais nos relacionamos, seja ele brasileiro ou israelense? 

O relacionamento com governos é uma questão recorrente na vida judaica, presente em várias das nossas comemorações: Purim, Pessach e Chanucá celebram a forma como judeus conseguiram se livrar de situações opressivas no relacionamento com o poder da época; datas adicionadas mais recentemente ao calendário, como Iom haShoá e Iom haAtsmaut, refletem aspectos contemporâneos dessa questão.

A relação com a autoridade estabelecida está no centro das questões levantadas pela parashá desta semana. Iossef, o filho vendido como escravo por seus irmãos e que tornou o vice-rei do Egito, havia plantado evidência de que Biniamin, seu único irmão de pai e mãe, havia roubado uma taça de prata da sua casa— agora, os irmãos tentam convencer o vice-rei a prender outro irmão, mas permitir que Biniamin retorne à casa de seu pai. A Torá não relata os motivos de Iossef, mas claramente coloca os irmãos à mercê da sua vontade.

No processo investigativo brasileiro, não são raras as acusações de evidências plantadas ou forjadas, especialmente contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade. A subversão do processo legal tem levado à deterioração dos níveis de confiança nas instituições da justiça e a que cada grupo passe a buscar atalhos que garantam a execução da sua percepção do que é certo ou o seu próprio favorecimento.

Conforme a história da parashá progride, Iossef revela sua verdadeira identidade aos irmãos e os convida para se mudarem para o Egito, juntamente com seu pai, para escaparem da seca intensa que afligia toda a região. Como familiares do vice-rei, os filhos de Iaacov receberam terras entre as melhores do reino em um momento em que a população egípcia, também afligida pela seca, era obrigada a abrir mão de seus animais e de suas terras para poderem ter o que comer.

O paralelo com a realidade política brasileira, novamente, não poderia ser mais direto. Infelizmente, nossa tradição tem sido de que a proximidade com aqueles que ocupam o poder garante privilégios indevidos. Em um cenário no qual a garantia dos direitos legais não se dá pela ordem institucional, mas pela proximidade àqueles que detém o poder, ganha força a tese que defende alinhamentos comunitários automáticos e para a qual posicionamentos críticos são perigosos.

A tradição judaica, no entanto, é crítica de alinhamentos automáticos com qualquer governo e expressa orgulho em questionar até mesmo Deus, a autoridade suprema. Nossos textos enfatizam a importância de um processo de justiça isento e expressam ambiguidade com relação à proximidade daqueles que detém o poder, reconhecendo que dependemos deles, mas receosos de que a proximidade seja contraproducente. Antes de buscar resultados imediatos, me parece que a atuação comunitária judaica deve se pautar pela busca desses valores e pelo fortalecimento das instituições democráticas e da ordem institucional. 

Que neste shabat possamos sonhar com um Brasil mais justo e democrático e que neste 2020 possamos caminhar, juntos, nesta direção.

Shabat shalom,

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Dezembro sem dilema – Judaísmo em diálogo com o mundo em Chanucá (CIP)

Além de muitas coisas para muitos grupos, esta terça feira, 24 de dezembro, marca o shloshim do rabino Henry Sobel. Quem esteve aqui na linda cerimônia que a CIP organizou em sua memória deve ter percebido que eu não compartilhei nenhuma memória dele. Tem um ótimo motivo para isso: nós mal nos conhecíamos. Ele conduziu minha cerimônia de bar-mitsvá, é verdade, mas minha família e eu quase nunca vínhamos à CIP, então ele não teria motivo nenhum para se lembrar de mim passados alguns meses da cerimônia. Um exemplo deste distanciamento: vários anos depois do meu bar-mitsvá, já na faculdade, eu comecei a namorar uma menina muito ativa na CIP. Ela acumulava duas posições profissionais aqui e ainda era ativa como voluntária na Avanhandava e na Colônia. Nosso namoro patinava porque todo tempo livre que ela tinha era passado aqui nesse prédio, para desespero do namorado (eu!), que queria mais tempo juntos. Um dia, eu não lembro bem o motivo, eu estava na CIP com ela e o rabino Sobel apareceu. Com a chutspá típica de um garoto de 20 anos, me aproximei do rabino e lhe pedi que usasse seus contatos no diálogo inter-religioso para converter minha namorada ao catolicismo, argumentando que o envolvimento dela com a comunidade judaica estava matando nosso namoro. O rabino Sobel, que certamente não se lembrava do meu bar-mitsvá, imaginou — é claro — que eu fosse católico! Por que mais alguém pediria ao rabino para converter sua namorada para outra religião?! Então, em palavras proféticas, o rabino me disse: “meu querido, muito mais fácil trazer você para perto de nós do que deixar ela ir embora.” O resto é história, mas hoje aqui estou eu, rabino, desta CIP….

Tem, no entanto, uma prédica do Sobel da qual eu me lembro claramente. Era nesta época do ano e ele se manifestava contra um costume judaico liberal americano: o “Chanukah Bush”, ou a árvore de Natal fantasiada de Chanucá. Ele se manifestava pela viabilidade do diálogo com membros de outras religiões, mas afirmava que era importante que soubéssemos manter também o que era nosso e não se apropriar do que é das outras tradições. Nesta época do ano, com abundância de celebrações conjuntas judaico-cristãs, é fundamental lembrarmos que não precisamos – mais do que isso, não podemos – abrir mão de quem somos quando entramos em diálogo com o outro.

Mais do que isso: para alguns filósofos, o encontro com o outro é passo fundamental para a definição da identidade. Num mundo em que existissem apenas mulheres – como a ilha de onde veio a Mulher Maravilha – ninguém se definiria como mulher; se todos fôssem judeus no mundo, religião não definiria identidade. É só quando encontramos alguém que difere da gente em algum aspecto que aquele aspecto ganha relevância em sua dimensão identitária.

A possibilidade deste diálogo com a diferença está no centro das questões suscitadas pela festa de Chanucá. Até onde é possível nos integrarmos a espaços diferentes de nós mesmos sem abrirmos mão daquilo que nos é mais caro? Os americanos têm uma expressão, “slippery slope”, “uma rampa escorregadia”, para falar do risco de que uma concessão acabe levando a abrirmos mão de tudo. De que forma o diálogo com outras culturas ou outras religiões é a “slippery slope”, da vez? Tomando a história de Chanucá como exemplo, até quanto podemos defender a integração com a cultura ocidental antes de vermos sacrifício de porcos a deuses pagãos em nossos templos religiosos?

Esta semana eu assisti de novo “Truman Show”, um filme de pouco mais de vinte anos, da época em que a Reality TV, os programas do tipo Big Brother, O Aprendiz, The Bachelor, Masterchef, estavam apenas começando. No filme, e aqui não vai nenhum spoiler, toda uma realidade é construída para acompanhar a vida deste sujeito que, desde o nascimento, tem todo segundo de sua vida transmitido ao vivo. Truman Burbank, o sujeito do filme, vive uma enorme mentira cinematográfica, mas acredita estar vivendo a realidade. No filme, o diretor deste enorme projeto afirma: “Aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada. Simples assim” – e eu fiquei me perguntando: “para quantos momentos das nossas próprias vidas, esta frase descreve a nossa abordagem com relação ao que vivemos: nós aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada; simples assim.” O que fazer quando percebemos que a realidade do mundo que nos é apresentada não reflete com exatidão a realidade do mundo como ela é?! Esta parece uma pergunta fundamental em uma época em que a manipulação da verdade tem se tornado cada vez mais comum. Há cerca de um mês, assisti uma matéria da BBC em que apareciam vídeo de Boris Johnson e de Jeremy Corbyn, rivais na eleição britânica da semana passada, pedindo votos um para o outro. As imagens eram as deles, as vozes eram as deles, mas os vídeos eram absolutamente forjados usando recursos computacionais avançados. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Mentir não é novidade, falsificar evidências também não. Na parashá desta semana, Vaieshev, os filhos de Iaacov apresentam o manto ensanguentado de Iossef como prova de que um animal selvagem o tinha atacado. O que Iaacov não sabia, mas o texto da Torá nos conta, é que os irmãos tinham vendido Iossêf como escravo e molhado sua roupa no sangue de um bezerro que eles tinham abatido. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Uma das falsas narrativas mais frequentemente promovidas no mundo judaico é a do isolamento da comunidade judaica ao longo dos séculos. Nessa versão da história judaica, nossos antepassados vestiam todos capotes pretos e shtreimel, aqueles grandes chapéus usados pelos ultra-ortodoxos; viviam em um shtetl em que nunca entravam em contato com não-judeus, só conheciam o mundo sob a perspectiva da tradição judaica e seguiam todas as 613 mitsvot ao pé da letra. Todas as tentativas de interação com o mundo não-judaico teriam levado a desastres - nesta versão, os feriados de Purim e Chanucá, por exemplo, seriam evidência da impossibilidade da convivência entre o mundo judaico e nossos vizinhos não judeus. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Os pesquisadores da história judaica não param de apontar para as interações - algumas positivas, outras nem tanto, entre a cultura judaica e o mundo exterior. O mais interessante é que estas pesquisas apontam para uma  tendência judaica a se apropriar de elementos culturais não-judaicos e re-interpretá-los de acordo com nossos valores e nossas narrativas. O seder de Pessach, eles argumentam, é uma implementação da tradição romana do simpósio — uma experiência culinária que incluía pequenas porções para serem comidas antes do prato principal, jogos para manter as crianças acordadas, vinho antes e depois da refeição, valorizavam perguntas, músicas e louvor a Deus e tinham conversa centrada ao redor do motivo para aquelas comidas. O que o simpósio romano não tinha era a discussão ao redor da liberdade analisada pela perspectiva da tradição judaica. Da mesma forma, os estudiosos da liturgia do casamento dizem que a quebra do copo está ligada a um costume pagão para espantar os maus espíritos, que teriam medo do barulho — apropriamos o costume, mas reconstruímos seu significado e valores, associando a quebra do copo à perspectiva judaica de não acreditar em absolutos e, por isso, trazer alguma tristeza à cerimônia de casamento. No caso de Chanucá, como eu já comentei com alguns grupo neste ano, o sevivon, aquele peãozinho que tem nas laterais as letras “נ, ג, ה, ש”, iniciais da frase “נס גדול היה שם”, “um grande milagre aconteceu por lá”, também teve sua verdadeira história ocultada por uma outra. Na escola, eu aprendi que os gregos não deixavam os judeus estudarem Torá então, nossos antepassados — provavelmente, vestindo capote preto e shtreimel —  estudavam Torá escondidos, mas com os sevivonim em cima da mesa. Quando as autoridades gregas chegavam, eles escondiam seus livros e jogavam sevivon para enganar os gregos. A verdade revelada pelos arqueólogos é bem diferente: o sevivon é originalmente um brinquedo católico irlandês do século XVI, parte de um jogo de apostas chamado “Totum”, ou “tudo” em latim. No século XIX, chega à Alemanha, onde as letras das suas laterais são traduzidas para que o mesmo jogo pudesse ser jogado no idioma local. Quandos as letras em alemão são transliteradas para o ídiche, dão origem à sequência נ, ג, ה, ש. Adaptamos o brinquedo católico, mas fizemos com que ele se tornasse parte de uma narrativa de Chanucá, que valoriza a busca da luz nos nossos momentos mais sombrios, que encoraja a coragem de ter atitude mesmo quando as chances são mínimas, que acredita em um mundo multicultural, em que nem todos precisem adotar as mesmas práticas. 

Estes exemplos apontam para a contínua capacidade judaica de estar presente no diálogo com o outro; que não vê a diferença como ameaça e, sim, como oportunidade de crescimento; que pretende continuar a milenar tradição judaica de se relacionar com o seu entorno e nunca se esconder dele.

Infelizmente, a perspectiva que nega estas possibilidades, que distorce evidências e manipula narrativas, tem conseguido sucesso em apresentar sua visão judaica construída com base na separação como a única verdadeira. Para alguns, convencidos de que esta visão excludente representa o “judaísmo autêntico”, é motivo para adotarem certos estilos de vida e perspectiva teológicas. Para muitos outros, no entanto, este é motivo para se afastarem totalmente da comunidade judaica, percebida como auto-centrada e desinteressada em participar do mundo como ele é. Na CIP, nós oferecemos um terceiro caminho, que não rejeita, nem o encontro, nem o judaísmo.

Comemorar Chanucá como a festa das possibilidades do diálogo, da luz frente às trevas, das múltiplas narrativas, do diálogo — mesmo com aqueles que acreditam em narrativas religiosas radicalmente diferentes — é se manifestar por um judaísmo de pontes e não de muros, no qual o encontro com outras culturas enriquece nossas perspectivas judaicas e nos ajuda a refinar nossas experiências religiosas.

É bem possível que ainda criem uma narrativa judaica para o Chanukah Bush, a árvore de Natal fantasiada para Chanucá. Diferente do rabino Sobel, eu não descarto sua viabilidade de antemão, mas quero antes entender como sua adoção enriqueceria nossa experiência da Festa das Luzes e não seria apenas uma incorporação de valores e práticas que nos são estranhos. Na minha casa, por enquanto, não tem. O que temos lá são duas chanukiot, uma acendida de acordo com a opinião de Hillel, começando com uma vela e terminando com oito, e outra acendida de acordo com a opinião de Shamai, começando com oito velas e terminando com uma. Assim, expressamos nosso absoluto comprometimento com o pluralismo judaico, com o debate de ideias, com a viabilidade de um judaísmo aberto ao diálogo, ao encontro, cheio de luzes e de kedushá!

Shabat Shalom e Chag Urim Sameach!

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Violência contra as mulheres – um problema dos homens! (CIP)

Há pouco mais de 20 anos, a escritora judia norte-americana Anita Diamant publicava a primeira edição de “A Tenda Vermelha”, na qual retratava a vida das mulheres nos tempos bíblicos, em especial na geração de Lea, Rachel, Bilá, Zilpá e suas filhas. Inicialmente, apesar de a autora ir a todos os círculos de leitura que ela conseguia, o livro não teve sucesso e ela precisou de um plano para evitar que as cópias já impressas do livro fossem recolhidas e destruídas pela editora, que achou que elas nunca seriam vendidas. Seu plano envolveu enviar cópias para a Rede de Mulheres Rabinas do movimento Reformista e para a Associação Rabínica Reconstrucionista, além de angariar o apoio de pequenas livrarias locais. Desta forma, o livro cresceu em popularidade e chegou à lista dos mais vendidos no New York Times [1]. Hoje, transformada em uma minisérie de dois capítulos, a história pode ser assistida no Netflix [2].

O que fez dessa história um sucesso tão grande? Ela deu às mulheres das narrativas bíblicas uma voz e um ponto de vista. Sabemos muito sobre os personagens masculinos das histórias do Tanach; sabemos muito menos a respeito das personagens femininas. Aqui está um exemplo: conhecemos o nome de 12 filhos do patriarca Yaacov: Reuven, Shim’on, Levi, Iehudá, Dan, Naftali, Gad, Asher, Issachar, Zevulun, Iossef, and Biniamin — além do número, eles dão nome às tribos do povo de Israel e, por isso, são relembrados constantemente. Há apenas uma filha de Yaacóv cujo nome é mencionado,  Diná, que não tem uma tribo que receba seu nome. A esse respeito, Shadal, o rabino Shmuel David Luzato, que viveu no começo do século 19, disse que era muito improvável que Yaacóv tivesse tido 12 filhos e apenas uma filha e que o nome de Diná só tinha sido mencionado por um episódio que aconteceu com ela (e sobre o qual já vamos falar) — e ele completa: “em todo lugar na história das nossas gerações, são mencionados apenas os homens e as mulheres que tiverem algum evento particular significativo ou que eram famosas por algum motivo” [3]. Pois é, quase que por regra, a história das nossas matriarcas não foi registrada.

A este respeito, minha professora Merle Feld escreveu o seguinte poema:
Todos estivemos juntos 
Meu irmão e eu estivemos no Sinai
Ele tinha um diário
do que ele via
do que ele ouvia
de tudo o que aquilo significava para ele
Eu queria ter um registro assim
do que aconteceu comigo
Parece que toda vez que eu quero escrever
Eu não posso
Estou sempre segurando um bebê
um meu
ou um de uma amiga
sempre segurando um bebê
então minhas mãos nunca estão livres
para escrever coisas
E então
conforme o tempo passa
os detalhes
a informação
de quem o que quando onde porquê
foge de mim
e tudo que me sobra é
o sentimento
Mas sentimentos são apenas sons
As vogais latindo do silêncio
Meu irmão tem tanta certeza do que escutou
afinal, ele tem o registro
consoante após consoante após consoante
Se nós lembrássemos juntos
poderíamos recriar tempo sagrado
fagulhas voando. [4]
Por isso, Anita Diamant tentou recriar este tempo sagrado, escrevendo uma história com a perspectiva das mulheres bíblicas. No centro da história que ela conta está uma passagem da nossa parashá — o tal episódio que aconteceu com Diná. Diz a Torá, em tradução minha:
“Diná, filha de Lea, que tinha dado a luz a Yaacov, saiu para ver as mulheres do local. Shchem ben Chamor, o chivita, o príncipe do local, a viu e a tomou e a violentou com força.” [5]
O texto continua, dando mais detalhes sobre a história: Shchem se apaixona e tenta se casar com Diná e seu povo acaba sofrendo um massacre pelas mãos de Shim’on e Levi. O que falta no texto bíblico é a voz de quem sofreu esta violência. Não sabemos o que se passou com Diná: o que ela sentiu, com quem falou ou no ombro de quem foi chorar. 

A resposta de Yaacov e de seus filhos se preocupa com a honra deles, ninguém fala do que aconteceu com ela! Por isso, Anita Diamant escreveu seu livro e deu voz e opinião às mulheres da história — e, para ser justo, eu adianto que Anita Diamant tem uma leitura totalmente diferente desse episódio.

Esse não é o único caso de violência sexual dessa parashá. No final do capítulo seguinte [6], ficamos sabemos que Reuven, o primogênito de Yaacov, violentou Bilá, a concubina do seu pai. Aqui, eu sigo a leitura de Lia Bass, a primeira brasileira a receber o título de rabina. Ela nota uma questão gramatical: a preposição “et” usada depois do verbo “lishcav, se deitar”  indica o uso de força no ato sexual e aparece apenas três vezes no Tanach, na história de Diná, na história de Reuven e Bilá e na história de Amon e Tamar. Nas palavras da rabina Lia:
Nestas três situações, fica claro que a motivação para o estupro não é o desejo. A questão é o poder, como aprendemos nos nosso tempo. O estupro é um ato violento, um ato de estabelecimento de autoridade e poder através do medo (…) Esta é uma mensagem tão relevante hoje quanto era séculos atrás, pois homens continuam usando e abusando de mulheres como peões em seus jogos de poder.  [7]
Precisamos falar da violência contra as mulheres! Um levantamento do Ministério da Saúde indica que, no Brasil, uma mulher é vítima de violência a cada 4 minutos [8]. Nos quinze minutos que esta prédica deve demorar,  quatro mulheres com nome, com uma história de vida, com sentimentos e dores e desejos e sonhos que terão sofrido algum tipo de violência. Como estima-se que menos de metade das mulheres denunciam essas agressões [9], é possível que neste tempo tenham sido oito ou mais as mulheres que sofreram violência.

Precisamos falar da violência contra as mulheres!

Nossa autopercepção judaica é que esse não é um problema nosso. Judeus não fazem essas coisas…. ainda bem que o Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da Fisesp pensa diferente [10]! Eles criaram uma Central de Acolhimento à Mulher e uma campanha para a denúncia de casos de violência contra a mulher, sob o lema “Violência Doméstica também é um assunto judaico. Use sua voz” e eles alertam: “Agressão verbal, humilhação, intimidação, isolamento e ameaças também são formas de violência.”

O projeto oferece o apoio de psicólogas, psiquiatras, advogadas para ouvir as histórias, dar acolhimento e oferecer apoio a mulheres que estão sofrendo estas agressões. Além da Fisesp, uma rede comunitária de apoio está se empenhando neste projeto — a CIP, por exemplo, tem ajudado dando orientação ao trabalho para mulheres que, ao saírem de casa, precisam desenvolver sua independência financeira.

Eu conversei com nossa querida Miriam Vasserman, Diretora do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina, que me pediu para não divulgar os números de pessoas atendidas, mas eles me deixaram de cabelo em pé. Ela destacou que muitas dessas mulheres não sabem que estão sendo vítimas de violência, acham que seus namorados ou maridos são apenas ciumentos e acreditam na narrativa de que são elas as verdadeiras culpadas, por causa do comprimento da saia, por causa da maquiagem, pela forma como conversaram com um colega.  
Vamos deixar bem claro: violência é inaceitável e a culpa é sempre do agressor. Toda mulher precisa saber disso, toda menina precisa ser educada sabendo disso. A culpa é sempre do agressor!
Eu sou filho de uma mulher, pai de uma menina e, por isso, esse assunto é pessoal para mim. Esse assunto também é pessoal para mim porque eu eu sou homem, pai de um menino, porque eu sou filho de um homem. Não existe solução para esta questão que não envolva mudanças de atitude em nós, homens.
Mudanças nas piadas, mudanças nos comentários, mudanças profundas nas visões de mundo nas quais fomos criados e que não são mais adequadas para a época em que vivemos. 

Somos grande parte do problema e, enquanto não reconhecermos este fato, teremos que continuar lidando com a triste realidade de quase uma dezena de mulheres sofrendo violência no tempo que eu demoro para ler uma prédica. Podia ser a minha filha, ou a tua, podia ser tua dentista, a engenheira da obra ou tua melhor amiga — ou podia ser eu o agressor, podia ser o teu médico ou o teu advogado. 

Uma mulher a cada quatro minutos. Não dá pra achar que o problema vai se resolver sozinho ou sem mudanças profundas, que são sempre difíceis.

Em outra passagem desta parashá, Yaakov fica sozinho na margem do rio e tem um duelo misterioso durante a noite, que o deixa ferido para o resto da vida. Alguns comentaristas interpretam que ele se encontra consigo mesmo e que este encontro no espelho, confrontando suas próprias falhas, olhando pra dentro de si mesmo como nunca tinha feito antes, o deixa profundamente marcado. Deste encontro, ele ganha o nome Israel, aquele que enfrentou Deus e humanos e prevaleceu.

Esta é nossa hora: temos que nos olhar no espelho e reconhecer nossas verdades mais escondidas, nossa responsabilidade em acabar com a vergonha que são as práticas de violência contra a mulher em nosso país e em nossa comunidade. As mulheres já deram o primeiro passo, agora é a hora de nós, homens, fazermos a nossa parte.

Shabat Shalom!

[3] Comentário de Shadal para Gen. 37:35, no qual fala-se em :"filhos e filhas de Iaacov" (no plural para os dois gêneros
[4] Merle Feld, “We All Stood Together”, A Spiritual Life, p. 205. Tradução minha.
[5] Gen. 34:1-2
[6] Gen. 35:22
[7] Rabbi Lia Bass, “No Means No”, in Rabbi Elyse Goldstein (Ed.) The Women’s Torah Commentary, p. 85. Tradução minha.