quinta-feira, 24 de junho de 2021

Mudando as palavras antes de chegarem às nossas bocas

Baruch she-amar ve-haiá ha-olam”, “Abençoado é Deus, que falou e o mundo foi criado.” Esta frase, parte da liturgia de todas as manhãs, reflete a importância que a fala tem na tradição judaica. A fala tem a possibilidade de criar mundos e de transformar realidades. É o ato de falar a benção sobre as velas que estabelece o início do shabat para aquela família e é a afirmação (e aceitação) dos votos nupciais que formalizam a união do casamento; as assinaturas na ketubá simplesmente testemunham o ato estabelecido pela fala. Muitas vezes, negamos uma nova realidade até que tenhamos a coragem de verbalizá-la em voz alta e, desta forma, a reconhecemos e a aceitamos.

Ao mesmo tempo, a fala tem a capacidade de destruir mundos. No Talmud, os rabinos equiparam humilhar alguém em público a matar aquela pessoa. [1] Em Iom Kipur, entre a lista de ações pelas quais reconhecemos nossas transgressões, aquelas que cometemos através da fala têm lugar central: difamamos, acusamos falsamente, demos mau conselho, zombamos, provocamos, fizemos execração. [2]

Nas nossas vidas cotidianas, a capacidade das palavras construírem e destruírem é facilmente verificada. Não são raras as situações de crianças e jovens que são vítimas de bullying, especialmente as mais vulneráveis e que, por isso, precisam mais da nossa proteção. Em alguns destes casos, o desespero pelo assédio verbal faz com que as pessoas considerem terminar com suas vidas pois passam a duvidar do seu próprio valor. No mundo virtual, as vítimas de cyberbullying não se limitam a crianças e jovens. Aproveitando do anonimato que o espaço virtual possibilita, há quem faça da agressividade verbal sua marca registrada. Basta entrar na seção de comentários de qualquer notícia política para testemunhar que o desejo destrutivo não é monopólio de qualquer ponto do espectro político: há pessoas de todas as posições dispostas a desumanizar quem pensa diferente e somos todos culpados de legitimar comportamentos inaceitáveis de quem tem posições políticas parecidas com as nossas. Infelizmente, o mesmo acontece em muitos grupos no celular, mesmo quando conhecemos as pessoas envolvidas.

De outro lado, tampouco é raro encontrar exemplos de apoio e amor incondicional através das palavras nas postagens das redes sociais. Gente que, percebendo uma tragédia, se voluntaria para ajudar, traz palavras de carinho e de amparo, mesmo quando não conhecem pessoalmente a pessoa cuja dor tentam amenizar.

Na parashá desta semana, Balak, rei dos moabitas, contrata um feiticeiro, Bilam para amaldiçoar os israelitas. Quando ele abra a boca para dizer sua maldição, no entanto, Deus troca as palavras e ele profere bênçãos sobre os filhos de Israel. Em uma das ocasiões em que isso acontece, ele profere a bênção com a qual iniciamos nossos serviços religiosos na CIP: Ma tovu Ohalêcha, Iaacov, michkenotêcha, Israel?, “Como são boas tuas tendas, Iaacóv, tuas moradas, Israel?”. [3]

O que precisamos fazer para que as palavras destrutivas que proferimos com frequência e sem pensar: maldições, críticas destrutivas, piadas inadequadas, possam também ser substituídas por bênçãos, comentários construtivos e frases de apoio a quem mais precisa? Na história de Bilam e Balak, a transição aconteceu na boca do feiticeiro mas talvez precisemos abrir nossas mentes e nossos corações para garantir que essa mudança de conduta não seja, literalmente, “da boca para fora”. Quem sabe, ao mudar nossas palavras acabemos construir também uma nova realidade, um mundo mais acolhedor, mais plural, mais respeitoso das diferenças.

Shabat Shalom!

[1] Bava Metzia 58b
[2] Machzor Chatimá Tová, p. 39
[3] Num 24:5


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