sexta-feira, 3 de junho de 2022

Dvar Torá: Democracia dentro e fora de casa (CIP)


Quando eu faço reuniões com famílias de bnei-mitsvá em preparação às cerimônias deles, uma das perguntas que eu faço, na tentativa de conhecer melhor o jovem sentado à minha frente, é qual sua matéria favorita na escola. Depois de dizerem “o recreio”, com inesperada frequência os jovens me dizem que gostam mesmo é de matemática. Aí eu pergunto “por que?”. Alguns dizem que é fácil ou que vão bem sem muito esforço. Mas vários me dizem que gostam de matemática pela certeza das respostas a que chegam. É como se dissessem: “na matemática, o que é, é e o que não é, não é.”

Quando eu tinha a idade deles e por muito tempo depois disso, minha matéria favorita também era a matemática. A verdade é que eu não lembro de qual era a minha motivação — mas eu era bom com números e adorava passar horas tentando resolver problemas numéricos e de lógica. E acho que o fato de conseguir encontrar a resposta certa, em oposição às inúmeras interpretações possíveis em literatura, história e geografia, me dava algum conforto também.

Hoje, eu equilibro esta certeza absoluta na mensagem exata dos números com um conceito, quase uma piada, que me foi dito na época em que eu era consultor, especialista em construir business plans, os planos de negócios desenvolvidos para avaliar a viabilidade de projetos. A pessoa me disse: construir um business plan exige que você consiga torturar os números até que confessem o que quer que você queira que eles confessem. Não é verdade que os números só contem verdades — é possível contar muitas mentiras também através dos números. É só acompanhar os comentários gerados pela divulgação dos índices econômicos ou pelos resultados das pesquisas de intenção de voto e perceber que é possível adotar narrativas bastante distintas baseadas nos mesmos números.

Eu fiquei pensando bastante nestas questões, neste ano eleitoral pelo qual estamos passando. Como os números da economia, da pandemia, do eleitorado, das contas públicas vão sendo manipulados por um lado e pelo outro para garantir que eles saiam por cima no debate eleitoral.

Fiquei pensando bastante no significado da democracia, tanto na perspectiva judaica quanto no nosso mundo secular. Em uma das passagens do Talmud que nós, rabinos liberais mais gostamos de contar, um grupo de rabinos está discutindo se um forno é casher ou não. Um deles, ao não conseguir convencer os demais de que sua opinião é a correta, recorre a todo tipo de mágica, mas os demais rabinos não mudam de opinião. De repente, uma voz dos Céus pergunta: “Por que vocês discutem com Rabí Eliezer? Ele sempre tem razão no tocante à halachá!”. Os rabinos rejeitam a intervenção Divina. Rabí Yehoshua levantou e protestou: “A Torá não está nos céus! Ela já foi entregue no Monte Sinai e nós não prestamos atenção a vozes vindas do céu, pois Você já escreveu na na Torá no Montei Sinai: ‘Siga a opinião da maioria’”. [1]

Nós gostamos desta passagem porque ela parece validar a perspectiva judaica de que, no final das contas, compete à humanidade e não ao Divino regular sua vida religiosa. E, ao mesmo tempo, não questionamos com a frequência devida o que quer dizer seguir a vontade da maioria. 

Pra começar, quem entra na contagem? Nesta semana demos início à leitura do Livro de baMidbar, que significa “No Deserto”, mas cujo nome em português é “Números”. Logo no comecinho da parashá, Deus instrui Moshé a realizar um censo de toda a população. Bom… nem de toda a população… conforme a instrução vai sendo detalhada, descobrimos que só serão incluídos na contagem homens maiores de 20 anos [2] que não pertencessem à tribo de Levi [3]. Por esses critérios, foram contados 603.550 israelitas [4] — mas as estimativas comuns dão conta de que eram na verdade 2 milhões os israelitas que saíram do Egito. Só na definição de quem entra na conta, já criamos um imenso viés… e como será que o corrigimos, mesmo que seja com 3.500 anos de atraso. Como fazemos para que as mulheres e os menores de vinte anos e aqueles que se juntaram ao povo judeu se sintam tão valorizados quanto quem entrou na conta desde o começo?

E será que qualquer coisa decidida pela maioria vale? Será que quem tem a maioria naquele momento tem o direito de decidir o que quiser sem se preocupar com quem será impactado por suas decisões?

No século 16 um rabino em Tsfat reuniu reuniu um tribunal rabínico com 25 membros para re-estabelecer a ordenação rabínica na Terra de Israel. Quando a decisão foi enviada ao rabinato de Jerusalém, ela foi recusada sob o argumento de que a opinião dos jerusalmitas não tinha sido ouvida. Nas palavras do rabino-chefe de Jerusalém na época: “Quando a maioria decide sem se aconselhar com a minoria, esta decisão não tem validade sobre todos, pois pode ser que, se a maioria tivesse ouvido os argumentos da minoria, teriam mudado sua posição.” Naquela época, o rabino de Jerusalém já reconhecia que democracia não é apenas seguir a vontade da maioria; ela implica também respeitar os direitos das minorias, sejam elas minorias numéricas, sejam elas segmentos aleijados do poder. 

O que temos feito hoje para garantir que todos os segmentos comunitários tenham direito a expressar sua opinião? Será que existem tabús, críticas, posições que não podem ser defendidas dentro da comunidade judaica porque não condizem com a vontade da maioria? Como podemos criar um ambienta mais aberto ao debate sincero que, de fato, reflita toda a diversidade comunitária?

Neste ano conturbado, no qual há tanto por decidir e tanto depende das nossas decisões, é fundamental pensar sobre a nossa democracia e garantir a inclusão de todos — com respeito e com segurança, para quem faz parte da maioria e para quem faz parte da minoria.

Shabat Shalom


[1] Talmud da Babilônia, Bava Metzia 59b
[2] Num. 1:3
[3] Num. 1:47
[4] Num. 2:32

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