sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Valorizando a incerteza (CIP)


Em algum momento da minha adolescência nos anos 80, o Hotel Transamérica no Morumbi começou a organizar festivais gastronômicos para os quais ele convidava chefs de restaurantes internacionais famosos. Em um deles, em 1986, organizou um jantar do restaurante em Roma no qual nasceu o famosos fetuccini Alfredo. Meu irmão, fã do prato e curioso por experimentá-lo na versão original, convenceu meus pais a levá-lo. Minha mãe, então, me fez a seguinte proposta: como o jantar era caro e eu não ligava tanto para o tal fetuccini, ela me daria outro presente do mesmo valor. Com quinze anos e a absoluta certeza da carreira que gostaria de seguir na vida, aceitei a oferta e pedi um livro de computação gráfica.

A computação gráfica, que hoje faz parte do nosso cotidiano, ainda não era tão popular naquele tempo. A Bela e a Fera, no qual a cena da dança foi parcialmente desenvolvida com computação gráfica, só saiu em 1991. Toy Story, o primeiro longa-metragem inteiramente desenvolvido por computação gráfica, é de 1996. Na época, minha paixão eram as curtas e interessantes vinhetas da TV Globo, obras do gênio criador de Hans Donner.

O que me interessava no livro que eu ganhei no lugar do jantar eram as lindas imagens, mas por trás daqueles modelos super realistas criados em computador estavam fórmulas matemáticas complexas. Computação Gráfica é a área da Ciência da Computação que transforma números, fórmulas e algoritmos em imagens que, com o tempo, foram ficando praticamente idênticas ao mundo real.

Como seria possível que números pudessem descrever a realidade física? Max Tegmark, um físico suéco, autor do livro Our Mathematical Universe, argumenta que o mundo físico é um “gigantesco objeto matemático.” [1] Na mesma linha de argumentação, Galileo dizia que “a Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo.” [2]

Mark Schaefer, autor de “A Certeza de Incerteza”, afirma que uma das vantagens da matemática como linguagem é o fato de que ela está sujeita a muito menos ambiguidade do que outros campos do conhecimento. “Não há uma tradição alternativa de matemáticos que discute se 2+2=4, nem há matemáticos dissidentes que mantém que 2+2=5 e consideram o resto hereges desesperadamente equivocados.” [3] Por isso, matemática poderia ser um sistema no qual a certeza poderia existir. O rabino David Curiel, por outro lado, argumenta que a certeza de que cada problema matemático tem uma resposta desaparece quando consideramos a Matemática Avançada [4]. Na mesma linha de demonstrar como a realidade dos estudos mais avançados de matemática diferem da nossa experiência de um campo do conhecimento no qual a certeza é possível, “O (…) físico Erwin Schrodinger disse que um modelo de representação da realidade quântica completamente satisfatório ‘não era apenas praticamente inacessível, mas até mesmo impensável.’ E ele adicionou: ‘Para ser preciso, podemos, claro, pensá-lo, mas está errado.” [5]

Pensando na prédica desta semana, eu me detive bastante nas nossas certezas e dúvidas, no espaço que damos para ambiguidades e quando exigimos respostas únicas.

É na parashá desta semana que, depois da libertação de Mitsrayim, da abertura do mar, do encontro com o Divino no Monte Sinai. Moshé demora 40 dias para voltar com as Tábuas e o povo constrói um bezerro de ouro e começa a adorá-lo. Apesar de terem vivido interações com o Divino com as quais nossa geração pode apenas sonhar, os hebreus precisavam de algo mais concreto, precisavam de certezas mais absolutas, e as encontraram na forma de uma estátua de ouro.

Em vários trechos da nossa tradição, a construção do bezerro de ouro é associada a busca de certezas absolutas e inquestionáveis. Esta pessoa é boa e aquela é má; uma cultura valoriza a vida enquanto a outra só cultua a morte; esta ideologia é certamente muito superior àquela outra. Em troca destas verdades, abrimos mão do nosso senso crítico e da nossa capacidade de questionar com sinceridade. O mestre chassídico Mordechai Yosef Leiner, mais conhecido como o Ishbitzer e pela sua obra mais famosa, o Mei haShiloach, escreveu que “a ansiedade das pessoas é que elas têm tanto medo de entrar no reino da dúvida, e por isso, há quem afirme que teria sido mais confortável se o humano não tivesse sido criado”. [6] De acordo com o rabino Leiner, Deus plantou אילנא דספיקא, ilna desfeica, "a árvore da dúvida", neste mundo, e esta é a fonte da nossa ansiedade.

De alguma forma, Moshé descia do Monte Sinai carregando uma outra forma de certeza: as Tábuas do Pacto, uma outra forma de dar concretude à relação abstrata entre Deus e o povo de Israel. Ao se deparar com a adoração ao Bezerro de Ouro, ele atirou as Tábuas ao pé da montanha, destruindo-as. Aquelas eram as Tábuas da certeza, esculpidas por Deus e inscritas por Deus. Naquele ato, Moshé pôs fim a qualquer expectativa que pudéssemos ter de que nossa tradição seria construída sobre respostas absolutas.

Quem me conhece sabe que eu adoro o papel de advogado do diabo, de nos questionarmos sobre quase tudo, de revirarmos nossas certezas até não termos bezerros de ouro para nos apegarmos. Por isso, a história de adorarmos nossas certezas me traz um incômodo particular.

No entanto, vivemos em tempos estranhos…. tem gente por aí argumentando que as vacinas incluem chips para nos controlar; há quem fale que a Terra é chata; há quem negue a ciência do aquecimento global. Semear a dúvida para colher o conflito se tornou um negócio através do qual algumas das maiores empresas do planeta ganham muito dinheiro. Ao invés de ser usada para acolher, a dúvida tem sido usada para excluir; ao invés de ser usada para salvar, ela tem servido a quem quer te colocar em risco. 

Eu adoraria oferecer aqui uma fórmula matemática que nos permitisse identificar as dúvidas construtivas, que nos levam a aprimorar nossas respostas das dúvidas destrutivas, que apenas criam discórdia sem aprimorar nada. Infelizmente, abri mão há muito tempo da certeza que eu um dia tive de que era na computação gráfica que encontraria meu futuro profissional e, com ela, a crença em respostas automatizadas para problemas complexos. Não existe resposta mágica e cada um precisa usar seu discernimento e senso crítico.

No finalzinho da parashá, Deus instrui Moshé a esculpir um novo par de Tábuas. Desta vez, elas não seriam o produto exclusivo do Divino, mas o resultado da parceria entre Deus e a humanidade. Por desenho, a dúvida foi incluída no segundo jogo de Tábuas [7]. As tábuas seriam o resultado do esforço humano e a inscrição seria Divina.

Além disso, Rashi nos conta que os fragmentos das Tábuas quebradas foram colocados na Arca Sagrada junto com o novo jogo de Tábuas. Assim, nos lembraríamos constantemente do risco de certezas absolutas, representado tanto pelos fragmentos quanto pelo Bezerro de Ouro.

Como se ainda precisássemos de mais lembretes, a parashá desta semana nos presenteia com mais um episódio que questiona as regras absolutas.  Moshé pede para ver a face de Deus, que lhe responde: “Farei com que toda a Minha bondade passe diante de você e proclamarei diante de você o nome ה׳ e o favor que concederei e a compaixão que demonstrarei, mas você não poderá ver Minha face pois um ser humano não pode ver Minha face e viver.” Ora…. 9 versos antes desta afirmação, a Torá afirma “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, "vediber Adonai el Moshé panim el panim, caasher idabêr ish el-reeêhu", “Moshé falava com ה׳ face-a-face, como uma pessoa fala com a outra.” [8]

Há momentos em que temos praticamente certeza de termos estado em contato com o que há de mais verdadeiro no mundo, de termos encontrado face-a-face a verdade mais verdadeira que existe. E, apesar de relatar os momentos em que isso acontecia na relação entre Moshé e Deus, a Torá também reconhece que isso é impossível. O mais alto a que podemos almejar é ver o Divino, a verdade, a certeza, pelas costas, com um certo tempero de dúvida, como Deus ofereceu para Moshé.

Que o objetivo de toda dúvida seja sempre avançar, acolher, melhorar, aperfeiçoar. Que neste ano, no qual tendemos a fecharmo-nos cada um na sua verdade, consigamos permanecer abertos para escutar e para enxergar, para considerar, para duvidar, para conversar. Que dessa forma, em comunidade e nos apoiando mutuamente, consigamos lidar com a ansiedade de vivermos em um mundo de dúvidas.

Shabat Shalom,



[1] Max Tegmark, Our Mathematical Universe, p. 246, de acordo com citação em The Certainty of Uncertainty p. 108
[2] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[3] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[5] Martland, Religion as Art, p. 166 citado em The Certainty of Uncertainty, p. 112
[6] Mei HaShiloach, Mei HaShiloach Anthology, Talmud, Eruvin 13b:1
[7] Rashi comentando Deut. 10:2
[8] Ex. 33:11

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