sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)


Pra quem ainda lembra das aulas de Física do colegial, “inércia” é a tendência de um objeto se manter no estado em que está, seja parado ou em movimento, a menos que uma força seja aplicada sobre ele. Na fala um pouco mais coloquial, “inércia” é a tendência das coisas continuarem como são hoje.

Esse conceito se aplica aos objetos em movimento, como nos casos estudados pela Física e às pessoas, também. Se não nos esforçarmos para “sair da inércia”, faremos sempre as mesmas coisas, com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares. Pelas leis da inércia, Avram e Sarai teriam continuado a viver e Ur Casdim ou se mantido em Harán, onde eles pararam no meio da viagem.

“Lech Lechá”, o chamado Divino que convocou Avram e Sarai e abandonarem sua terra, o lugar em que tinham nascido e as casas dos seus pais [1], foi provavelmente a força que levou-os a transformarem radicalmente as suas realidades. Não fosse esse chamado, Avram e Sarai, teriam continuado a viver em Harán, onde Terach, o pai de Avram, faleceu.

Outro lugar onde a ideia inércia se aplica é na nossa auto-percepção. Congelamos conceitos que um dia foram verdadeiros e, muitas vezes, não nos damos conta quando as coisas mudaram radicalmente. A idade que imaginamos ter, nossa capacidade física, a relação que temos com algumas pessoas. Quantas vezes não dizemos sobre alguém com quem não falamos há anos “esta e pessoa e eu somos grandes amigos”?!

No mundo judaico isto também se aplica. Ainda falamos sobre a nossa tradição que os personagens da Torá são humanos cheios de falhas, não semi-deuses perfeitos que nunca erram… E, mesmo assim, ao longo dos séculos a tradição judaica foi desenvolvendo desculpas e explicações para cada um dos erros cometidos pelos nossos patriarcas, de forma que eles deixaram de ser erros. Os patriarcas, na prática, passaram a ser vistos como perfeitos…

Como eu argumento com frequência, é hora de sair da inércia e olharmos com honestidade para as falhas dos nossos patriarcas. Quem sabe, seja este o nosso momento “Lech Lechá”, de abandonarmos o conforto das nossas certezas e permitirmos que as dúvidas aflorem, também na relação com a tradição. Na parashá desta semana, depois de chegarem à terra de Cnaán, Avram e Sarai enfrentam uma seca e precisaram ir ao Egito comprar mantimentos. 
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]
Ou seja: Avram colocou sua esposa, Sarai, em risco para salvar sua própria pele. Pelos versículos seguintes, que eu não vou ler, a impressão que temos é que o Faraó, de fato, a tomou para sua esposa. A objetificação da mulher, tanto por Avram quanto pelo Faraó é clara. Neste episódio, não escutamos a voz de Sarai, apenas a de Avram e do Faraó.

Há outro episódio na parashá no qual a objetificação da mulher é evidente: Sarai não podia ter filhos e oferece Hagar, sua escrava, para que a Avram possa ter um filho seu através dela. Aqui, a voz de Sarai é escutada; o que não ouvimos é a voz de Hagar, sua escrava egípcia. Quem escuta a voz de Hagar é um anjo de Deus, que lhe aparece que quando ela fugia da opressão de Sarai.

Como podemos continuar lendo estas passagens sem a devida crítica, sem que tentemos fazer ticún, uma correção, ainda que tardia às realidades que elas descrevem?

Mais problemático é o fato de vivermos em um mundo no qual a violência contra a mulher continua ocorrendo como um fato do cotidiano. 

Este ano, com a volta do Taliban ao poder, o tema da violência contra a mulher voltou à tona. Lá, uma série de atos contra a liberdade feminina foram adotados, incluindo o fechamento de abrigos para vítimas de violência doméstica e a severa limitação para que meninas possam continuar estudando.

Seria muito fácil, no entanto, apontar só pra fora quando pensamos na questão da violência contra as mulheres quando o assunto no Brasil é extremamente sério.

De acordo com o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos [3]. A edição anterior do Anuário, indicava que em 2018, 3 mulheres foram vítimas de feminicídio a cada dia; 61% delas, negras. O companheiro ou ex-companheiro foi o responsável pelo feminicídio em 88.8% dos casos [4]. De acordo com uma pesquisa feita pelos Institutos Patricia Galvão e Locomotiva, 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte [5].

Pra quem acha que a comunidade judaica está imune a esta realidade, temos, mais uma vez, que sair da nossa inércia conceitual. O Comitê de Acolhimento do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP vêm desenvolvendo há alguns anos iniciativas para acolher mulheres vítimas de violência doméstica em parcerias com entidades dentro e fora da comunidade judaica. Desde que a iniciativa começou e cartazes foram colocados em lugares estratégicos da comunidade judaica, mais de 60 mulheres e famílias receberam acolhimento, escuta e ajuda para resolver a situação em que se encontravam. O grupo tem trabalhado com abordagens distintas, multi-disciplinar e respeitando as diferentes sub-culturas dentro da comunidade judaica, incluindo — mas não restrita — às diferenças de movimentos religiosos.

Como a frequência às sinagogas está limitada, você pode acessar o folheto do projeto através deste link: https://bit.ly/predica1510. Nele, você encontra o número de telefone e email para encontrar acolhimento e ajuda.

A iniciativa do Grupo de Empoderamento Feminino da Fisesp vai muito além. Eles tem atuado também na prevenção da violência e no desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, atuando junto às escolas judaicas e movimentos juvenis na defesa de políticas públicas que enderecem estas questões.

A questão da violência contra a mulher é séria e ela é judaica também. Não foi ok quando Avram possibilitou a violência contra Sarai. Não foi ok quando Sarai possibilitou a violência contra Hagar. Não é ok nos silenciarmos quando pessoas da nossa comunidade se vêem em relacionamentos abusivos, sem saber onde pedir ajuda. 

Temos que sair da nossa inércia e nos tornarmos parceiros ativos destas iniciativas — pelo bem de cada um de nós e da nossa comunidade toda!

Shabat Shalom!


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