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sexta-feira, 31 de julho de 2020

A montanha-russa de Av e a responsabilidade pelas nossas escolhas

Até que a labirintite me afastou dos parques de diversões, eu adorava andar em montanhas-russas, especialmente naquelas radicais com muitos loops. Tinha algo que me encantava naquela sucessão de subidas e descidas rápidas, em olhar o mundo de ponta cabeça para, logo em seguida, vê-lo em pé de novo. Estes dias, estamos vivendo a montanha-russa do calendário judaico: na semana que está terminando, tivemos Tishá beAv (9/Av), considerada a data mais triste do calendário, ponto focal de tragédias da história judaica e que a leitura rabínica associou à prática de sinat chinam, o ódio injustificado; seis dias depois teremos Tu beAv (15/Av), em que celebramos ahavat chinam, o amor sem motivo, e que a Mishná considera um dos dois dias mais felizes do ano [1]. Do dia mais triste a um dos mais felizes em seis dias, um desafio que deixa nossos sentimentos confusos, sem saber muito bem se estamos de pé ou de ponta-cabeça…. 

A parashá desta semana, VaEtchanán, também tem a sua dose de altos e baixos, incluindo passagens que lidam com os temas do ódio e do amor. É nela que encontramos uma das frases mais famosas de toda a Torá: “Sh’má Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um”, que pronunciamos na liturgia diária duas vezes ao dia. O parágrafo que segue esse verso (e que também faz parte da liturgia diária) começa dizendo que devemos amar a Deus “com todo o nosso coração, com toda a alma e com toda a nossa força.” [2] Ao longo dos séculos, nossos comentaristas têm questionado, de um lado, se é possível impor a obrigação de amar e, de outro lado, o que quer dizer amar com o coração, com a alma e com a força. Uma das respostas que eu mais gosto é aquela que diz que demonstramos nosso amor por Deus por meio  das nossas ações e da forma como tratamos a criação de Deus (o planeta, os animais e, principalmente, as outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança de Deus). O verso, portanto, não está legislando nossos sentimentos mas orientando as nossas ações e nos dizendo que devemos agir dessa forma em tudo o que fazemos, envolvendo nossas emoções, nossa razão e nossos recursos nesse processo. Quando conduzimos nossas vidas através do respeito, da generosidade e da empatia, tornamos concreta a ideia de amor sem motivo que celebramos em Tu beAv.

A montanha-russa da parashá faz uma curva e no seu finalzinho temos instruções sobre como os Israelitas deveriam tratar os povos que habitavam a terra de Israel quando lá chegassem [3]. As instruções falam da destruição desses povos, com imposições não negociadas e eliminando completamente suas práticas religiosas. Em linhas gerais, se parece com o que grupos religiosos fundamentalistas fazem com relação às outras religiões, as mesmas condutas que lamentamos em Tishá beAv quando foram praticadas contra o povo judeu. Considerando as formas como condenamos o ódio gratuito, é fundamental que reconheçamos o incômodo ao lermos essas passagens e que rejeitemos as práticas que elas implicam. O respeito à vida de todo ser humano, o pluralismo e a tolerância religiosa se tornaram, ao longo dos séculos, pilares fundamentais da tradição judaica e têm que determinar nossa leitura das passagens problemáticas da nossa tradição.

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida [4]. Da mesma forma, todas estas passagens fazem parte da Torá e da nossa tradição, mas precisamos reconhecer quais passagem nos encaminham para uma vida de respeito, empatia, pluralismo e parceria e escolhê-las, ao mesmo tempo em que indicamos claramente aquelas cujo caminho rejeitamos. O trabalho não é fácil, mas certamente leva a uma vida de muito mais significado.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Shavuót: muito além da “Festa das Regras”

Feche os olhos por um segundo e imagine um bom álbum de casamento. Lá deve ter fotos dos noivos se preparando, um clima descontraído de quem está à espera de algo que quer há muito tempo. Lá estão também os daminhos, dançando naquelas roupas lindas que crianças usam em festa. Uma foto em close mostra as alianças. Mais pra frente, tem muitas fotos da cerimônia, detalhes das mãos dos noivos com os dedos entrelaçados, da lágrima correndo pelo rosto do noivo, da noiva secando-a com cuidado. Quando chegamos às fotos da festa, ficamos suados só de olhar para a alegria e a animação das danças judaicas. As comidas, as bebidas, os chocolates da saída… não faltou nada no álbum.

Para o porta-retrato, no entanto, os noivos tiveram que escolher uma única foto — e a que acabou sendo escolhida foi a dos dois dizendo “Sim!” ao mesmo tempo, em resposta à pergunta do rabino se eles tinham certeza de que queriam mesmo se casar. Não tinha sido o momento mais emocionante para eles, certamente não era um bom resumo da festa. Mas era uma foto icônica, ainda mais pelo inusitado da pergunta e por terem respondido ao mesmo tempo.

Agora, imagine que, daqui a 50 gerações, as pessoas queiram entender como eram casamentos no começo do século XXI. Os álbuns de foto já estarão totalmente decompostos, mas o vidro e a moldura protegerão a foto no porta-retrato e é do “Sim!” dito junto que todos falarão naquela época. Os arqueólogos do futuro tomarão aquele momento icônico como resumo de uma experiência muito mais complexa, como se fosse sua melhor aproximação. Na educação infantil do futuro, quando quiserem ensinar sobre a diferença entre “sim” e “não” usarão a foto de casamento do passado que foi salva pela moldura.

Neste final de semana comemoramos a festa de Shavuót que na mente rabínica se tornou o feriado em que celebramos a entrega da Torá para o povo judeu. Um momento mágico, de revelação do Divino em Suas múltiplas formas, vivenciado em um festival de emoções e de sensações descritas em detalhe no texto da Torá. E, ainda assim, temos muitas dúvidas sobre o que aconteceu lá. Quem estava presente? Por que temos relatos discrepantes sobre o que Deus realmente disse naquele momento? O que efetivamente foi revelado?

Esta última pergunta parece especialmente relevante: o que recebemos no alto do Monte Sinai? Por séculos, comentaristas têm debatido o que exatamente é esta “Torá” que foi entregue no alto do monte. De um lado, há os minimalistas que dizem que foi apenas os Dez Mandamentos; de outro, os maximalistas defendem que foi toda a tradição judaica.

Assim como no caso da foto do casamento, a ideia de que Shavuót celebra a entrega das Tábuas da Lei “pegou” e deixou marcas na nossa comemoração da festa. Nas sinagogas, lemos os Dez Mandamentos e, nas escolas, não são raras as vezes em que aproveitam este momento para negociar os “combinados de cada turma.” Shavuót, nessa perspectiva, virou a “Festa das Regras.” Muitas vezes, escuto educadores falando que o povo, ao sair do Egito, era um grupo desunido, desestruturado depois de viver séculos sob opressão. Nessa leitura, apenas com um conjunto de leis claras aqueles grupo desunido poderia se tornar um povo.

Para mim, no entanto, o que transformou os hebreus em um povo coeso foi um sonho comum e o entendimento de que todos compartilhavam os mesmos valores, contavam as mesmas histórias sobre seus antepassados, conferiam os mesmos significados para seus atos cotidianos. Por isso, vejo a Torá como muito mais do que apenas os Dez Mandamentos ou um compêndio de regras pré-definidas e impostas. Ela é a reunião das histórias sagradas do nosso povo, uma enorme coleção de narrativas e valores que tem o poder de informar cada ação nossa e de determinar como nos colocaremos frente ao mundo em todas as situações. Ela continua crescendo, conforme o judaísmo vai sendo encontrado por novas gerações, que trazem suas próprias experiências, curiosidades a ansiedades. Ela é resultado das interações de Deus com o povo judeu, geração após geração, cada nova turma recebendo, alterando e transmitindo interpretações e releituras.

A verdade é que me incomoda quando Shavuót é reduzida à “Festa das Regras”. Ela é a festa que celebra a forma judaica de aprender e de ensinar, baseada no diálogo com o texto, entre educadores e educandos e, principalmente, com o mundo. Nada expressa tanto esse conceito como Ticun de Shavuót, especialmente quando é desenvolvido da forma como a CIP tem feito há 13 anos: mostrando, na prática, que para se aprofundar na tradição judaica não há nada melhor do que construir pontes entre grupos sociais e religiosos, pontes que nos permitem visitar novas práticas espirituais, pontes que nos dão acesso a novos conteúdos. Este ano, em formato on-line e organizado em parceria com sinagogas do país todo, não será diferente! Preparamos uma programação intensa, com muitas opções para todos os gostos, buscando refletir as diversidades internas do mundo judaico e do próprio judaísmo — agora só falta você!

Muito além da “Festa das Regras,” venha comemorar conosco a “Festa Judaica dos Diálogos”! Neste sábado, dia 30, a partir das 18h30 pelo site www.shavuot.com.br
Nos encontramos lá!

Shabat Shalom,

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Dezembro sem dilema – Judaísmo em diálogo com o mundo em Chanucá (CIP)

Além de muitas coisas para muitos grupos, esta terça feira, 24 de dezembro, marca o shloshim do rabino Henry Sobel. Quem esteve aqui na linda cerimônia que a CIP organizou em sua memória deve ter percebido que eu não compartilhei nenhuma memória dele. Tem um ótimo motivo para isso: nós mal nos conhecíamos. Ele conduziu minha cerimônia de bar-mitsvá, é verdade, mas minha família e eu quase nunca vínhamos à CIP, então ele não teria motivo nenhum para se lembrar de mim passados alguns meses da cerimônia. Um exemplo deste distanciamento: vários anos depois do meu bar-mitsvá, já na faculdade, eu comecei a namorar uma menina muito ativa na CIP. Ela acumulava duas posições profissionais aqui e ainda era ativa como voluntária na Avanhandava e na Colônia. Nosso namoro patinava porque todo tempo livre que ela tinha era passado aqui nesse prédio, para desespero do namorado (eu!), que queria mais tempo juntos. Um dia, eu não lembro bem o motivo, eu estava na CIP com ela e o rabino Sobel apareceu. Com a chutspá típica de um garoto de 20 anos, me aproximei do rabino e lhe pedi que usasse seus contatos no diálogo inter-religioso para converter minha namorada ao catolicismo, argumentando que o envolvimento dela com a comunidade judaica estava matando nosso namoro. O rabino Sobel, que certamente não se lembrava do meu bar-mitsvá, imaginou — é claro — que eu fosse católico! Por que mais alguém pediria ao rabino para converter sua namorada para outra religião?! Então, em palavras proféticas, o rabino me disse: “meu querido, muito mais fácil trazer você para perto de nós do que deixar ela ir embora.” O resto é história, mas hoje aqui estou eu, rabino, desta CIP….

Tem, no entanto, uma prédica do Sobel da qual eu me lembro claramente. Era nesta época do ano e ele se manifestava contra um costume judaico liberal americano: o “Chanukah Bush”, ou a árvore de Natal fantasiada de Chanucá. Ele se manifestava pela viabilidade do diálogo com membros de outras religiões, mas afirmava que era importante que soubéssemos manter também o que era nosso e não se apropriar do que é das outras tradições. Nesta época do ano, com abundância de celebrações conjuntas judaico-cristãs, é fundamental lembrarmos que não precisamos – mais do que isso, não podemos – abrir mão de quem somos quando entramos em diálogo com o outro.

Mais do que isso: para alguns filósofos, o encontro com o outro é passo fundamental para a definição da identidade. Num mundo em que existissem apenas mulheres – como a ilha de onde veio a Mulher Maravilha – ninguém se definiria como mulher; se todos fôssem judeus no mundo, religião não definiria identidade. É só quando encontramos alguém que difere da gente em algum aspecto que aquele aspecto ganha relevância em sua dimensão identitária.

A possibilidade deste diálogo com a diferença está no centro das questões suscitadas pela festa de Chanucá. Até onde é possível nos integrarmos a espaços diferentes de nós mesmos sem abrirmos mão daquilo que nos é mais caro? Os americanos têm uma expressão, “slippery slope”, “uma rampa escorregadia”, para falar do risco de que uma concessão acabe levando a abrirmos mão de tudo. De que forma o diálogo com outras culturas ou outras religiões é a “slippery slope”, da vez? Tomando a história de Chanucá como exemplo, até quanto podemos defender a integração com a cultura ocidental antes de vermos sacrifício de porcos a deuses pagãos em nossos templos religiosos?

Esta semana eu assisti de novo “Truman Show”, um filme de pouco mais de vinte anos, da época em que a Reality TV, os programas do tipo Big Brother, O Aprendiz, The Bachelor, Masterchef, estavam apenas começando. No filme, e aqui não vai nenhum spoiler, toda uma realidade é construída para acompanhar a vida deste sujeito que, desde o nascimento, tem todo segundo de sua vida transmitido ao vivo. Truman Burbank, o sujeito do filme, vive uma enorme mentira cinematográfica, mas acredita estar vivendo a realidade. No filme, o diretor deste enorme projeto afirma: “Aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada. Simples assim” – e eu fiquei me perguntando: “para quantos momentos das nossas próprias vidas, esta frase descreve a nossa abordagem com relação ao que vivemos: nós aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada; simples assim.” O que fazer quando percebemos que a realidade do mundo que nos é apresentada não reflete com exatidão a realidade do mundo como ela é?! Esta parece uma pergunta fundamental em uma época em que a manipulação da verdade tem se tornado cada vez mais comum. Há cerca de um mês, assisti uma matéria da BBC em que apareciam vídeo de Boris Johnson e de Jeremy Corbyn, rivais na eleição britânica da semana passada, pedindo votos um para o outro. As imagens eram as deles, as vozes eram as deles, mas os vídeos eram absolutamente forjados usando recursos computacionais avançados. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Mentir não é novidade, falsificar evidências também não. Na parashá desta semana, Vaieshev, os filhos de Iaacov apresentam o manto ensanguentado de Iossef como prova de que um animal selvagem o tinha atacado. O que Iaacov não sabia, mas o texto da Torá nos conta, é que os irmãos tinham vendido Iossêf como escravo e molhado sua roupa no sangue de um bezerro que eles tinham abatido. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Uma das falsas narrativas mais frequentemente promovidas no mundo judaico é a do isolamento da comunidade judaica ao longo dos séculos. Nessa versão da história judaica, nossos antepassados vestiam todos capotes pretos e shtreimel, aqueles grandes chapéus usados pelos ultra-ortodoxos; viviam em um shtetl em que nunca entravam em contato com não-judeus, só conheciam o mundo sob a perspectiva da tradição judaica e seguiam todas as 613 mitsvot ao pé da letra. Todas as tentativas de interação com o mundo não-judaico teriam levado a desastres - nesta versão, os feriados de Purim e Chanucá, por exemplo, seriam evidência da impossibilidade da convivência entre o mundo judaico e nossos vizinhos não judeus. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Os pesquisadores da história judaica não param de apontar para as interações - algumas positivas, outras nem tanto, entre a cultura judaica e o mundo exterior. O mais interessante é que estas pesquisas apontam para uma  tendência judaica a se apropriar de elementos culturais não-judaicos e re-interpretá-los de acordo com nossos valores e nossas narrativas. O seder de Pessach, eles argumentam, é uma implementação da tradição romana do simpósio — uma experiência culinária que incluía pequenas porções para serem comidas antes do prato principal, jogos para manter as crianças acordadas, vinho antes e depois da refeição, valorizavam perguntas, músicas e louvor a Deus e tinham conversa centrada ao redor do motivo para aquelas comidas. O que o simpósio romano não tinha era a discussão ao redor da liberdade analisada pela perspectiva da tradição judaica. Da mesma forma, os estudiosos da liturgia do casamento dizem que a quebra do copo está ligada a um costume pagão para espantar os maus espíritos, que teriam medo do barulho — apropriamos o costume, mas reconstruímos seu significado e valores, associando a quebra do copo à perspectiva judaica de não acreditar em absolutos e, por isso, trazer alguma tristeza à cerimônia de casamento. No caso de Chanucá, como eu já comentei com alguns grupo neste ano, o sevivon, aquele peãozinho que tem nas laterais as letras “נ, ג, ה, ש”, iniciais da frase “נס גדול היה שם”, “um grande milagre aconteceu por lá”, também teve sua verdadeira história ocultada por uma outra. Na escola, eu aprendi que os gregos não deixavam os judeus estudarem Torá então, nossos antepassados — provavelmente, vestindo capote preto e shtreimel —  estudavam Torá escondidos, mas com os sevivonim em cima da mesa. Quando as autoridades gregas chegavam, eles escondiam seus livros e jogavam sevivon para enganar os gregos. A verdade revelada pelos arqueólogos é bem diferente: o sevivon é originalmente um brinquedo católico irlandês do século XVI, parte de um jogo de apostas chamado “Totum”, ou “tudo” em latim. No século XIX, chega à Alemanha, onde as letras das suas laterais são traduzidas para que o mesmo jogo pudesse ser jogado no idioma local. Quandos as letras em alemão são transliteradas para o ídiche, dão origem à sequência נ, ג, ה, ש. Adaptamos o brinquedo católico, mas fizemos com que ele se tornasse parte de uma narrativa de Chanucá, que valoriza a busca da luz nos nossos momentos mais sombrios, que encoraja a coragem de ter atitude mesmo quando as chances são mínimas, que acredita em um mundo multicultural, em que nem todos precisem adotar as mesmas práticas. 

Estes exemplos apontam para a contínua capacidade judaica de estar presente no diálogo com o outro; que não vê a diferença como ameaça e, sim, como oportunidade de crescimento; que pretende continuar a milenar tradição judaica de se relacionar com o seu entorno e nunca se esconder dele.

Infelizmente, a perspectiva que nega estas possibilidades, que distorce evidências e manipula narrativas, tem conseguido sucesso em apresentar sua visão judaica construída com base na separação como a única verdadeira. Para alguns, convencidos de que esta visão excludente representa o “judaísmo autêntico”, é motivo para adotarem certos estilos de vida e perspectiva teológicas. Para muitos outros, no entanto, este é motivo para se afastarem totalmente da comunidade judaica, percebida como auto-centrada e desinteressada em participar do mundo como ele é. Na CIP, nós oferecemos um terceiro caminho, que não rejeita, nem o encontro, nem o judaísmo.

Comemorar Chanucá como a festa das possibilidades do diálogo, da luz frente às trevas, das múltiplas narrativas, do diálogo — mesmo com aqueles que acreditam em narrativas religiosas radicalmente diferentes — é se manifestar por um judaísmo de pontes e não de muros, no qual o encontro com outras culturas enriquece nossas perspectivas judaicas e nos ajuda a refinar nossas experiências religiosas.

É bem possível que ainda criem uma narrativa judaica para o Chanukah Bush, a árvore de Natal fantasiada para Chanucá. Diferente do rabino Sobel, eu não descarto sua viabilidade de antemão, mas quero antes entender como sua adoção enriqueceria nossa experiência da Festa das Luzes e não seria apenas uma incorporação de valores e práticas que nos são estranhos. Na minha casa, por enquanto, não tem. O que temos lá são duas chanukiot, uma acendida de acordo com a opinião de Hillel, começando com uma vela e terminando com oito, e outra acendida de acordo com a opinião de Shamai, começando com oito velas e terminando com uma. Assim, expressamos nosso absoluto comprometimento com o pluralismo judaico, com o debate de ideias, com a viabilidade de um judaísmo aberto ao diálogo, ao encontro, cheio de luzes e de kedushá!

Shabat Shalom e Chag Urim Sameach!

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Dvar Torá: Um judaísmo de relevância também para adultos! (Hebraica)

Davizinho volta pra casa com uma cara de poucos amigos e um bilhete da diretora da escola. Quando o pai se senta pra ler o bilhete, descobre que seu filho foi suspenso por roubar os lápis do estojo de uma coleguinha. Tomado de vergonha e pena, o pai decide ser compreensível. Chama o menino e, calmamente, lhe pergunta o que tinha acontecido. O menino não quis dizer. “No bilhete, a diretora disse que vc roubou lápis da sua colega. É verdade, meu filho?”. Sem levantar os olhos, o menino acena com a cabeça, indicando que foi isso mesmo. “Me conta por que, meu filho…” “Meus lápis acabaram, pai, e eu precisava escrever o que a professora estava colocando na lousa. O estojo da Hanna tava cheio de lápis, então eu fui lá e peguei um para não perder as anotações da lousa.” O pai entendeu que foi uma ação sem maldade por parte do menino e que, ainda assim, ele precisa reforçar a necessidade de respeitar a propriedade dos outros; indicar-lhe que ele não pode sair pegando as coisas dos outros, mesmo que tenha acesso fácil. “Filho, aqueles lápis eram da Hanna e você não tinha o direito de pegá-los sem a autorização dela. Isso é muito sério, a gente precisa respeitar as coisas dos outros, se não vira uma bagunça completa. Você ia gostar que alguém entrasse aqui no seu quarto e pegasse alguns brinquedos seus, porque não tem nada com que brincar?! Da próxima vez, filho, me avisa quando seus lápis acabarem e eu trago alguns lápis da empresa para você colocar no seu estojo!”

Eu confesso que, quando eu li uma versão desta anedota no livro “A mais pura verdade sem desonestidade” do israelense Dan Ariely, eu pensei que este teria sido o tipo de escorregão ético que eu poderia ter cometido sem me dar conta…. e, ao mesmo tempo, a história explicita uma verdade que, muitas vezes, nos recusamos a enxergar: nossos filhos prestam atenção tanto a nossas ações quanto a nossas palavras e não são raras as vezes em que estas duas dimensões enviam mensagens disconexas. No linguajar popular, é o bom e velho ditado “faça o que eu digo, não faça o que eu faço.” Para o bem ou para o mal, uma educação que se contradiz destas forma tem poucas chances de prosperar.

As pesquisas indicam, por exemplo, que um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento de jovens leitores é o hábito de leitura dos pais. Filhos que vêem seus pais lendo jornais ou livros por prazer têm uma probabilidade muito mais alta de desenvolver o gosto pela leitura do que crianças que nunca vêem seus pais lendo. Dizer para nossos filhos que a leitura ou o estudo é importante quando eles nunca nos vêem lendo ou estudando dá poucos resultados, pelo mesmo motivo que a mensagem do pai do Davizinho era confusa com relação ao comportamento ético esperado dele.

Hoje começamos o último dia de Pêssach, uma festa cujas comemorações têm na preocupação com as crianças um eixo central. Afinal de contas, há quatro passagens na Torá que nos instruem a contar aos nossos filhos sobre nossa Libertação de Mitzrayim, dando origem ao seder de Pêssach e à sua preocupação com a didática, adaptando o que ensinamos de acordo com a maturidade e capacidade de cada criança aprender e com atrativos (como o Afikoman) para que eles fiquem acordados até o final e desfrutem de todo o ritual.

A verdade é que o seder de Pêssach é um dos maiores sucessos da tradição judaica. Das celebrações mais ortodoxas às mais seculares, essa é uma tradição que tem mantido viva ao longo dos séculos da vivência judaica, cada grupo adaptando um pouco o ritual para a sua visão judaica de mundo. Nas casas das famílias e nas celebrações comunitárias, eu escutei de sedarim com casa cheia e muita criatividade!

Esses são resultados que, com certeza precisam ser celebrados! A narrativa da saída de Mitzraim e a lembrança da nossa opressão são pilares judaicos centrais que transmitimos na celebração de Pêssach. Mas será que esses resultados são suficientes?

Saímos de Pessach em direção a Shavuot. Ao final desta travessia de sete semanas, chegaremos à base do Monte Sinai. Da mesma forma que o objetivo do sêder é que nos sintamos pessoalmente libertados, na noite de Shavuot, devemos nos sentir presentes na entrega da Torá, um processo que repetimos de ano em ano, de geração em geração.

Mas será que temos o que entregar para a geração dos nossos filhos?! Será que nos apropriamos verdadeiramente da tradição judaica, a tornamos nossa, para podermos passá-la em frente? Ou será que, como o comportamento ético para o pai do Davizinho, consideramos que o Judaísmo é algo essencial para a criação dos nossos filhos mas que perde a relevância uma vez que chegamos à vida adulta?

Em uma das quatro passagens que eu mencionei antes sobre contarmos aos nossos filhos sobre a saída de Mitzraim, o texto diz: “quando vocês entrarem na terra que ייַ te dará conforme te disse, vocês devem observar este ritual. E quando teus filhos te perguntarem: ‘o que é este ritual para você?’, você deve responder.” A Torá parte da premissa de que o Judaísmo terá relevância nas nossas vidas e que o desafio será somente transmiti-lo à próxima geração; mas nós sabemos que nosso desafio hoje em dia é muito mais profundo. 

Ele começa por encontrar relevância e significado na tradição judaica para as vidas complexas e sofisticadas que levamos neste começo de século XXI. Os americanos falam em um abordagem pediátrica ao Judaísmo, que acontece quando nos tornamos adultos juízes federais, cirurgiões bem sucedidos, arquitetos renomados, artistas sofisticados - mas judaicamente continuamos crianças que interromperam seus estudos judaicos ao completarem 12 ou 13 anos ou, no melhor dos casos, ao terminarem o Ensino Médio aos 17.  A matemática que tínhamos aprendido aos 12 anos não tinha a mesma sofisticação daquela que vimos na faculdade; nem as aulas de história, nem as de biologia. Por que seria diferente com as aulas de Judaísmo?

Ao nos aproximarmos do final de abril, eu sempre me pergunto o que o Judaísmo tem a dizer sobre nossas declarações de imposto de renda. Hoje, em reunião com jovens da CIP, eles tinham curiosidade sobre o que o Judaísmo tem a dizer sobre o aborto e sobre questões de sexualidade. Um líder comunitário tinha uma grande preocupação com o envelhecer e o que o Judaísmo tinha a dizer sobre situação em que nossos pais já não tm pleno controle sobre suas faculdades mentais. Dado o clima que vivemos no Brasil hoje, o que o Judaísmo tem a dizer sobre a relação entre a vontade da maioria e os direitos das minorias? Na decisão sobre vacinar ou não os nossos filhos, o que o Judaísmo tem a nos ensinar?

Questões complexas, tratadas judaicamente de formas sofisticadas e plurais ao longo dos séculos - mas que a maioria de nós nunca viu porque elas não tem relevância para crianças de 13 anos ou para jovens de 17.

O Judaísmo tem muito a ensinar a nós e aos nossos filhos, tanto na juventude deles quando em sua vida adulta, mas eles dificilmente acreditarão nisso enquanto as palavras ditas pelas nossas bocas forem negadas pelas palavras ditas pelos nossos atos. Como o pai do Davizinho, não podemos esperar comportamentos dos nossos filhos diferentes daqueles que temos.

A travessia de sete semanas entre Pessach e Shavuot é uma excelente oportunidade para tomar a decisão de se engajar em estudo judaico profundo e tornar o judaísmo algo realmente relevante para a sua vida. Na CIP, estamos  já há alguma semanas preparando o XII Ticún da Virada, o festival de estudo judaico com o qual comemoramos a festa. Coloquem a data de 8 de junho nas suas agendas e venham dar, conosco, o primeiro passo de um engajamento judaico adulto.

Shabat Shalom e Chag Sameach!

domingo, 23 de abril de 2017

Entre o Pacto e a Tribo

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Há alguns anos, o representante da diretoria voluntária de uma escola judaica mencionou, em seu discurso durante uma cerimônia de formatura, tudo o que ele tinha aprendido na aulas de Cultura e História Judaicas daquela mesma escola, onde ele também tinha estudado. “Está tudo resumido em uma velha piada”, ele disse. “Tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos festejar”. O discurso continuou, endereçando a necessidade de união da comunidade judaica frente às ameaças externas, o perigo do antissemitismo fora dos muros escolares e a necessidade de garantirmos que as próximas gerações fossem educadas dentro do judaísmo.

Para muita gente que escutava o discurso, sua mensagem era certeira: na sua visão, a principal função da educação judaica é garantir que reconheçamos as ameaças à nossa existência e que aprendamos a nos defender e garantir a perpetuação do povo judeu. Para outro segmento não menos representativo, no entanto, o incômodo era claro. Para eles, a educação judaica deve focar nos valores humanistas da nossa tradição, central entre eles a dignidade de todo e qualquer ser humano.

O rabino Sid Schwarz, escrevendo sobre dinâmicas muito semelhantes que acontecem na comunidade judaica norte-americana, chama o primeiro grupo de “judeus tribais” e o segundo grupo de “judeus do pacto”. “Judeus tribais”, escaldados pela seqüência de perseguições contra os judeus, valorizam a proteção física da comunidade judaica; estão preocupados com o “corpo” do judaísmo. “Judeus do pacto” se ocupam com o papel que valores judaicos terão na forma como a comunidade judaica se conduz e como ela trata a proteção aos oprimidos, sejam eles quem forem; eles se preocupam com a “alma” do judaísmo.

Às vésperas de Pessach, chegamos ao terceiro e último feriado da trilogia da piada mencionada: “tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer!” As histórias de Chanucá, Purim e Pessach, lidas sob esta perspectiva, reforçam dimensões de compreensão da experiência histórica judaica que sempre nos enxergam como vítima. Na capacidade de vítimas, nossa responsabilidade se limita à nossa própria (e legítima!) defesa.

É difícil negar que esta seja uma dimensão plausível para a compreensão das narrativas destas três festas judaicas – ela não é, no entanto, a única narrativa possível, nem mesmo a lente através da qual devamos estabelecer a compreensão fundacional da experiência histórica e do calendário judaicos.

Em cada uma destas três festas, valores centrais que se opõem à narrativa da vitimização perene são, frequente e propositalmente, ignorados. Entre outros assuntos possíveis, em Chanucá, deixam de discutir a relação entre o poder hegemônico e as minorias culturais; em Purim não falam dos riscos do abuso de autoridade; em Pessach, deixam de lado a conversa sobre a possibilidade de resistirmos aos faraós do nosso tempo – abordagens que falam da responsabilidade judaica para com o mundo ao mesmo tempo em que discutem as ocasiões em que fomos nós os oprimidos.

O que a visão que privilegia a auto-preservação judaica sobre qualquer outro valor omite é que o paradigma judaico fundamental para a compreensão da nossa própria opressão estabelece a empatia para com os oprimidos em toda parte como a principal lição a ser aprendida destes episódios. כִּי־גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם (“por que vocês foram estrangeiros na terra do Egito”) é uma das poucas frases repetidas múltiplas vezes na Torá, sempre seguindo instruções para que protejamos os estrangeiros na nossa terra.  Na perspectiva da Torá, a experiência judaica como vítimas não nos dá o direito de nos preocuparmos apenas com a nossa própria segurança; ao contrário, ela determina que devemos proteger aqueles que hoje estejam em situação de vulnerabilidade.

A triste verdade, no entanto, é que a fala do diretor voluntário na formatura da escola reflete o pensamento de grande parte da liderança institucional judaica, que não apenas educa dentro de parâmetros unicamente etnocêntricos, mas também deslegitima qualquer visão de mundo alternativa. A falha em reconhecer estas múltiplas perspectivas possíveis de engajamento com a nossa tradição tem feito com que um segmento expressivo da comunidade judaica (especialmente, mas não apenas, a sua juventude) não se sinta representado pelas instituições comunitárias que, por sua vez, não se sentem comprometidas a considerar sua opinião na formulação de políticas e programas. Um ciclo vicioso que vem se desenrolando há muito tempo e que  agora, ao que parece, chega ao seu ápice sem que as questões de fundo sejam, efetivamente, discutidas. “Judeus do pacto” e “judeus da tribo” não se reconhecem mais como pertencendo a uma comunidade na qual compartilhem valores ou uma visão de futuro que tenha espaço para ambos.

Passados os dois sedarim, entraremos no Omer, período de 49 dias que serve de ponte entre Pessach (quando nossos corpos deixaram de estar sob permanente ameaça) e Shavuot (quando recebemos a Torá e, com elas, os valores que devem guiar nossas ações). Tradicionalmente, estes 49 dias são de introspecção, apresentando até mesmo sinais de luto. Podem ser uma ótima oportunidade para esfriar os ânimos e se perguntar como fazer para que a defesa dos corpos dos judeus e a proteção da alma judaica não sejam projetos mutuamente exclusivos!

domingo, 9 de abril de 2017

Dvar-Torá: Shabat haGadol 5777 (ARI, Rio de Janeiro)

Há algumas semanas, representantes de todas as escolas judaicas do Brasil se reuniram em São Paulo para seu Terceiro Encontro Nacional, organizado pela Conib. O tema: pontos de vista. Na primeira sessão, a professora Diana Vidal, falou sobre “História e a construção de suas versões” e debateu como sempre existem inúmeras perspectivas para qualquer evento histórico. Ensinar história, portanto, sempre envolve a escolha de quais perspectivas iremos privilegiar.

Hoje é Shabat haGadol, o “grande shabat” que antecede Pessach.

Eu cresci em uma casa totalmente laica em São Paulo, mas sempre estudei em escolas judaicas, do jardim de infância ao colegial. A visão de judaísmo que me foi ensinada naqueles tempos era monocromática e não dava espaço à pluralidade de pontos de vista ou de práticas religiosas. Nas escolas em que eu estudei – que não eram religiosas – uma única perspectiva religiosa judaica era reconhecida como autêntica e, dada essa realidade, quando eu terminei o colegial e entrei na faculdade, queria a maior distância possível daquele judaísmo que tinham me ensinado e que era o único que eu conhecia…

Por ironia, depois de formado fui estudar em Israel e foi lá que eu comecei a descobrir que o judaísmo não tinha apenas um ponto de vista, havia grande diversidade interna. Me tornei membro ativo do Beit Daniel, a sinagoga reformista de Tel Aviv, e é graças a esta experiência que meu engajamento com o judaísmo tomou um novo rumo que me trouxe até aqui. Em Beit Daniel, o costume no Shabat haGadol era convidar todas as pessoas que falassem outros idiomas para que lessem parte do serviço em línguas além do hebraico. Era um serviço realmente internacional, reflexo de uma percepção de judaísmo multicultural, diverso, inclusivo e pluralista.

A mesma percepção que a Escola Eliezer Max vem perseguindo na educação judaica que oferece. Nos últimos dez dias, celebramos nove sedarim de Pessach com nossos alunos e suas famílias - explorando exatamente estas perspectivas de diversidade cultural. Do Infantil ao Ensino Médio, conversamos sobre multi-culturalismo, sobre indígenas e sobre judeus etíopes, sobre a mistura cultural da Tropicália e sua relação com uma tradição judaica que se renova continuamente. Buscamos relevância nas velhas tradições e mensagens universais de liberdade e respeito através das nossas práticas particulares.

Pessach tem, na tradição judaica, um papel educativo central. Somos instruídos 4 vezes na Torá a contarmos sua história a nossos filhos. Mas, lembrando da fala da Professora Diana Vidal, sob qual perspectiva contaremos esta história?

Dois dos pensadores judeus contemporâneos que mais têm me impactado, o rabino ortodoxo Donniel Hartman e a rabina conservadora Sharon Brous, escreveram nos últimos anos que não é suficiente contar a história da Saída do Egito como se existisse uma única narrativa: é fundamental considerar a qual mensagem estamos dando voz.

Uma perspectiva possível da história que contamos no seder enxerga a opressão que os hebreus sofreram no Egito como representante de dinâmicas sociais que se repetiram inúmeras vezes na história. Nossa história seria uma seqüência de perseguições e opressões: sob os egípcios, os assírios, os babilônios, os gregos, os romanos, as cruzadas, a Inquisição, os pogroms, a Shoá, o antissionismo e o antissemitismo moderno. Eventos que, isolados do resto da nossa experiência histórica, constroem uma percepção da história judaica que incluem apenas situações nas quais fomos vítimas. Neste paradigma, nossa maior responsabilidade é com nossa própria proteção e com a garantia que a comunidade judaica não passe por experiências similares no futuro.

Um outra perspectiva possível narra a história do Seder como a de uma obrigação judaica de lutar contra qualquer opressão. O evento fundador da experiência judaica, a servidão no Egito, faz com que nos identifiquemos com os segmentos mais vulneráveis das sociedades em que vivemos, sejam eles judeus ou não. No atual contexto histórico, em que as comunidades judaicas são bem integradas na maioria dos países em que vivemos, esta luta foca, primordialmente, em direitos de outros grupos.

Estas duas perspectivas, a que enxerga a Libertação do Egito como um evento relacionado à dinâmica histórica dos judeus e aquela que a enxerga como uma luta permanente contra a opressão, recebem voz no texto da hagadá. VeHi sheamda é reflexo da primeira perspectiva, enquanto Halachmá aniá é reflexo da segunda. Infelizmente, no entanto, não são raras as instâncias em que apenas uma delas é valorizada na história que é contada no seder.

Que história, por exemplo, contamos sobre a matzá? Ela representa tanto a fuga dos hebreus com pressa (uma perspectiva particular), quanto o pão da pobreza (uma perspectiva universal), mas eu conheço poucas pessoas que, quando questionadas, se lembram das duas explicações. 

O mal causado por um judaísmo monocromático, sem espaço para debate interno e que vive em absolutos, é sentido na forma como nos relacionamos com a tradição, mas também como nos relacionamos com outros judeus. Na acidez das redes sociais, cada vez mais escutamos ataques que negam a legitimidade do judaísmo do outro; as pessoas se orgulham dos debates talmúdicos, mas praticam um judaísmo sem espaço para divergências ou debates.

Como educadores, procuramos fugir destas armadilhas no Eliezer Max e educar nossos alunos no equilíbrio entre universalismo e particularismo; responsabilidade para com o outro e nossa própria defesa. Esperamos que eles sejam conhecedores dos textos, dos rituais e da história judaica, mas que também percebam nosso comprometimento com os direitos humanos e, em especial, com os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. Buscamos a integração dos aspectos mais generosos das nossas tradições judaica e humanista, sem abrir mão de nenhuma delas.

Nessa segunda-feira, temos o primeiro seder de Pessach. Qual história você vai contar à sua mesa?


Shabat Shalom e Chag Sameach!

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Dvar-Torá: Rosh haShaná 5777 (Coletivo Kol Chadash na Sinagoga do Cambuci, São Paulo)


Esta semana eu postei no facebook um artigo em que a autora explicava por que ela sairia do salão da sinagoga quando o piyut - poema litúrgico - uNetanê Tokef fosse cantado. Para quem nunca parou para ler sua tradução, o poema descreve o cenário de um julgamento, considera todas as nossas ações e decide como será nosso próximo ano. Quem viverá e quem não; quem encontrará a morte tranquilamente e quem só chegará lá depois de muito sofrimento. A metáfora sugere que nossas ações têm impacto no mundo e a qualidade da nossa vida é determinada, em parte, pelos comportamentos que adotamos.

Para a autora, no entanto, era difícil fugir do sentido literal do poema. Seu pai se suicidou depois de lutar com a depressão por vários meses, acreditando que o mundo estaria melhor sem ele. A forma como ele se matou e sua luta com a depressão aparecem literalmente nas linhas do uNetanê Tokef, como se fossem um castigo Divino.

No artigo ela diz:
 
Eu entendo o valor metafórico que alguns vêem neste poema. Mas, como uma sobrevivente de trauma, eu me tornei familiar, de uma forma pessoal e dolorosa, com termos que me fazem reviver a experiência [chamados “disparadores”]. E quando eu olho para as palavras deste poema, eu me impressiono não só pelos meus disparadores, mas pelo potencial para outras pessoas que foram tragicamente atingidas por incêndios, inundações ou agressões violentas.
Talvez, além de pedir a seus congregantes que tenham uma leitura mais profunda e leiam as palavras além do seu sentido literal, seja também chegada a hora para aqueles que lideram nossos serviços religiosos de reconhecer que as palavras por si só podem ter, para alguns, o poder de desencadear memórias e pensamentos traumáticos.[1]
Eu fico pensando nestas palavras, neste 2 de outubro de 2016, 1 de Tishrei de 5777. Talvez, hoje soframos todos de tensão do stress pós-traumático - pelo menos aqueles que lembram o que esta data significa. Aqueles que marcam o 2 de outubro como o dia em que 111 pessoas foram chacinadas nesta cidade há 24 anos. Talvez todos nós devêssemos sair do salão da sinagoga amanhã quando o uNetanê Tokef for lido. Hoje, no entanto, eu proponho que o enfrentemos uma vez mais…
וּנְתַנֶּה תֹּֽקֶף קְדֻשַּׁת הַיּוֹם
Declaramos a poderosa santidade deste dia – profundo e temível. Hoje, Tua soberania é elevada, Teu trono – de onde Você governa com verdade – é estabelecido com amor. Verdadeiramente, Você é o Juiz e o Procurador, Perito e Testemunha, Você registra e sela, conta e mede. Você lembra tudo que é esquecido e abrirá o Livro das Memórias, que fala por si próprio, pois todos nós o assinamos com nossas mãos.


Há 24 anos, 341 policiais militares sob o comando do Coronel Ubiratan Rodrigues, entraram no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo para conter uma rebelião de presos[2]. Os sobreviventes da chacina dizem que brigas entre presos eram comuns no presídio, e que tudo voltaria à calma depois de algum tempo - não fosse a entrada do Batalhão de Choque da PM naquele 2 de outubro. O governador era Luiz Antônio Fleury Filho, ex-policial militar e ex-secretário de Segurança Pública do Governo Quercia. 

Às vezes, a poesia nos ajuda a entender aquilo para o qual não há compreensão. Nas palavras dos Paralamas:
Mas naquele dia até Deus se escondeu
Quando se ouviram os gritos de socorro
A voz da razão sumiu
Quando a polícia subiu o morro[3]

Há 24 anos, a Polícia assumiu o papel de Deus e serviu como juiz, procurador, perito e testemunha. Assumiu também um papel mais duro e executou a sentença de morte que ela mesma havia decretado sobre 111 seres humanos. 89 deles ainda não tinham sido julgados pelos tribunais da terra.

Era véspera das eleições municipais, que seria também a data da posse de Itamar Franco após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Por um tempo, não tivemos a dimensão real do que tinha acontecido. A capa da Folha do dia seguinte destacava as pesquisas eleitorais que apontavam a vitória de Paulo Maluf e a posse de Itamar Franco. Uma pequena nota na parte de baixo da página dizia: “Rebelião em presídio faz pelo menos oito mortos”[4]. Foi só no dia seguinte, depois das eleições terem passado, que soubemos o número oficial da chacina. Na manchete da Folha: “Chacina mata 111 presos em São Paulo.”[5] 
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos[6]

וּבְשׁוֹפָר גָדוֹל יִתָּקַע
E um grande shofar será soado e, mesmo assim, será possível escutar um pequeno suspiro. Os anjos estão agitados, tomados por medo e tremor. Eles gritam: “Este é o Dia do Julgamento visitando os exércitos divinos em julgamento, ninguém é inocente frente a Ti.” E todos aqueles que vieram ao mundo passam na Tua frente como ovelhas. Da mesma forma que o olhar de um pastor de ovelhas busca seu rebanho quando cada ovelha passa pelo seu cajado, Você revisa, reconta e avalia a vida de cada ser vivo e Você determina o término da vida de cada criatura e escreve o veredito dele.

Em sua coluna na Folha de ontem, o jornalista Oscar Vilhena Vieira escreveu:

Desafortunadamente tive a oportunidade de acompanhar profissionalmente os desdobramentos do massacre, ingressando no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnadas em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.[7]

Depois da tempestade, o silêncio em que podemos escutar até um pequeno suspiro, enquanto os detentos lavavam o sangue dos seus colegas. Quem viu as fotos da chacina entende o descaso absoluto com a vida humana e com a perda dela que foi demonstrado naquele dia.

Há alguns anos, eu fui a um debate na sede do Habonim-Dror do Rio de Janeiro. Falavam de ocupações: Michel Gherman, amigo de muitos aqui, falava da Ocupação dos territórios palestinos por Israel e Marcelo Freixo, cujo nome eu nunca tinha ouvido, falava sobre a ocupação das favelas do Rio pela polícia e pelo exército. Em algum momento, Freixo fez uma afirmação que, apesar de óbvia, nunca tinha me ocorrido: “quando o pessoal ataca quem defende os direitos humanos dos presidiários, o que eles estão atacando não é a perspectiva de que presidiário tenha direitos; o que eles contestam é a perspectiva de que presidiários sejam seres humanos.”

Tem gente que acha que preso é gado. Nas palavras de Vandré, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente.”[8]

A tradição judaica é muito clara neste aspecto. Somos TODOS criados à imagem de Deus, o que garante a todos nós o direito à dignidade inalienável da condição humana. Todos nós, sem exceção, o tempo todo. Meu professor, o rabino Art Green, falando sobre o seu professor, o Rabino Abraham Joshua Heschel, escreveu:
“Por que somos proibidos de fazer imagens de Deus?” Heschel perguntou. Não é porque Deus esteja além de todas as imagens, de forma que nenhuma imagem poderia representar Deus. “Se este fosse o caso”, ele argumentava, “imagens seriam simplesmente inofensivas”. “Deus tem uma imagem,” ele insistia, “e esta imagem é você.” Você não pode fazer uma imagem de Deus por que você é a imagem de Deus.[9]

Segundo a Mishná, a primeira obra legal escrita pelo movimento rabínico ao redor do ano 220 E.C., até o condenado à morte precisa ser tratado com dignidade e seu corpo precisa ser enterrado com a maior velocidade possível. Mesmo o condenado à morte não deixava de ser criado à imagem de Deus e, portanto, até na sua punição merecia ser tratado com dignidade.

Um dos meus poemas favoritos da poetisa israelense Zelda desenvolve uma ideia rabínica de que recebemos e conquistamos diferentes nomes ao longo das nossas vidas. Diz Zelda:

לְכָל אִישׁ יֵשׁ שֵׁם
 שֶׁנָּתַן לוֹ אֱלֹהִים
וְנָתְנוּ לוֹ אָבִיו וְאִמּוֹ
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado por Deus
e que lhe foi dado por seu pai e sua mãe
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pela sua estatura e pelo seu sorriso
e que lhe foi dado por o que ela veste
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas montanhas
e que lhe foi dado pelos seus muros
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelos signos
e que lhe foi dado pelos seus vizinhos
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas suas falhas
e que lhe foi dado pelos seus desejos
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado por aqueles que a odeiam
e que lhe foi dado por aquele que ela ama
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas suas celebrações
e que lhe foi dado pelo seu trabalho
Toda pessoas tem um nome
que lhe foi dado pelas estações do ano
e que lhe foi dado pela sua cegueira
Toda pessoa tem um nome
que lhe deu o mar
e que lhe deu
a sua morte.

Em respeito à vida dos 111 seres humanos que morreram há exatos 24 anos, eu passarei à leitura dos seus nomes. Por favor, levantem-se.
1) Adalberto Oliveira dos Santos
2) Adão Luiz Ferreira de Aquino
3) Adelson Pereira de Araujo
4) Alex Rogério de Araujo
5) Alexandre Nunes Machado da Silva
6) Almir Jean Soares
7) Antonio Alves dos Santos
8) Antonio da Silva Souza
9) Antonio Luiz Pereira
10) Antonio Quirino da Silva
11) Carlos Almirante Borges da Silva
12) Carlos Antonio Silvano Santos
13) Carlos Cesar de Souza
14) Claudemir Marques
15) Claudio do Nascimento da Silva
16) Claudio José de Carvalho
17) Cosmo Alberto dos Santos
18) Daniel Roque Pires
19) Dimas Geraldo dos Santos
20) Douglas Edson de Brito
21) Edivaldo Joaquim de Almeida
22) Elias Oliveira Costa
23) Elias Palmiciano
24) Emerson Marcelo de Pontes
25) Erivaldo da Silva Ribeiro
26) Estefano Mard da Silva Prudente
27) Fabio Rogério dos Santos
28) Francisco Antonio dos Santos
29) Francisco Ferreira dos Santos
30) Francisco Rodrigues
31) Genivaldo Araujo dos Santos
32) Geraldo Martins Pereira
33) Geraldo Messias da Silva
34) Grimario Valério de Albuquerque
35) Jarbas da Silveira Rosa
36) Jesuino Campos
37) João Carlos Rodrigues Vasques
38) João Gonçalves da Silva
39) Jodilson Ferreira dos Santos
40) Jorge Sakai
41) Josanias Ferreira de Lima
42) José Alberto Gomes Pessoa
43) José Bento da Silva
44) José Carlos Clementino da Silva
45) José Carlos da Silva
46) José Carlos dos Santos
47) José Carlos Inojosa
48) José Cícero Angelo dos Santos
49) José Cícero da Silva
50) José Domingues Duarte
51) José Elias Miranda da Silva
52) José Jaime Costa e Silva
53) José Jorge Vicente
54) José Marcolino Monteiro
55) José Martins Vieira Rodrigues
56) José Ocelio Alves Rodrigues
57) José Pereira da Silva
58) José Ronaldo Vilela da Silva
59) Josue Pedroso de Andrade
60) Jovemar Paulo Alves Ribeiro
61) Juares dos Santos
62) Luiz Cesar Leite
63) Luiz Claudio do Carmo
64) Luiz Enrique Martin
65) Luiz Granja da Silva Neto
66) Mamed da Silva
67) Marcelo Couto
68) Marcelo Ramos
69) Marco Antonio Avelino Ramos
70) Marco Antonio Soares
71) Marcos Rodrigues Melo
72) Marcos Sérgio Lino de Souza
73) Mario Felipe dos Santos
74) Mario Gonçalves da Silva
75) Mauricio Calio
76) Mauro Batista Silva
77) Nivaldo Aparecido Marques de Souza
78) Nivaldo Barreto Pinto
79) Nivaldo de Jesus Santos
80) Ocenir Paulo de Lima
81) Olivio Antonio Luiz Filho
82) Orlando Alves Rodrigues
83) Osvaldino Moreira Flores
84) Paulo Antonio Ramos
85) Paulo Cesar Moreira
86) Paulo Martins Silva
87) Paulo Reis Antunes
88) Paulo Roberto da Luz
89) Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira
90) Paulo Rogério Luiz de Oliveira
91) Reginaldo Ferreira Martins
92) Reginaldo Judici da Silva
93) Roberio Azevedo da Silva
94) Roberto Alves Vieira
95) Roberto Aparecido Nogueira
96) Roberto Azevedo Silva
97) Roberto Rodrigues Teodoro
98) Rogério Piassa
99) Rogério Presaniuk
100) Ronaldo Aparecido Gasparinio
101) Samuel Teixeira de Queiroz
102) Sandoval Batista da Silva
103) Sandro Rogério Bispo
104) Sérgio Angelo Bonane
105) Tenilson Souza
106) Valdemir Bernardo da Silva
107) Valdemir Pereira da Silva
108) Valmir Marques dos Santos
109) Valter Gonçalves Gaetano
110) Vanildo Luiz
111) Vivaldo Virculino dos Santos[10]
que suas memórias sejam abençoadas
Podem se sentar.

Um midrash conta que, em resposta à destruição de Jerusalém, Deus pergunta aos seus anjos como um rei humano responderia se tivesse perdido um filho. Os anjos respondem: "um rei humano… 
penduraria sacos na sua porta,
apagarias as luzes,
viraria o sofá,
andaria sem sapatos,
rasgaria suas roupas,
sentaria em silêncio e choraria."
"Eu vou fazer o mesmo", responde Deus, "Eu vou pendurar sacos na porta, apagar as luzes, virar o sofá, andar sem sapatos, rasgar minhas roupas, sentar em silêncio e chorar." [11]

Eu não tenho dúvida alguma de que Deus está chorando há 24 anos pela morte destes 111  filhos. Cento e onze filhos cujo direito à justiça, ainda que póstuma, foi mais uma vez negada esta semana.

בְּרֹאשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן, וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!
Quantos vão passar, e quantas vão nascer;
quem vai viver e quem vai morrer;
que terá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro;
quem morrerá pelo fogo e quem pela água;
quem pela espada e quem por animais;
quem pela fome e quem pela sede;
quem pelo terremoto e quem pela peste;
quem será estrangulado e quem será apedrejado;
que estará em paz e quem será perturbado;
quem estará sereno e quem estará agitado;
quem estará tranquilo e que estará atormentado;
quem empobrecerá e quem ficará rico;
quem cairá, quem se levantará.

Há eventos que, de tão brutais, deveriam levar a mudanças de comportamento. Depois da Shoá, dos 6 milhões de nossos irmãos brutalmente assassinados só por que eram nossos irmãos, achávamos que o mundo acordaria e que o antissemitismo não brotaria mais em qualquer lugar. É com horror que vemos hoje o antissemitismo re-aparecendo em tantas partes do mundo. 

Depois do Carandirú, depois de 111 seres humanos brutalmente assassinados, esperávamos que o Brasil acordasse e mudasse no tratamento que dá aos nossos irmãos na cadeia. É com horror que percebemos que este não é o caso - que vinte e quatro anos depois, nenhum responsável pela chacina do Carandirú tenha sido preso e que o julgamento tenha acabado de voltar à estaca zero;  que pesquisa realizada em 2015 tenha constatado que 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase “Bandido bom é Bandido Morto”.[12]

O relator do processo que levou ao cancelamento do julgamento dos 74 PMs esta semana, desembargador Ivan Sartori, afirmou que “não houve realmente um massacre. O que houve foi estrito cumprimento do dever legal, obediência hierárquica e legítima defesa, inclusive.” As imagens e os depoimentos dos sobreviventes do massacre deixam claro que os presos foram fuzilados depois de rendidos; os fatos dos soldados estarem fortemente armados e terem saído todos com vida deveriam ser suficientes para desqualificar a tese de legítima defesa; as lições de Hanna Arendt depois do julgamento de Eichman deveriam ter nos ensinado o que acontece quando há o "estrito cumprimento do dever legal" e "obediência hierárquica" sem questionar a moralidade das ordens dadas. Do mesmo Freixo, eu ouvi em outra oportunidade que o país precisa “democratizar a polícia”: “a gente ainda tem uma polícia oriunda da ditadura, com uma concepção de guerra, com uma concepção de eliminar o inimigo”, ele disse.[13]

A decisão do Tribunal de Justiça deveria ter-nos levado às ruas, exigindo um país diferente - sem nos importarmos com o machzor que precisava ficar pronto, com o trabalho que a chefe esperava ver na mesa dela naquela manhã ou com a prova do dia seguinte. Se em Rosh haShaná, acreditamos quando cantamos uNetanê Tokef e perguntamos quem será inscrito no livro da vida, minamos nossas chances nesta semana que passou. Nesta quarta feira, todos falhamos e deixamos um pedacinho da nossa humanidade morrer… 

Um midrash conta que certa vez Rabi Yehoshua sonhou ter encontrado o profeta Eliahu. “Quando o Messias virá?” ele perguntou ao profeta. “Quando seremos redimidos desta opressão?” O profeta respondeu: “Vá e pergunte ao Messias!”. “E onde posso encontrá-lo?”, perguntou Rabi Yehoshua. “No portão de Roma, onde ele se senta junto aos mendigos da cidade”. Nestes dias de Iamim Noraim, Rosh haShaná e Yom Kipur, em que tentamos re-encontrar nosso eu mais profundo e perdido, é bom lembrar que às vezes, é exatamente aquele que mais desprezamos - o mendigo, a prostituta, o presidiário - que nos dá a oportunidade de re-encontrar nossas humanidade.
 
A maioria de nós conhece o verso  "וְאָהַבְתָּ לְרֵעֲךָ כָּמוֹךָ אֲנִי ה׳",  “Ama um outro ser humano da mesma forma como você ama a si mesmo; Eu sou Adonai.”[14] Ainda que não seja explícito, parece que a obrigação de amar os outros seres humanos como a nós mesmos decorre do fato de que somos todos criados à imagem de Deus. Dois versos antes deste, encontramos a mesma lógica aplicada a outra instrução: "לֹא תַעֲמֹד עַל־דַּם רֵעֶךָ אֲנִי ה׳",  “Não fique assistindo enquanto derramam o sangue de outro ser humano; Eu sou Adonai”.[15]  A implicação sobre o que a tradição judaica diz que devemos fazer nesta situação é óbvia.

O comentário do meu professor sobre Heschel e a criação do ser humano à imagem de Deus continuava:
A única forma na qual você pode fazer uma imagem de Deus é a forma de toda a sua vida, e é isto precisamente que você é comandado a fazer. Tudo o que você faz, tudo o que você diz, cada momento e a forma como você o usa são todas partes da forma como você constrói a imagem de Deus.[16]

Construímos a imagem de Deus através das nossas ações! Hoje, infelizmente, a imagem que nossas ações constroem é de um Deus sentado no chão, chorando pelos seus filhos assassinados. Que imagem de Deus as ações que tomaremos a partir deste momento construirão?

Durante os últimos 70 anos, temos nos perguntado como o mundo pôde ter se calado. Agora é a hora de perguntar a nós mesmos: vamos nos calar?

Shaná Tová! 
Que neste ano...

consigamos encontrar a dignidade humana em toda pessoa;

que nossa busca por justiça inclua também a defesa daqueles a quem desprezamos;

que nossas ações construam a imagem do Deus em que dizemos acreditar.

Ken Yehi Ratzon (que assim seja a Vontade)




[3] https://www.letras.mus.br/os-paralamas-do-sucesso/47927/
[4] http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1992/10/03/2/
[5] http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1992/10/04/2/
[6] https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44730/
[9] Green, Art. Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow, p. 121 (tradução minha)
[11]  Eika Rabá 1:1
[14] Lev. 19:18
[15] Lev. 19:16
[16] Green, Art. Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow, p. 121 (tradução minha)