sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dvar Torá: Muito além dos Números (CIP)

Há uns dois meses, eu li com os meus filhos “A Revolução dos Bichos”, o clássico de George Orwell sobre uma fazenda na qual os animais tomam o poder com a promessa de criar uma nova sociedade igualitária mas que rapidamente reproduz as mesmas injustiças que existiam quando eram os humanos que tomavam conta. O livro é claramente uma crítica ao regime totalitário da União Soviética mas o tempo decorrido desde a sua primeira publicação em 1945 nos permite enxergar reflexos da situação descrita lá em muitos regimes fora da órbita socialista. Bola de Neve, por exemplo, é um dos líderes da revolução dos bichos e um dos porcos do gabinete que comanda a fazenda no novo regime. Em algum momento, no entanto, ele é expurgado, some da fazenda e passa a ser associado a tudo de ruim que acontece com a comunidade. O que era uma referência no texto original ao expurgo de Trotsky parece descrever cenários da realidade que vivemos hoje.

Entusiasmado pela forma como meus filhos gostaram do livro, resolvi também resgatar uma leitura antiga de George Orwell. Há uns 25 anos, eu tinha lido “1984” e o livro tinha me deixado profundamente marcado com a realidade distópica, também em um regime totalitário, baseado não apenas na realidade soviética mas também na Alemanha nazista. Uma frase tinha ficado gravada nestes anos todos desde a primeira leitura e a re-encontrei agora nesta segunda leitura. “A Liberdade é a liberdade de afirmar que dois mais dois é igual a quatro.” A frase é usada em referência à possibilidade de que o Estado totalitário do livro afirmasse que “dois mais dois é cinco” e que as pessoas, cegas pela crença no líder, se convencessem de que essa é a verdade.

Minha primeira escolha de carreira universitária foi Ciência da Computação - que basicamente é um curso em Matemática Aplicada. Os número tem grande importância pra mim, um valor quase sentimental. Talvez por isso, naquela época a frase de Orwell tenha me impactado tanto. Se perdermos a capacidade de identificar o que é verdadeiro e o que é falso, em que acreditaremos? Se alguém for efetivamente capaz de nos convencer que a mentira mais absurda, como que dois mais dois é cinco, é verdade, perdemos parte do juízo que caracteriza o que quer dizer ser humano.

George Orwell em um artigo publicado ainda durante a Segunda Guerra Mundial e seis anos antes da publicação de 1984, tinha escrito:
A teoria nazista de fato nega especificamente que tal coisa como “a verdade" exista. (…) O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo em que o líder, ou alguma classe dominante, controla não só o futuro, mas também o passado. Se o Líder disser sobre tal e tal evento, "Isso nunca aconteceu" - bem, isso nunca aconteceu. Se ele disser que dois e dois são cinco - bem, dois e dois são cinco. Essa perspectiva me assusta muito mais do que as bombas. [1]
Essa perspectiva, que me assustava na primeira leitura, ainda me assusta, provavelmente muito mais hoje do que há 25 anos.

Mas tem um outro lado meu que reconhece que as nossas vidas não podem ser descritas só em números. Depois de largar a Ciência da Computação, eu acabei me formando em Administração de Empresas e fiz mestrado em Economia, duas áreas do conhecimento que nos últimos anos têm se pautado por “decisões baseadas em dados” ou, em outras palavras, a análise dos números antes de tomarmos qualquer decisão.

Eu não discordo fundamentalmente dessa abordagem, mas acho que às vezes corremos riscos quando achamos que tudo é mensurável, que dá pra estabelecer o valor de tudo em números. Especialmente nesses dias de isolamento físico, é importante lembrar do que está muito além dos números.

Ontem quebramos a barreira de 20.000 mortes pela Covid-19 no Brasil. Claramente se trata, não apenas de uma crise da saúde pública da mais alta gravidade, mas principalmente de uma desgraça pra esse país. São mais de 20.000 famílias que perderam um pai, uma mãe, um avô, uma filha, um melhor amigo. São 20.000 futuros que a gente não vai mais conhecer. É uma daquela situações nas quais a tradição judaica diz que vamos encontrar Deus sentado no chão, com cinzas sobre a cabeça, chorando e lamentando o que está acontecendo.

Mas essa análise toma como óbvio um fator que eu não acho que seja tão evidente, que é o valor da vida humana. Para quem acha que o valor da vida humana é zero, essa crise não tem importância nenhuma, afinal de contas 20.000 vezes zero é zero! Perceber a dimensão dessa tragédia implica reconhecer que teria sido trágico mesmo se apenas uma vida tivesse sido perdida por nossa apatia, pelo nosso descaso ou pela nossa negligência.

Os jornais tem publicado pequenas histórias sobre as pessoas que têm morrido de Covid-19. Ao conhecermos um pouquinho de quem elas eram, a estatística, o número, vira indivíduos, vira relacionamentos, vira uma questão pessoal. Aí, a gente reconhece que na frase “mais de 20.000 pessoas já morreram por Covid-19 no Brasil”, a parte mais importante tem que ser “pessoas” e não “20.000”.

Um outro jeito de ver isso é olhar pra quando uma única morte nos impacta de forma profunda, mesmo quando não conhecíamos a pessoa diretamente. Pode ser um artista, como o Aldir Blanc, cujas músicas me lembram o som que eu escutava no banco de trás do Passat branco do meu pai. Suas músicas são como uma máquina do tempo e perdê-lo significa, de alguma forma simbólica, perder também essas doces memórias da minha infância. 

Olhando para fora da Covid, quem não se lembra de Alan Kurdi, o menino Sírio de 3 anos cujo corpo afogado foi encontrado em uma praia na Turquia em 2015 e cuja foto estampou jornais do mundo todo? Uma foto, uma criança, capazes de mudar a opinião de muita gente com relação à crise dos refugiados. 

Ou de Evaldo Rosa, o músico morto com oitenta tiros na frente de um quartel do exército no Rio de Janeiro há pouco mais de um ano e cuja morte escancarou a violência da intervenção militar no Rio? De novo, uma só morte e um impacto gigante.

É provavelmente por reconhecer o impacto que cada perda nos traz que a tradição judaica nos ensina que “salvar uma vida é como salvar o mundo todo.” Vinte mil mundos que perdemos até agora.

A parashá desta semana é a primeira do 4o livro da Torá, que em português se chama “Números”. O nome vem de um pedido de Deus para que Moshé faça um censo dos hebreus — o que curioso, porque tem uma proibição religiosa contra contarmos as pessoas. Há uma discussão se essa proibição vem da Torá ou se é posterior, mas é isso que leva algumas pessoas, quando querem contar um minián, a dizerem a seguinte frase, que tem dez palavras: “הוֹשִׁיעָה אֶת־עַמֶּךָ וּבָרֵךְ אֶת־נַחֲלָתֶךָ וּרְעֵם וְנַשְּׂאֵם עַד־הָעוֹלָם”, “Redima teu povo e abençoe tua possessão, cuide e sustente-os para sempre” [2]. Tem gente também que conta “não 1”, “não 2”, “não 3” e assim por diante -- desse jeito eles "não" contam.

Há muitas interpretações para o motivo desta proibição, mas eu gosto de pensar que há um tanto de desumanização cada vez que transformamos alguém em estatística. Os nazistas entenderam isso, tiravam o nome das pessoas e as transformavam em um número tatuado no braço. Não eram mais pessoas, não tinham mais valor, eram só um número. Por isso, somos proibidos de contar pessoas — uma forma impedir que tiremos qualquer parte da dignidade inalienável de todo ser humano. Toda vida conta, tem nome, sobrenome e uma história pessoal. Ninguém é só número.

Em hebraico, este livro se chama “baMidbar”, “no deserto”. Foi na vastidão do deserto que nosso povo abandonou as limitações e a idolatria de Mitsrayim, “a terra das águas estreitas” e construiu sua liberdade através do relacionamento com o Deus que criou a humanidade, cada um de nós à Sua imagem e semelhança. 

Foi no deserto que escutamos pela primeira vez o Sh’má: “escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um.” Eu gosto especialmente de uma interpretação chassídica do Sh’má, segundo a qual “Um” não deve ser entendido como um numeral, mas como representado o Todo. “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Tudo.” A cada vida que perdemos, este Tudo se subtrai, eu você, todos nós perdemos. Não pelo número, mas pela vida, pela história, pelas possibilidades que nunca mais vão acontecer.

Que na nossa viagem literária pela amplidão do Deserto do livro de baMidbar encontremos, também nós, a liberdade. A liberdade de reconhecer a verdade, a liberdade de desejar e lutar pela vida, a liberdade de continuarmos humanos e afirmarmos que dois mais dois é igual a quatro.

Shabat Shalom

[1] https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 citado em https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 

[2] Salmos 28:9

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