sexta-feira, 26 de maio de 2023

Dvar Torá: A entrega da Torá vai muito além da entrega das Tábuas (CIP)


Alguém sabe qual a palavra do ano de 2022?

Quem respondeu a minha pergunta com outra pergunta, “de acordo com quem?” ganhou alguns pontinhos… Eu fui pesquisar o assunto e descobri uma enormidade de listas em várias línguas que tentam expressar em uma palavra o espírito geral da sociedade naquele ano. Aparentemente, tudo começou em 1972, quando a Sociedade para a Língua Alemã publicou a palavra do ano de 1971, o ano em que eu nasci. Para surpresa de todos, a palavra escolhida não foi “Rogério”, mas chegou bem perto. “Aufmüpfig”, a palavra escolhida, é traduzida como “rebelde” ou “insubordinado”.

Em português, existem, pelo menos, duas listas: uma organizada em Portugal e outra no Brasil, que vem sendo compilada desde 2016. Indo pela escolha de cada ano, vamos vendo como os ventos estão soprando e mudando de direção nos últimos sete anos. Veja a sequência desde 2016 até 2022: indignação, corrupção, mudança, dificuldades, luto, vacina e esperança. Nas listas em inglês, há uma predileção por palavras recém-criadas ou cujo uso ganhou novo significado. Em 2015, a palavra do ano escolhida pelo dicionário Oxford foi o emoji de uma pessoa chorando de rir, em 2016 foi “pós-verdade”, e em 2017 foi “youthquake”, uma mistura de “youth”/ “juventude” e “earthquake” / “terremoto” para indicar uma mudança na sociedade ou na cultura em resposta às demandas das pessoas mais jovens.

O que eu tinha ido procurar nessas listas e acabei não encontrando era a palavra “narrativa”, que apesar de não ser nova me parece que ganhou grande destaque nos últimos dez ou vinte anos. Quando eu procurei “narrativa” no dicionário, no Aurélio (1999) aparecia:

1 - A maneira de narrar.

2 - Narração.

3 - Conto, história.

Mas o significado no qual eu estava pensando para “narrativa” não era nenhum destes. Fui procurar em um dicionário em inglês (Oxford, 2021):

1 - um relato falado ou escrito de eventos relacionados; uma história.

2 - a parte ou partes narradas de uma obra literária, distintas do diálogo.

3 - a prática ou arte de contar histórias.

4 - uma representação de uma situação ou processo particular de forma a refletir ou estar em conformidade com um conjunto abrangente de objetivos ou valores.

Era esta última que eu estava buscando: “narrativa” como a perspectiva específica que damos ao que estamos apresentando, em sintonia com um conjunto de objetivos e valores. Se a palavra “narrativa” não apareceu em nenhuma lista de palavra do ano, a expressão “disputa de narrativas” certamente deveria ter aparecido — nós a vivemos em inúmeros aspectos das nossas vidas. Pensem em como se conta sobre a Guerra da Ucrânia no Ocidente e nos países aliados de Moscou, sobre o processo que tirou Dilma da presidência, se um único jogo disputado entre representantes de dois continentes apenas pode ser considerado campeonato mundial, sobre casais que se separam ou sobre quase toda briga. Há até um ditado que diz que para todo evento sempre há três lado: o de quem conta, o de sobre quem se conta, e a verdade. Definição perfeita de “disputa de narrativas.”

Estamos em Shavuot, a festa que, de acordo com a narrativa rabínica, comemora a entrega da Torá no Monte Sinai. É aqui que o consenso acaba e começa a disputa de narrativas….

O que exatamente foi entregue no Monte Sinai? Os Rabinos se esforçaram para que a palavra Torá fosse tão ambígua quanto possível. De um lado, “Torá” são os cinco livros que Moshé entregou ao povo de Israel: בראשית, שמות, ויקרא, במדבר, דברים, , Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Além disso, “Torá” pode significar também todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, e seus 39 livros. Mais do que isso, Torá pode significar toda a literatura rabínica, tanto a Torá escrita quanto a Torá Oral. Há um midrash de acordo com o qual até mesmo uma nova interpretação dita por um aluno esforçado ao seu professor nos dias de hoje já foi revelada por Deus a Moshé no Monte Sinai. [1]

Qual então o significado da palavra “Torá” quando dizemos que a “Torá” foi entregue no Monte Sinai? Foram as Dez Afirmações? Foram as Leis de acordo com as quais um povo recém-libertado deveria se comportar? Foram os valores contidos, não apenas nas leis, mas principalmente nas histórias que lemos na Torá? Foi a tradição rabínica do estudo e do debate, do questionamento incessante a todo momento?

O que nós celebramos hoje quando celebramos o recebimento da Torá em Shavuot? Na dinâmica conhecida dos conflitos de narrativas, este é um tema em debate. 

Há bastante gente, mesmo no mundo judaico liberal, que defende e ensina que Shavuot é a data do recebimento das leis. Ponto. De acordo com essa narrativa, o ponto central da prática judaica é o respeito estrito à halachá, a lei judaica, e, portanto, é seu recebimento que marcamos em Shavuot. Eu não sei quanto a vocês, mas as leis que governam a minha rotina não vêm da Torá — vêm de dois mil anos de tradição rabínica de encontro, duelo e questionamento com a Torá. Meu relacionamento com a Torá e com as inúmeras leis que, de fato, fazem parte do seu texto, não é fundamentalista, não é literal. Portanto, se Chag Matán Torá, a festa da Entrega da Torá, tem a ver só com a entrega das Leis, eu teria pouco o que comemorar.

O que eu descubro na Torá, muito além das Leis, são narrativas que me permitem encontrar o Divino, em disputa e em dança, com carinho e com tensão, na companhia de 2.000 anos de debates, interpretações, comentários que buscam a forma de viver a relação com o Divino nas ações mais prosaicas, no trocar a fralda de um bebê, no comer a fruta da estação, na declaração do Imposto de Renda que eu ainda não terminei. 

Para mim, Shavuot é a data de celebrar este encontro verdadeiro entre judeus e  seus judaísmos, assim no plural, e eu reconheço que este também é um ponto de vista, uma narrativa, em conflito com aquela outra. E provavelmente, hajam outras narrativas que discordam dessas duas e junto com as quais compõem um quadro de múltiplas perspectivas contraditórias, mas não por isso menos verdadeiras. Nada mais judaico!

Chag Sameach!




 

[1] Vaicrá Rabá, Acharei Mot 22:1

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Entre os números e a Verdade



São bastante frequentes as situações em que pessoas, adultos, jovens e crianças, me perguntam se acredito na veracidade da Torá como documento histórico: você acredita que o mundo foi criado em seis dias? Acredita que o mar se abriu na saída dos Hebreus, conforme descrito na Torá? Acha que a entrega da Torá aconteceu exatamente como está escrito?


Para alguns aspectos desta pergunta, especialmente para os quais a ciência oferece claras respostas, existe algum consenso dentro do mundo judaico liberal de que podemos entender as palavras da Torá de forma metafórica e que seu objetivo não é converter-se em um manual de ciências. Há alguns anos, tive a oportunidade de participar de uma conversa com o renomado físico brasileiro Marcelo Gleiser, onde estas questões foram endereçadas. [1]


Há outras questões, no entanto, para as quais as respostas da ciência não são tão claras e veementes – elas podem até apontar para a falta de evidências arqueológicas para histórias da Torá, mas isso não necessariamente indica que essas histórias não aconteceram como estão escritas lá. O arqueólogo Eric Cline escreveu a este respeito na história do Êxodo: “Não temos um único fragmento de evidência até o momento. Não há nada [disponível] arqueologicamente para atestar qualquer coisa da história bíblica. Não para as pragas, não para a abertura do Mar Vermelho, não para o maná do céu, não para o vagar por 40 anos. No entanto, devo acrescentar que também não há evidências arqueológicas que provem que não ocorreu. Portanto, neste momento, o registro arqueológico não pode ser usado para confirmar nem negar a existência do Êxodo.” [2]


Nestes casos nos quais a falta de evidências arqueológicas pode apontar para qualquer lado, questionar a narrativa bíblica pode tornar-se bastante polêmico. Há pouco mais de vinte anos, David Wolpe, que já era o rabino sênior do Sinai Temple, uma das maiores e mais antigas sinagogas de Los Angeles, proferiu uma prédica na qual afirmava que a história da saída dos hebreus do Egito como descrita na Torá, provavelmente, não era precisa. “A verdade é que praticamente todos os arqueólogos modernos que investigaram a história do Êxodo, com pouquíssimas exceções, concordam que a maneira como a Bíblia descreve o Êxodo não é como aconteceu, se é que aconteceu”, ele disse. A prédica causou tanto alvoroço entre quem acredita na literalidade histórica do texto da Torá que chegou até as páginas do Los Angeles Times [3].


Na parashá desta semana, baMidbar, temos uma passagem sobre o Êxodo que também tem confundido os comentaristas medievais e contemporâneos. De acordo com o texto, de acordo com um censo dos israelitas, foram contados 603.550 homens em idade de combate [4] indicando, de acordo com os especialistas, que  uma população total de 2 milhões de israelitas teria saído do Egito. A ideia de uma população semelhante à de Curitiba deslocando-se pelo deserto sem ter deixado imensos vestígios arqueológicos coloca em cheque a veracidade destes números. Além disso, o texto também fala em 22.273 primogênitos homens com idade acima de um mês de idade [5]. Considerando que o número de mulheres primogênitas fosse igual ao de homens, a relação entre os primogênitos e a população total apontaria para um primogênito (homem ou mulher) a cada 45 pessoas, o que não parece razoável. 


Frente a essas discrepâncias, muitas pessoas passaram a rejeitar completamente a veracidade histórica do Êxodo do Egito, assim como o rabino Wolpe havia afirmado em sua prédica. “A conclusão de que o Êxodo não aconteceu no tempo e da forma descrita na Bíblia parece irrefutável (...)” afirmaram Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman em uma best seller que investigou a arqueologia bíblica. [6] 


Mais recentemente, no entanto, renomados autores têm revisitado a questão de forma menos categórica e afirmado que aceitar a narrativa bíblica como uma descrição exata dos eventos históricos ou rejeitá-la categoricamente não são as únicas alternativas possíveis. Avraham Faust, por exemplo, afirma que “Embora haja um consenso entre os estudiosos de que o Êxodo não ocorreu da maneira descrita na Bíblia, surpreendentemente, a maioria dos estudiosos concorda que a narrativa tem um núcleo histórico e que alguns dos colonos das terras altas vieram, de uma forma ou de outra, do Egito.” [7] Mesmo nos questionamentos mencionados acima, a afirmação é de que o Êxodo não teria acontecido da forma descrita na Torá, e não que ele não teria acontecido de forma alguma.


No artigo do Los Angeles Times publicado após a prédica do rabino Wolpe, o jornalista afirma que “o consenso acadêmico parece ser que a história é uma mistura brilhante de mito, memórias culturais e núcleos de verdade histórica (...) Quaisquer que sejam os fatos da história, esses valores centrais perduraram e inspiraram o mundo por mais de três milênios - e isso, muitos dizem, é o ponto central.” De fato, a história da redenção dos israelitas do Egito tem dado esperança a pessoas em situação de opressão e inspirado movimentos de libertação ao longo dos últimos dois mil anos; a mensagem de proteção ao estrangeiro e às demais vítimas da opressão se transformou em um dos aspectos centrais da mensagem religiosa judaica; a idéia de que cada um de nós precisa examinar suas atitudes para que não se transforme em um faraó dos nossos dias é uma lição importante que aprendemos destes textos, ao lê-los no nosso contexto.


Ellie Wiesel, famosamente afirmou que “há eventos que aconteceram e não são verdadeiros; outros, são, ainda que nunca tenham acontecido”. Que consigamos realmente aprender e incorporar as verdades e as lições religiosas da Saída do Egito, ainda que os números e os detalhes não sejam exatamente como descritos no texto.


Shabat Shalom,


Rabino Rogério Cukierman




[1] https://bit.ly/41Vhb8J

[2] Conforme citado por Richard Elliott Friedman. “The Exodus” (2017), p. 33/424

[3] https://bit.ly/3WjJP2v

[4] Núm. 2:32

[5] Núm. 3:43

[6] Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, “The Bible Unearthed” (2002), p. 63.

[7] Avraham Faust, “The Emergence of Iron Age Israel: On Origins and Habitus”, p. 476.


sexta-feira, 5 de maio de 2023

Dvar Torá: O que desqualifica para a liderança hoje em dia? (CIP)


Minha prédica de hoje está em diálogo com os temas que a rabina Tati desenvolveu no comentário dela [1], por isso eu recomendo fortemente que as pessoas leiam-no quando puderem para enriquecer a conversa que estamos estabelecendo.

No seu comentário, a rabina Tati trata de uma passagem particularmente problemática da parashá desta semana:

ה׳ falou a Moshé: Fale com Aharón e lhe diga: Nenhum homem da tua descendência em todos os tempos que tiver um defeito será qualificado para oferecer a comida de seu Deus. Ninguém que tenha um defeito será qualificado: nenhum homem que seja cego, ou coxo, ou tenha um membro muito curto ou muito longo; nenhum homem que tenha uma perna quebrada ou um braço quebrado; ou que seja corcunda, ou anão, ou que tenha uma protuberância no olho, ou que tenha cicatriz de furúnculo, ou inflamação das gengivas ou testículos esmagados. Nenhum homem entre os descendentes de Aharón, o sacerdote, que tiver um defeito será qualificado para oferecer a oferta queimada de ה׳; tendo defeito, não poderá oferecer o alimento de seu Deus. Ele pode comer do alimento de seu Deus, tanto do santíssimo quanto do santo; mas não entrará atrás da cortina nem se aproximará do altar, porque tem defeito. Ele não profanará estes lugares sagrados para mim, pois eu ה׳ os santifiquei. [2]

A rabina Tati, incomodada com o teor do texto, um incômodo do qual eu compartilho, pergunta: “Assim fala Deus dos Seus filhos? Pode Deus ser preconceituoso? Não somos todos criados à Sua imagem e semelhança? O amor divino não é incondicional? Somos só aquilo o que se vê? Moshé tinha dificuldade na fala e ninguém esteve mais perto da presença divina do que ele.” 

O incômodo não é apenas dos rabinos desta geração. Ainda que o tom da crítica seja mais ameno e que tenhamos que ler nas entrelinhas, percebam como a seguinte história talmúdica oferece uma critica incisiva das regras estabelecidas na nossa parashá: 

Rabi Elazar, filho de Rabi Shimon, veio de Migdal Gedor, da casa de seu rabino, e ele estava montado em um burro e passeando na margem do rio. E ele estava muito feliz, e sua cabeça estava inchada de orgulho porque ele havia estudado muito a Torá. Ele se deparou com uma pessoa extremamente feia, que lhe disse: ‘Saudações a você, meu rabino’, mas o rabino Elazar não retornou sua saudação. Em vez disso, Rabi Elazar disse a ele: ‘Pessoa sem valor, quão feio é aquele homem. Todas as pessoas da sua cidade são tão feias quanto você?’ O homem disse a ele: ‘Eu não sei, mas você deveria ir e dizer ao Artesão que me fez: Quão feio é o vaso que você fez’. Quando Rabi Elazar percebeu que havia pecado, desceu de seu burro e prostrou-se diante dele, e disse ao homem: ‘Pequei contra você; me perdoe.’ O homem lhe disse: ‘Não te perdoarei até que você vá ao Artesão que me fez e diga: Que feio é o vaso que Você fez.’ Ele caminhou atrás do homem, tentando apaziguá-lo, até chegarem à cidade. O povo de sua cidade saiu para cumprimentá-lo, dizendo-lhe: ‘Saudações a você, meu rabino, meu rabino, meu mestre, meu mestre.’ O homem disse a eles: ‘Quem vocês estão chamando de meu rabino, meu rabino?’ Disseram-lhe: ‘A este homem, que caminha atrás de você.’ Ele lhes disse: ‘Se este homem é um rabino, que não haja muitos como ele entre o povo judeu.’ Eles lhe perguntaram: ‘Por que você diz isso?’ Ele disse a eles: Ele fez isso e aquilo comigo. Eles disseram a ele: ‘Mesmo assim, perdoe-o, pois ele é um grande estudioso da Torá.’ Ele lhes disse: ‘Por causa de vocês eu o perdôo, contanto que ele não se acostume a se comportar assim.’ [3]

Está estabelecido, então, que tanto para os rabinos de hoje como para os rabinos do Talmud, uma pessoa não deve ser julgada pela sua aparência física. A rabina Julia Watts Belser, no entanto, destaca que os rabinos do Talmud mudaram o foco das exclusões mas não acabaram com elas: daqueles que tinham alguma deficiência física para aqueles que tinham dificuldade de compreensão ou discernimento. Ela escreve: “Os sábios temiam e estigmatizavam a surdez, deficiências da fala, deficiências intelectuais e cognitivas, que eles percebiam como algo que tornava uma pessoa incapaz de participar do sistema de santidade que eles criaram.” [4] Seu ponto é que cada geração estabelece um padrão de acordo com o qual suas lideranças são validadas — na época bíblica, era a capacidade e perfeição físicas, na época do Talmud, a capacidade intelectual e de articulação oral.

Em nossos dias, aprendemos que esses atributos não são nem necessários, nem suficientes. Conhecemos líderes com atributos físicos impecáveis ou com dons de oratória invejáveis cuja capacidade de liderança ou cujo comportamento ético nos desapontaram de forma profunda. Ao mesmo tempo, passamos a reconhecer a capacidade de liderança de pessoas que, de acordo com estes parâmetros adotados no passado, teriam sido desconsideradas, pessoas cujas imperfeições são óbvias e salientes — e cujas qualidades são igualmente óbvias e salientes.

No seu comentário, a rabina Tati menciona Moshé, cuja dificuldade na fala não o impediu de se tornar um dos maiores líderes do povo judeu. Em nossos tempos, penso em Stephen Hawking, cuja fragilidade física não preveniu que ele fosse reconhecido como uma referência fundamental na física teórica, e em Greta Thunberg, um exemplo de jovem ativista, que se descreve tanto como como uma ativista ambiental quanto como uma ativista pelos direitos dos autistas. Ela disse: “Fui diagnosticada com síndrome de Asperger, TOC e mutismo seletivo. Isso basicamente significa que só falo quando acho necessário. Agora é um desses momentos.” [5]

Estes são apenas dois exemplos. Pelos parâmetros antigos, teríamos perdido suas imensas contribuições — será que hoje temos novos parâmetros pelos quais julgamos e validamos as contribuições de nossas lideranças?

Não é uma discussão nova: será que líderes — em qualquer ramo de atividade — devem ser julgados apenas pela qualidade do seu trabalho ou há parâmetros mais amplos que devem ser considerados?

Recentemente, um movimento de protesto de torcedores e, especialmente de torcedoras, do Corinthians levou Cuca, o técnico que tinha sido recém contratado, a pedir demissão menos de uma semana depois de aceitar o cargo. O protesto das torcedoras vinha do fato de que ele foi condenado pela Justiça suíça na década de 1980 pelo estupro de uma menina de 13 anos e nunca chegou a cumprir sua pena. [6] Uma falha técnica ética desta proporção justifica o “cancelamento” (para usar um termo da moda) de um técnico premiado, cujo talento não é questionado por quase ninguém?

No mundo rabínico, temos exemplos similares, mas cujas consequências foram muito distintas. Shlomo Carlebach era um rabino que navegava entre a ortodoxia Chabad e o mundo Renewal. Autor de algumas melodias mais cativantes da liturgia judaica, inclusive de músicas que cantamos aqui no Cabalat Shabat da CIP. Quando eu cheguei aos Estados Unidos para estudar, em 2005, já escutávamos acusações de assédio sexual contra ele. Após o início do movimento #metoo, ganhou força o fluxo de mulheres que o acusavam. Uma pessoa pesquisando o assunto contou mais de 15 mulheres que diziam ter sido vítimas de abuso sexual por parte do Carlebach. [7] Ao mesmo tempo, enquanto boa parte da Ortodoxia rejeita o canto de mulheres, especialmente na sinagoga, Shlomo Carlebach encorajou muitas mulheres a cantarem na bimá e ordenou mulheres rabinas muito antes de outros setores da Ortodoxia. Sua filha, Neshama Carlebach, uma renomada cantora e compositora, em resposta às acusações, escreveu um artigo que ela começa da seguinte forma: 

Minhas amigas, venho humildemente perante vocês. Sou grata por ter o privilégio de compartilhar o que espero que seja uma contribuição para a conversa que estamos travando neste momento de transformação. Reconheço que quem eu sou - meu próprio nome - pode dificultar o recebimento de qualquer coisa que eu queira oferecer. Ainda assim, nossa tradição nos ensina que silêncio é consentimento, e não posso ficar calado diante de tanta dor. Minhas irmãs, eu ouço vocês. Eu choro com vocês. Eu ando com vocês. Estarei com vocês até o dia em que o mundo se comprometer com a cura e a integridade para todas, para as inúmeras mulheres que sofreram os males do assédio e da agressão sexual. [8]

Em outros trechos do artigo, ela escreveu: “Eu vi a música do meu pai curar a vida de alguém diante dos meus olhos e li sobre como essa mesma música desencadeou uma dor profunda em outras pessoas. (…) Aceito a plenitude de quem meu pai era, com falhas e tudo. Estou com raiva dele. E me recuso a ver seus defeitos como a totalidade de quem ele era.” Há sinagogas que se recusam a cantar melodias escritas por Carlebach; há outras que as usam sem atribuir autoria e há também que prefira não misturar a qualidade da obra com as imperfeições do seu criador. A Central Synagogue de Nova York estabeleceu uma moratória de um ano no qual não tocaram qualquer melodia composta por Shlomo Carlebach; ao final deste período, convidaram Neshama Carlebach, que passou a ser o destino de críticas e de boicotes pelas ações de seu pai, para cantar, junto com o chazán da sinagoga, uma melodia escrita pelo pai.

Quais são nossos parâmetros para validar nossos líderes? Em algum momento, aqui em São Paulo “rouba mas faz” era o epíteto pelo qual conhecíamos um político no qual muitos nos recusávamos a votar. Hoje, a mesma frase é usada sem qualquer pudor para classificar em quem votamos. No mundo corporativo e nas nossas referências culturais, a genialidade é frequentemente acompanhada de características indesejadas, de um ego hipertrofiado, de arrogância e de agressividade no trato inter-pessoal, atributos que são “aceitos” como o preço a ser pago pela genialidade. Há parâmetros capazes de desqualificar uma conduta mesmo que o executivo traga grande lucro para sua companhia, que o artista seja brilhante ou que o médico consiga tratar situações clínicas em que outros teriam falhado? 

Somos todos pessoas imperfeitas, cheias de defeitos, alguns que apenas nós mesmos conhecemos. Algumas das nossas falhas atrapalham a nós mesmos, podem até incomodar a outras pessoas, mas não as degradam, não as desumanizam, não lhes causam traumas profundos. E há falhas éticas e morais cujas enormes consequências recaem sobre os outros e têm impactos que, muitas vezes, nem conseguimos estimar.

Em tempos bíblicos, a falta de perfeição física desqualificava para o exercício de liderança. Na época do Talmud, era a falta de perfeição intelectual e cognitiva que fazia este papel. Hoje, rejeitamos estes parâmetros como flagrantes violações da ideia central do judaísmo de que somos todos criados à imagem Divina, dotados de uma dignidade inalienável. Precisamos, no entanto, de novos parâmetros para que alguém possa acessar posições de liderança. 

Chegamos à época em que profundas falhas de caráter e violações éticas não devem mais ser toleradas como justificáveis, nem mesmo para pessoas cujas contribuições em seus campos de atuação sejam imensas. É hora de dizer “דַּי”, "dai", “basta”, e começarmos a verdadeiramente valorizar o comportamento decente, respeitoso, humano e construtivo.

Shabat Shalom 

 

[1] https://cip.org.br/abracar-as-diferencas-e-se-comprometer-com-a-inclusao-parashat-emor/

[2] Lev. 21:16-23.

[3] Talmud Bavli Taanit 20

[4] Julia Watts Belser, “Reading Talmudic Bodies: Disability, Narrative, and the Gaze in Rabbinic Judaism”, p. 9-10

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Greta_Thunberg

[6] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/04/28/sentenca-que-condenou-cuca-por-ato-sexual-com-menor-ha-34-anos-e-confirmada.ghtml

[7] https://www.timesofisrael.com/after-metoo-some-congregations-weigh-changing-their-tune-on-shlomo-carlebach/

[8] https://blogs.timesofisrael.com/my-sisters-i-hear-you/






quinta-feira, 20 de abril de 2023

Porque gravidez não é doença, nem fonte de impurezas


Não foram raras as vezes em que ouvi pessoas estabelecendo uma relação entre a palavra hebraica para “compaixão”, rachamim, e a palavra para “útero”, réchem, e, a partir daí, comentarem que o Divino não tem gênero, incorporando aspectos masculinos (como o poder, guevurá, e o julgamento, din) e femininos (como a compaixão, rachamim). Deixando de lado o essencialismo que considera o poder e a justiça atributos inerentemente masculinos, enquanto a compaixão seria uma qualidade inerentemente feminina, poderíamos considerar que a tradição judaica teria uma visão positiva da maternidade e da capacidade de gerir outra vida dentro de seu próprio corpo.


Em algumas passagens bíblicas, claramente, esta expectativa é confirmada. Em Isaías 66:13, por exemplo, Deus se apresenta como uma mãe para o povo judeu, afirmando “Como uma mãe consola seu filho, assim eu os consolarei; Você encontrará conforto em Jerusalém”. 


Em outras passagens da Torá, no entanto, a maternidade é vista de forma crítica. Quando o fruto proibido é comido, o castigo da mulher é expresso desta forma: “Duplicarei e reduplicarei as dores da sua gestação; você dará a luz com dor, contudo seu desejo será para o seu homem e ele governará sobre você.” [1] Ao invés de ser vista como um momento maravilhoso no qual nova vida está sendo criada, a gestação é apresentada neste texto como um evento doloroso, em particular o culminar deste processo, o parto.


Na parashá-dupla desta semana, Tazría-Metsorá, a questão da maternidade volta a ser endereçada sem que a maravilha da gestação da vida seja reconhecida. Pelo contrário: o tom das instruções relaciona a participação feminina no processo reprodutivo como uma fonte de impurezas e culpa. De um lado, temos questões relativas ao estado de impureza ritual de mulheres durante o seu fluxo menstrual (e nos dias subsequentes) [2], parte indissociável do processo reprodutivo. De outro lado, o tratamento dado a parturientes, novamente as relaciona à impureza ritual, indicando o número de dias que elas devem permanecer isoladas de objetos rituais, a depender de se o bebê tiver sido um menino ou uma menina. Além disso, ao final do período elas deviam oferecer um sacrifício de chatáat, uma oferta pela purificação de uma transgressão. [3] Com a destruição do Templo no ano 70 EC e o decorrente abandono dos sacrifícios animais pelo judaísmo rabínico, estas práticas perderam a relevância mas a visão que enxerga na gravidez e no parto obstáculos que representam perigos e desafios ainda se mantém em práticas judaicas contemporâneas. Ainda hoje, muitos sidurim e rabinos indicam que uma mulher que acabou de dar à luz deve dizer bircat hagomêl, a benção que alguém diz depois de ter passado por uma doença séria ou por uma cirurgia. 


É necessário e urgente que tenhamos a coragem de olhar criticamente para estes textos e para estas práticas. A rabina e teóloga Rachel Adler, a respeito das passagens nesta parashá-dupla escreveu “Sagrado não precisa significar inerrante; basta que o sagrado seja inesgotável. Nas profundezas da Tua Torá, eu procuro Você, Eheyeh, criador de um mundo de sangue. Rasgo a Tua Torá verso a verso, até que esteja quebrada e sangrando assim como eu." [4]


Gravidez não é doença. O ciclo reprodutivo feminino não é fonte de impurezas. Ainda que hajam riscos envolvidos na gravidez e no parto, estes são momentos a serem desfrutados e celebrados, situações em que a parceria entre Deus e humanos se torna clara e visível [5] e nossas práticas rituais devem refletir esta postura de estarmos maravilhados e incrivelmente felizes quando uma criança nasce. 


Que neste shabat possamos nos alegrar e maravilhar com a vida e com uma tradição religiosa que nos surpreende e nos provoca e na qual o questionamento e inovação não são apenas aceitos, são também valorizados.  




[1] Gen. 3:16

[2] Lev. 16:19-26

[3] Lev. 12:1-8

[4] Lifecycles 2: Jewish Women on Biblical Themes in Contemporary Life, , p. 206

[5] Veja, por exemplo, BT Nidá 31a



sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


quinta-feira, 30 de março de 2023

Da palavras, símbolos e resistência


Vários anos atrás, fui visitar um templo religioso na região de Chicago, onde me assustei ao encontrar um desenho muito parecido com uma suástica encravado em suas paredes. Ao questionar a pessoa que guiava nossa visita pelo espaço, fui informado de que aquele desenho já era um símbolo religioso muito antes de ser apropriado pelos nazistas como a marca de seu partido. Ainda que eu compreendesse a lógica explicada pelo guia, era difícil entender como naquele edifício, cuja construção tinha sido completada em 1953, o significado mais difundido que aquele símbolo tinha ganhado no século XX, ofensivo como era a milhões de pessoas, não tivesse sido levado em conta para que ele não fosse adotado na decoração das paredes.


Assim como os símbolos gráficos, as palavras também podem ganhar vida própria, como bem atestam os poetas. Palavras são muitas vezes escolhidas em alguns contextos pelos duplos significados que possuem, levando a situações cômicas, ou são evitadas exatamente porque podem ter seu significado mal interpretado.


A parashá desta semana, Tsáv, retorna ao tema dos sacrifícios animais, seus contextos e regras. Um dos tipos de sacrifícios oferecidos a Deus era a “olá”, na qual um animal era inteiramente queimado no altar. A tradução adotada para este termo para o grego foi “holokauston”, um conceito que já era conhecido de religiões helenísticas e que significava queima (kaustos) completa (holos) e que foi traduzido para o português como “holocausto”. 


No final do século XIX, a palavra “holocausto” passou a ser usada pela imprensa norte-americana para designar massacres de imensas proporções, como o genocídio armênio de 1915-1917. Ao final da Segunda Guerra, quando a dimensão total das atrocidades nazistas começou a ser revelada, “Holocausto” (agora escrita com inicial maiúscula e muitas vezes precedida pelo artigo definido “O”) passou muitas vezes a designar o quase-extermínio da população judaica da Europa, com o assassinato brutal e sistemático de 6 milhões de pessoas.


Assim como eu me assustei ao encontrar uma suástica em um templo religioso, muitas pessoas se assustam ao encontrar o termo “holocausto” em uma tradução da Torá, em particular em referência a uma prática religiosa. O assassinato sistemático de seres humanos e o descarte de seus corpos em fornos crematórios é a antítese da busca de relacionamento com o Divino – de tal forma, que muitos são os que rejeitam o termo “holocausto” para tratar deste trágico evento da história mundial e judaica. Entre os termos sugeridos como alternativa, “Shoá”, um termo bíblico que significa “catástrofe” acabou se transformando no termo adotado preferencialmente no mundo judaico para tratar destes eventos.


Enquanto a Shoá ainda estava em curso, um grupo de jovens militantes dos movimentos juvenis judaico-sionistas lideraram um levante contra as forças nazistas que esvaziavam o Gueto de Varsóvia e enviavam seus residentes para Campos de Extermínio. Na véspera de Pessach de 1943, que neste ano cairá na próxima quarta-feira (05/04), quando as forças da SS entraram no Gueto, se viram atacadas por combatentes judeus, que foram capazes de manter o combate por quase dois meses, constituindo um imenso ato de resistência frente a um exército em muito maior número, melhor treinado e com armamentos muito mais poderosos. Ao comentar o significado do Levante, um dos seus líderes, Itschak Cukierman, afirmou: 


“Não creio que seja realmente necessário analisar a Revolta em termos militares. Esta foi uma guerra de menos de mil pessoas contra um poderoso exército e ninguém duvidou de como seria. Este não é um assunto para estudar na escola militar. (...) Se existe uma escola para estudar o espírito humano, este deveria ser um grande tema de estudo. As coisas importantes eram inerentes à força demonstrada pela juventude judaica após anos de degradação, para se levantar contra seus destruidores e determinar qual morte escolheriam: Treblinka ou Revolta.” [1]


Neste ano, em que o Levante do Gueto de Varsóvia comemora 80 anos, a CIP homenageará sua história no Cabalat Shabat de 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.


Que neste shabat, possamos recuperar a força das palavras, dos símbolos e o controle sobre as nossas próprias histórias, valorizar a vida e a resistência em sua defesa. 


Shabat Shalom.



[1] http://bit.ly/3KkxwOO