Quando eu era pequeno, eu tinha uma babá. O nome dela era Maria, mas eu a chamava de Iaiá e o nome acabou pegando. A foto da qual eu mais me lembro dos meus primeiros anos sou eu aos dois anos dentro do mar, acho que em Santos, o barrigão pra fora, um enorme sorriso malandro no rosto — e a Iaiá no fundo, de vestido, até os joelhos dentro do mar. Nessa idade, eu dividia o quarto com o meu irmão e lá só tinham as nossas duas camas. Quando eu ficava doente, a Iaiá deitava no chão pra me colocar pra dormir e estava lá caso eu chorasse no meio da noite.
Em 1976, quando eu tinha cinco anos, passou na TV um dos maiores ícones da teledramaturgia brasileira. A novela “Escrava Isaura” contava a história de uma escrava por quem o senhor da fazenda se apaixona. Isaura era branca mas todos os outros escravos retratados na trama eram pretos; pretos assim como a Iaiá. Vendo aquela realidade e o que acontecia na minha casa, eu logo entendi qual era a regra do jogo. Fui conversar com a minha mãe e, muito sério, pedi pra ela que, quando chegasse a hora de dar a alforria pra Iaiá, ao invés disso, ela desse a Iaiá pra mim.
Eu conto essa história pra me juntar a uma série de outras figuras que se declararam “racistas em desconstrução”. Fabio Porchat, um dos criadores da iniciativa escreveu “É chocante e desconfortável, mas é a verdade. É essencial e urgente que eu diga isso antes que mais vidas sejam prejudicadas. Carrego em mim preconceitos estruturais e estou aqui pra dizer que participei dessa construção nociva, e, de forma perigosamente sutil, absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência. Não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida, mas a partir de agora eu sou um racista em desconstrução, e começo o trabalho de transformação.” [1]
Eu conto a história da Iaiá com vergonha, mas ciente de que eu preciso assumir minha história se eu quero o direito de sonhar com um país diferente. Eu conto essa história porque, apesar da minha barriga estar perigosamente parecida àquela que eu tinha aos dois anos e de gostar do sorriso malandro na foto, eu não quero mais me reconhecer na conduta daquele menino e para isso é necessário um profundo processo de t’shuvá.
A gente costumar associar t’shuvá às Grandes Festas, mas é um processo que precisa acontecer o ano todo. T’shuvá, que muitas vezes é traduzido por arrependimento, é muito mais do que isso; é um processo sobre o qual a tradição judaica se debruça com especial atenção. Na sua origem, o termo quer dizer “retorno” e representa o nosso esforço para retornarmos à melhor versão de nós mesmos, de corrigirmos nossas ações quando erramos, repararmos os erros que causamos e garantirmos que eles não voltem a acontecer. No começo de todo processo de t’shuvá está o reconhecimento do erro…
Infelizmente, essa talvez seja a parte mais difícil. Eu amava a Iaiá profundamente e o sorriso no meu rosto na foto que eu mencionei evidencia isso. Seria fácil me esconder atrás desse amor e dizer que ela era como se fosse da família, que o meu pedido para minha mãe tinha sido o jeito de uma criança de cinco anos expressar seu amor pela babá. É bem possível que fosse isso mesmo, mas era também resultado do racismo estrutural em que vivemos e no qual eu fui criado, em que aquela moça preta que morava na minha casa era sujeitada constantemente, inclusive por mim e pela minha família, ao preconceito naturalizado pela nossa cultura.
O primeiro passo para reconhecer o erro é parar de dizer que a Iaiá era parte da família, porque ela não era. Quando íamos jantar fora, ela não ia; quando viajávamos, ela só era convidada se fosse para tomar conta de mim; quando eu ia soprar a velinha do bolo de aniversário, ela nunca esteve lá na frente, junto com meu pai e minha mãe. A Iaiá era uma babá querida, cuja subjetividade foi muitas vezes negada, que foi objetificada, mas esses erros nunca foram reconhecidos sob a desculpa de que ela “era quase da família”.
Sim, eu sou um racista em desconstrução, tentando iluminar os aspectos da minha biografia dos quais não me orgulho para poder lidar com eles.
O patriarca Iaacov tem uma história parecida. Seu nome ao nascer, Iaacov, numa tradução livre, quer dizer “enganador”. Iaacov (יעקב) vem de ekev (עקב), “calcanhar”, porque ele nasceu agarrando o calcanhar de seu irmão gêmeo na tentativa de passar na frente na hora do parto e ser o filho primogênito. Iaacov só deu um prato de ensopado de lentilhas para seu irmão faminto quando ele prometeu lhe entregar em troca seu direito à primogenitura; Iaacov enganou seu pai e se fez passar pelo irmão para receber a benção que era destinada ao outro; quando Iaacov sonhou com os anjos subindo e descendo uma escada, ele acordou e tentou fazer uma barganha com Deus: “se Deus estiver comigo e me proteger no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então ה׳ será o meu Deus.” [2] Relacionamentos não eram o forte do nosso patriarca e ele avaliava toda pessoa que encontrava de acordo com a utilidade que tinha para seu plano.
Depois de passar 20 anos fugindo da ira do seu irmão, Iaacov resolveu enfrentar seus erros e voltar para a terra dos seus pais. Seu amadurecimento parece evidente na forma como ele fala com Deus no comecinho da nossa parashá:
קָטֹנְתִּי מִכֹּל הַחֲסָדִים וּמִכָּל־הָאֱמֶת אֲשֶׁר עָשִׂיתָ אֶת־עַבְדֶּךָ
כִּי בְמַקְלִי עָבַרְתִּי אֶת־הַיַּרְדֵּן הַזֶּה
וְעַתָּה הָיִיתִי לִשְׁנֵי מַחֲנוֹת׃
Eu não mereço os favores nem a bondade com que Você tratou teu servo.
Quando atravessei este Jordão, eu tinha apenas um bastão,
agora possuo dois acampamentos. [3]
O processo de amadurecimento de Iaacov é endereçado de forma mais enigmática alguns parágrafos depois. Iaacov está sozinho ao lado de um rio quando um homem aparece e os dois brigam durante toda a noite. Quando o Sol começa a nascer, Iaacov pede uma benção ao sujeito, que vem na forma de uma troca de nome. “Seu nome não será mais Iaacov, mas Israel, pois você lutou com Deus e com homens e prevalesceu.” Mesmo tendo sobrevivido, Iaacov saiu desta luta machucado na perna e passou a andar mancando a partir de então. [4]
A tradição tem tentado há séculos encontrar algum sentido nessa história. Alguns comentaristas acreditaram que Iaacov lutou com o anjo da guarda de Essav, seu irmão [5]. Outros, optaram por analisar o texto como se fosse um sonho, usando uma abordagem psicanalítica. Nesta visão, o oponente é simultaneamente Essav, Itzchak e Deus, pessoas que Iaacov feriu durante sua vida e com as quais ele se reconcilia por meio da interação com o “homem” [6].
Em um texto que eu escrevi no primeiro ano da minha educação rabínica, eu disse o seguinte: