sexta-feira, 3 de julho de 2020

Dvar Torá: Passos concretos em direção à Redenção (CIP)

Sabe quando você faz planos e só na hora de colocá-los em prática se dá conta de que o teu planejamento não levou em conta nem metade das complicações que poderiam aparecer?

Comigo, aconteceu um exemplo disso há quase quinze anos. Uma amiga tinha encomendado a um marceneiro uma cama em formato de carro para o seu filho quando ele era pequeno, com para brisa, espelho retrovisor, direção e até placa com o nome do menino. Agora, que a criança tinha virado um adolescente e não queria mais dormir dentro do carro, a amiga procurava um novo lar para a cama. Na mesma época, estava na hora do meu sobrinho trocar de cama e acabamos ficando com a cama do filho da amiga e pedido ao mesmo marceneiro que a reformasse antes de mandarmos ao nosso sobrinho. Poucos dias depois de ele ter recolhido a cama, ele nos liga: toda a madeira estava comprometida com cupim; só dava pra aproveitar as partes de plástico! Já tendo assumido o compromisso com o sobrinho, pedimos que ele fizesse uma cama nova, seguindo o projeto que ele mesmo tinha feito anos antes e o resultado ficou absolutamente magnífico — mas deu muito mais trabalho do que originalmente imaginado!

Uma coisa parecida aconteceu aqui na CIP. Nossos sidurim de Shabat estavam ficando velhos, as capas descolando, fascículos soltando… era raro encontrar um exemplar que estivesse inteiro. Decidimos fazer uma nova impressão e para isso lançamos uma campanha pedindo doações. Faríamos pequenas mudanças, correção de erros que tinham sido identificado ao longo dos anos, atualização de algumas partes da reza para se adequar a mudanças de que tinham acontecido na CIP ao longo dos mais de 20 anos desde a primeira impressão. A comunidade respondeu prontamente, buscando homenagear seus entes queridos nas páginas do sidur e as doações começaram a chegar. O problema aconteceu quando fomos buscar os arquivos para fazer as atualizações, descobrimos que só tínhamos os fotolitos, resquício de outra época tecnológica e que não permitia nenhuma alteração. Para quem doou e está surpreso que o sidur ainda não está pronto, este é o motivo: assim como a cama em formato de carro, o sidur teve que ser completamente refeito.

A boa notícia é que recebemos há algumas semanas as provas finais, que estamos revendo minuciosamente par que o sidur possa ficar pronto o mais breve possível. Como eu disse, além da re-impressão, teremos a atualização de algumas passagens e a inclusão de trechos do serviço.

A mudança da liturgia, que muitas vezes se torna muito mais polêmica do que precisaria ser, é — ao contrário do que muitos podem pensar — um ato de profundo respeito pela seriedade da reza. Conheço gente (incluindo gente que eu respeito profundamente, incluindo alguns dos meus professores no seminário rabínico) que afirma nas suas rezas o exato oposto daquilo em que realmente acredita. Quando confrontadas, estas pessoas dizem “mas estas são apenas as palavras da reza, ninguém acredita nelas”. Em resposta a esta postura, o rabino Mordechai Kaplan, um dos mais influentes pensadores do judaísmo plural do século XX, é famoso por ter dito “We must mean what we say when we pray”, “nós precisamos querer dizer o que dizemos quando rezamos”. Para aqueles que, como eu, acreditam no poder transformador da tfilá, é difícil entender como repetir diariamente palavras em que não acreditamos possa ser considerada uma forma de honrar a tradição.

Uma das mudanças na nova impressão do sidur tem a ver com uma linha da Amidá, a Grande Oração.  Se vocês virarem para as páginas 31 e 32 do sidur, as últimas linhas dizem המביא גואל לבני בניהם למען שמו באהבה, que literalmente está agradecendo a Deus “por trazer um redentor aos filhos dos seus filhos pelo Seu nome, com amor”. Tudo muito lindo, não fosse o fato de que boa parte dos judeus liberais não acreditam na vinda de um redentor, uma pessoa que irá, através da sua ação pessoal, transformar toda a nossa realidade. Esse conceito, na opinião de muitos — entre os quais eu me incluo — corre o risco de dar origens a líderes carismáticos e populistas, que desdenham das instituições e acreditam que eles, e somente eles, são capazes de fazer as transformações necessárias. 

Já há muitas décadas que muitos sidurim liberais, nos movimentos reformista, conservador e reconstrucionista, substituíram o termo “גואל”, “redentor” por “גאולה”, “redenção”. Acreditamos que o arco da história tem o potencial de nos levar a um mundo mais justo, mais equilibrado, mais humano — mas esta construção depende do esforço de cada um de nós.

Na primeira das duas parashiot desta semana, “Chucat”, Miriam morre em Kadêsh. A frase seguinte na Torá nos conta que o povo não tinha água — um midrash liga estes dois eventos e nos conta que havia uma pedra da qual jorrava água e que seguia Miriam pelo deserto. Era assim que o povo se mantinha hidratado enquanto Miriam estava viva; quando ela faleceu, parou de jorrar água da pedra.

Nesta nova impressão do sidur, adicionamos uma música por Miriam ao final da havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat [1]: 

מִרְיָם הַנְּבִיאָה עֹז וְזִמְרָה בְּיָדָהּ

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְהַגְדִּיל זִמְרַת עוֹלָם

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְתַקֵּן אֶת-הָעוֹלָם.

בִּמְהֵרָה בְיָמֵינוּ הִיא תָּבִיאֵנוּ אֶל מֵי הַיְשׁוּעָה.


Miriam, a profetiza, força e música na sua mão. 

Miriam, dance conosco para aumentar a música do mundo. 

Miriam, dance conosco para consertar o mundo. 

Em breve, ainda nos nossos dias, elas nos guiará para as águas da Redenção.

Ela vem logo depois da música por Eliahu haNaví, o profeta Eliahu, que, de acordo com uma tradição, virá em um Sábado à noite anunciar a chegada da Redenção. Eu gosto de pensar que cantamos por Eliahu haNaví no sábado à noite para lembrarmos que o descanso terminou e precisamos voltar a trabalhar para garantirmos que caminhemos em direção à Redenção.

Mas esse é um trabalho intenso, para o qual nem sempre conseguimos enxergar os resultados. É um fenômeno conhecido que ativistas por mudanças estruturais muitas vezes esgotam suas forças e abandonam seus projetos antes que eles dêem resultado. Por isso, clamamos a Miriam e por seu poço de água para garantirem que estejamos sempre nutridos pelo carinho da sua liderança, pela doçura da sua voz e da sua dança, e acima de tudo pela clareza da sua visão.

E o que devemos fazer para chegar a este caminho da Redenção, vocês podem perguntar… O lindo da tradição judaica é que ela nos dá este mapa de ação todo dia de manhã. Quem tiver o sidur Shabat Shalom físico em mãos pode abrir nas páginas 101 e 102, as Bençãos da Manhã que repetimos todo dia, que nos ensinam como um mundo redimido deve ser:   um mundo que reconheça a dignidade de todo ser humano criado à imagem de Deus; um mundo em que todos possamos praticar nossa fé religiosa sem opressão; um mundo em que sejamos todos livres; um mundo em que ajudemos todas as pessoas a superar as suas deficiências; um mundo em que ninguém passe frio ou more nas ruas das nossas cidades; um mundo que dê fim às guerras e seus prisioneiros; um mundo em que respeitemos a natureza e vivamos com ela em harmonia; um mundo em que não nos sintamos tão desorientados; um mundo em que todos tenham suas necessidades básicas atendidas; um mundo em que Deus nos dá força para caminhar nesta direção.

Que neste shabat, consigamos respirar fundo, recarregar as baterias do corpo e da alma, viver por 25 horas como se o mundo fosse perfeito. E que ao final do shabat, animados pela perspectiva da Redenção trazida pelo profeta Eliahu e nutridos pelas águas do poço de Miriam, comecemos a trabalhar para transformar o sonho de Redenção em realidade.

[1] https://www.ritualwell.org/sites/default/files/imce_uploads/image.2005-07-22.3940936502.mp3


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