domingo, 17 de setembro de 2023

Dvar Torá: Confortando quem está perturbado; perturbando quem está confortável. Rosh haShaná 5784 (CIP)

 

Esses dias saiu na imprensa que a prefeitura quer desativar sua rede de trólebus, que custa demais para ser mantida, com uma frota bastante reduzida [1]. Eu ainda lembro de quando ia de Higienópolis para a Hebraica de trólebus, que eu pegava na rua Augusta, não muito longe daqui — e já naquele tempo a viagem, muito mais silenciosa que em um ônibus normal, era muitas vezes interrompida porque as hastes do veículo se soltavam dos cabos elétricos. Meus filhos adolescentes não têm ideia do que seja trólebus e a verdade é que mesmo de ônibus e de metrô eles andaram muito menos do que eu tinha na idade deles… mas essa é a dinâmica do progresso. O mundo vai mudando e nem sempre as novas gerações entendem como tudo funcionava em outros tempos. Quando eu comecei a andar de ônibus para voltar da escola, no começo da minha adolescência, já não circulavam mais os bondes, por exemplo. Hoje, talvez, os cariocas vivam o renascimento do bonde, rebatizado de VLT, Veículo Leve sobre Trilhos, mas eu prefiro chamá-lo pelo seu nome original. De onde veio a palavra “bonde”, que em nada se relaciona à forma como esse veículo é chamado em outras línguas? Diz a lenda [2] que na década de 1870, esse tipo de veículo era puxado por animais, levava 30 pessoas e era chamado de “Carril de Ferro”. A passagem custava um quinto do valor da menor moeda em circulação, então a empresa vendia 5 bilhetes por uma moeda. Esses bilhetes foram chamados de “bonds” e, no uso cotidiano, o veículo começou a ser chamado de “bonde”. 

Não são raras as situações em que traduções erradas acabam se estabelecendo em um idioma. Temos um exemplo desses na liturgia de Rosh haShaná. A Mishná, o primeiro documento escrito pelo movimento rabínico ao redor de 220 EC, estabelece que há 4 dias de julgamento no calendário: em três deles são definidas a fartura dos grãos, das frutas e da água para o ano seguinte. Sobre Rosh haShaná, a quarta data da lista, está escrito: 

Em Rosh haShaná, todos que vieram ao mundo passam na frente de Deus “ki-vnei Maron”, como está escrito: “Quem cria junto seus corações, quem considera todas as suas ações?”. [3]

Como vocês viram, eu escolhi não traduzir “ki-vnei Maron”. Em casa, eu tenho duas edições da Mishná comentadas — uma delas [4] explica a expressão seguindo a opinião do Talmud, de que em aramaico “maron” está associado à palavra para ovelhas e que, portanto, nos apresentamos a Deus como ovelhas passam em frente ao seu pastor. A segunda edição da Mishná [5] propõe uma tradução radicalmente diferente, segundo a qual “ki-vnei maron”, grafado como duas palavras distintas, é um erro de transcrição. A palavra correta deveria ser “ke-numeron”, em latim: como tropas de um exército se apresentam ao seu comandante. A diferença, ainda que sutil, tem impacto na forma como entendemos esse dia do Julgamento.

Eu percebo que há pelo menos duas maneiras através das quais as pessoas que prestam alguma atenção à liturgia encaram esse processo de t’shuvá, e nem sempre me parece que a maneira que cada um adota é a mais adequada para sua situação. Há um ditado chassídico, atribuído ao rabino Simcha Bonim de Pshischa, de acordo com o qual cada um de nós deveria andar com dois bilhetinhos, cada um colocado em um bolso. Em um bilhete está escrito “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa” [6] e no outro bilhete está escrito: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas” [7]. E o rabino advertia: “Muitos se enganam e usam o bolso invertido daquele que precisavam usar.” [8] Ou seja: quando seu ego está expandido, usam o bilhete que lhes atribui ainda mais importância e quando estão se sentindo para baixo, usam o bilhete que os deixam ainda mais deprimidos. Eu temo que, para muitos entre nós a ideia do julgamento em Rosh haShaná tenha um efeito parecido ao bilhete do bolso errado. Para alguns, já no fundo do poço, enxergar-se como ovelhas indefesas passando em frente ao seu pastor os deixa ainda mais desempoderados para serem agentes das mudanças que precisam fazer em suas vidas; para outros, se sentindo no topo do mundo, enxergar-se como poderosas tropas militares fortalece seu senso de arrogância e de que nada poderá detê-los

O Unetanê Tokef, que cantaremos daqui a pouco, tenta buscar uma conciliação entre as duas versões. De um lado, o texto toma “bnei maron” como querendo dizer “um rebanho de ovelhas”, seguindo a tradição do Talmud ao afirmar: “E todos os que peregrinam pelo mundo passam diante de Ti como ‘bnei maron’. Como o pastor vistoria-o, passa-o sob sua vara, assim Você também fará passar, contará e enumerará e considerará a alma de todo ser vivo, determinando o destino de cada criatura e escrevendo seu veredito.” De outro lado, o poema também faz alusão à formação militar quando diz “anjos se apressarão, temor e tremor os dominarão. E dirão: eis que chegou o Dia do Julgamento, quando até o exército celestial se apresenta em juízo.”

Para mim, a parte mais sombria do Unetanê Tokef, ainda mais difícil do que aquela que detalha os tipos de mortes que as pessoas podem sofrer, é quando o texto diz que Deus será Juiz, Procurador, Perito e Testemunha. É uma cena que me lembra profundamente o livro “O Processo” de Franz Kafka, no qual o personagem acorda um dia perseguido pela polícia e processado por um crime que ele não sabe qual é, em um sistema judiciário todo organizado contra ele. Ao ler esta passagem do Unetanê Tokef, sempre imagino Josef K., o personagem central do livro, perguntando por qual crime está sendo processado, e o Juiz, que também é procurador, perito e testemunha, lhe respondendo “Você sabe muito bem o que fez.”

A verdade é que sabemos muito bem o que fizemos neste ano que terminou, bem até demais. Eu sei que falo em nome de muitos quando digo que “não tá fácil”. As estatísticas dizem que mais de um quarto da população brasileira sofre de ansiedade e que um em cada oito já teve diagnóstico para depressão. De forma crescente, esse quadro de saúde mental, especialmente a depressão, pode levar a consequências trágicas: dados do SUS mostram que o número de mortes por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos 20 anos. [9]

Vivemos em ambientes hiper-competitivos, tanto no âmbito pessoal quanto na esfera profissional — nada menos do que a excelência é aceitável. Uma falha gera uma cobrança, não uma reação empática — e assim aprendemos que não somos bons o suficientes, que nosso trabalho e nossa conduta não correspondem àquilo que é esperado de nós. Nos sentimos avaliados e julgados o tempo todo.

Nessas situações, não é produtiva a figura de um juiz-procurador-perito-testemunha que nos jogue ainda mais fundo no corredor kafkiano de um processo pré-definido contra nós. Aqui, precisamos de um pastor que nos pegue no colo, que reconheça que temos tentado, que nos ajude a encontrar o caminho novamente e a sair do buraco em que nos encontramos. 

Na minha prédica favorita, a rabina Margaret Moers Wenig apresenta Deus como uma mulher idosa esperando que seus filhos a venham visitar. [10] Evitamos essa visita por medo da decepção: da nossa decepção em entender que Deus não nos deu todo aquilo que esperávamos e achávamos que merecíamos e a decepção de Deus, ao perceber que não nos tornamos tudo aquilo que poderíamos. E, mesmo assim, Ela espera nossa visita e nos acolheria e enxugaria nossas lágrimas, não como juíza-procuradora-perita-testemunha, mas como mãe ou como pai que vê seu filho ou sua filha sofrendo.

Se você se vê hoje um pouco nesse lugar, adote então esse como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa”, e quando todas as cartas parecerem pré-definidas contra você, deixe de lado as imagens da corte e do julgamento e foque no carinho do pastor ou da mãe idosa sentada na cadeira da cozinha esperando por uma visita sua.

Do outro lado do espectro, há aqueles se veem, não apenas como réus neste processo, mas também se auto-atribuem os papéis de juiz, procurador, perito e testemunha e na fusão de todas essas funções, se auto-concedem um passe-livre para não avaliarem suas condutas, para continuarem agindo no mundo como se ele tivesse sido criado só por causa deles. São capazes de apontar para inúmeros problemas pelos quais passamos mas nunca de aceitar que tem alguma responsabilidade por eles. 

Um pequeno exemplo disso: em uma pesquisa publicada recentemente 81% dos entrevistados declararam que o Brasil é um país racista e, no entanto, 75% das pessoas discordaram completamente da frase “tenho algumas atitudes e práticas consideradas racistas”. [11] O problema são sempre os outros!

Nas palavras da poetisa Marcia Falk, t’shuvá é o processo “de nos voltarmos para dentro para encarar a nós mesmos.” [12] Em Rosh haShaná temos a oportunidade para olharmos com verdade e coragem para dentro de nós mesmos, mas quantos entre nós não evita essa possibilidade a todo custo, talvez com medo do que encontremos se realmente nos engajássemos neste processo.

Um midrash detalha, hora a hora, a criação do primeiro ser humano, no verdadeiro יום הרת עולם, no dia do nascimento do mundo:

“(…) na primeira hora, [a criação do ser humano] surgiu em pensamento; na segunda, [Deus] consultou os anjos; na terceira, [Deus] juntou sua terra; na quarta, [Deus] a amassou; na quinta, [Deus] o teceu; na sexta, [Deus] fez uma forma; na sétima, [Deus] soprou nela; na oitava, [Deus] o colocou no Jardim [do Éden]; na nona, ele foi ordenado [sobre o fruto proibido]; na décima, ele transgrediu; na décima primeira, ele foi julgado; na décima segunda, ele foi perdoado. [Deus] disse a Adam: “Este é um sinal para os seus filhos: da mesma forma que você esteve diante de Mim no julgamento neste dia e foi perdoado, também no futuro seus filhos se apresentarão diante de mim em julgamento neste dia e serão perdoados por Mim.” [13]

De acordo com esse midrash, o julgamento perante o qual nos apresentamos em Rosh haShaná é um jogo de cartas marcadas a nosso favor, tendo em vista que Deus já se comprometeu com Adám que seremos perdoados ao seu final.

Apresentados com essa possibilidade, há quem se declare inocente antes mesmo de avaliar as evidências e perdem a possibilidade de um encontro verdadeiro consigo mesmo.

Se esse é o seu caso, adote como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas”, e leia-o quando tiver a sensação de que o mundo inteiro está ao seu dispor, que você não precisa lidar com as consequências das suas decisões e dos seus atos.

Um ditado atribuído ao mexicano Cesar Cruz diz que “a Arte deve trazer conforto àqueles que estão perturbados e perturbar aqueles que estão confortáveis” e líderes religiosos já disseram antes de mim que este deve ser também o papel da religião. Infelizmente, como os bilhetinhos trocados a que se referiu o rabino Simcha Bonim de Pshischa, muitas vezes nosso impacto é exatamente o contrário, fortalecendo os poderosos e afligindo os oprimidos. Que nesse ano, o nosso processo de t’shuvá seja verdadeiro para cada um de nós e que nos permita encontrar equilíbrio, acolhimento e verdade.


Shaná Tová!

 

[1] https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/prefeito-quer-acabar-com-trolebus-em-sp-vale-a-pena-colocar-fim-nos-onibus-ligados-a-rede-eletrica/

[2] https://www.dicionarioetimologico.com.br/bonde/ e https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/a-origem-curiosa-das-palavras-bonde 

[3] Mishná Rosh haShaná 1:2

[4] Kehati

[5] Albeck

[6] Mishná Sanhedrin 4:5

[7] Gen. 18:27

[8] https://zusha.org.il/story/שני-כיסים/

[9] https://web.archive.org/web/20221015013650/http://www.cofen.gov.br/brasil-enfrenta-uma-segunda-pandemia-agora-na-saude-mental_103538.html

[10] Margaret Moers Wenig, “Deus é uma mulher e Ela está ficando velha”, in Sonsino, Rifat, The Many Faces of God: A Reader of Modern Jewish Theologies, URJ Press: New York, 2004. pgs. 241-248.

[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasileiros-dizem-viver-em-pais-racista-mas-negam-praticar-discriminacao.shtml

[12] Marcia Falk, The Days Between, p. 31.

[13] Vaicrá Rabá 29:1





quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Mesmo nossos antepassados erraram!


Mesmo nossos antepassados erraram!


Muitas vezes, quando encontramos uma situação já definida, temos dificuldade em imaginar quais foram os processos que determinaram que a as coisas fossem decididas daquela forma. Por que as pessoas andam nas laterais das ruas e os carros no meio, e não o contrário? Por que comemos salada no começo da refeição, e não começamos pelos pratos quentes para que eles não esfriem? Porque as cores do semáforo são verde, amarelo e vermelho, ao invés de cores que não confundissem as pessoas daltônicas? Quando consideramos verdadeiramente estas perguntas sem desconsiderá-las com um “sempre foi assim”, podemos encontrar respostas que façam sentido à nossa sensibilidade contemporânea e respostas que nos expliquem o processos histórico que determinou que as coisas sejam como são — e muitas vezes essas respostas são distintas!


Por que as leituras da Torá em Rosh haShaná foram tiradas da mesma parashá, Vaierá? Para quem não se lembra, no primeiro dia de Rosh haShaná lemos sobre o nascimento de Itschác e de como, depois de ter seu próprio filho, Sará pede a Avraham que expulse Hagár, juntamente com Ishmael, o filho primogênito de Avraham; no segundo dia, lemos sobre o quase-sacrifício de Itschac, a akedá. Olhando para esses trechos nas páginas do nosso machzor, podemos imaginar que sempre tenha sido assim, que estas leituras tenham sido estabelecidas para Rosh haShaná desde o inícios dos tempos, mas os registros nas fontes judaicas apontam para uma história bastante fluida na definição de quais trechos seriam lidos no começo do ano judaico. A Mishná, por exemplo, aponta para uma passagem diferente, em Levítico, para o primeiro dia de Rosh haShaná e nem indica que poderia haver um segundo dia de comemoração [1]. A Tossefta, escrita mais ou menos na mesma época, por outro lado, menciona que havia um debate sobre qual deveria ser a leitura e aponta que vozes dissidentes liam a passagem do nascimento de Itschác (como fazemos hoje) [2]. É so no Talmud, concluído vários séculos depois que temos referência à tradição de um segundo dia de Rosh haShaná, no qual era lida a passagem da akedá (o mesmo que lemos hoje). Como quase tudo na tradição judaica, vemos que a definição de quais seriam as leituras de Rosh haShaná não foi imediata, decretada pelos Céus, mas o resultado de idas e vindas, de negociações e debates entre sábios em diferentes momentos, e com as práticas se estabelecendo e sendo revisadas ao longo da história.


A compreensão deste processo histórico, no entanto, ajuda pouco para entendermos porque estas passagens são relevantes para o momento religioso de Rosh haShaná. A este respeito, como em quase tudo que envolve processos interpretativos, até hoje o debate persiste. Para a escolha da leitura do primeiro dia há quem aponte, por exemplo, que a passagem sobre o nascimento de Itschác se inicia com Deus se lembrando de Sará [4] e a memória é um dos temas centrais de Rosh haShaná, assim como é a metáfora desta data como o “nascimento do mundo” (iom harát olám) justifica a escolha de uma data em que ocorre o nascimento de um bebê. Além disso, há um entendimento de que Deus revela Seu aspecto misericordioso ao permitir que Avraham e Sará se tornem pais em suas velhices e, ao ler este trecho, buscamos relembrar o Divino desta história, na esperança de que recebamos a mesma generosidade em nosso próprio julgamento. 


Quanto ao segundo dia, as explicações mais comuns relacionam a leitura da Akedá ao toque do shofar através do carneiro (um dos animais cujos chifres podem ser usados como shofarot) que Avraham sacrifica ao final do episódio. Outra abordagem relaciona a leitura à ideia de Z’chut Avot, um conceito segundo o qual, como não temos méritos suficientes que justifiquem nossa Salvação, apelamos a Deus que reconheça as qualidades de nossos antepassados, como Avraham, que esteve disposto a sacrificar seu próprio filho em devoção a Deus.


Para mim, no entanto, essas abordagens falham ao não reconhecer que tanto Avraham quanto Sará tiveram condutas, no mínimo, questionáveis neste dois episódios. De seu lado, Sará se deixou tomar pelo ciúmes ao exigir que seu marido expulsasse Hagár junto com Ishmael, seu filho mais velho. Quanto a Avraham, não apenas consentiu com o pedido de Sará como também aceitou a ordem Divina para sacrificar seu filho mais novo, Itschác. Na minha opinião, nossos rabinos escolheram estas duas leituras para os dias de Rosh haShaná porque reconheciam que tanto Sará quanto Avraham tinham errado em suas condutas e precisavam fazer t’shuvá pelos seus erros. Ao demonstrarem à comunidade reunida na sinagoga que até mesmo os fundadores do povo judeu tinham sua cota de erros sobre os quais refletir em Rosh haShaná, então nós também podemos sair da ilusão de que tivemos comportamento perfeito no ano que terminou e reconhecer as situações em que não nos orgulhamos da forma como agimos. Assim começa Iom Kipur, a comunidade nos dando licença para rezarmos na companhia de transgressores; assim, também, eu acredito, foram escolhidas as leituras da Torá de Rosh haShaná. 


Ao aceitarmos a premissa básica de que mesmos nossos antepassados de maior reputação não eram perfeitos, aceitamos nossa falibilidade, deixamos cair a máscara de que não temos nada pelo qual fazer t’shuvá e podemos nos engajar verdadeiramente no processo de cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma.


Que individual e coletivamente possamos todos reconhecer a aprender dos nossos erros, tomar as ações corretivas com relação às suas implicações e nos transformarmos para não cometer os mesmos erros.


Shaná Tová! Que seja um ano muito doce, cheio de parcerias e encontros, muito amor e saúde!


Rabino Rogério




[1] Mishna Meguila 3:6

[2] Tossefta Meguilá 3:3

[3] Talmud Bavli Meguila 31a

[4] Gen. 21:1

 


quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Faz sentido perguntar “quantas esposas é demais”?!


Quando eu era criança, preciso reconhecer, eu cantava “Atirei o Pau no Gato” sem pensar muito no bem estar dos animais. Quem sabe, se o pau fosse atirado contra um cachorro, não contra um gato, eu teria mais empatia pela vítima da ação, mas como nunca fui lá muito fã dos felinos, nem me dava conta da violência da ação. Quando eu já era adolescente, comecei a escutar versões da música que, ao se proporem um papel educativo, trocavam a letra para dizer “não atire o pau no gato porque isso não se faz, o gatinho é nosso amigo, não devemos maltratar os animais.” Ao mesmo tempo em que cantávamos isso de forma ridicularizada, fazendo pouco caso da preocupação em trocar a letra de uma música infantil para não incentivar a violência contra os animais, eu me dava conta, pela primeira vez, que a letra original era, de fato, violenta e encorajava comportamentos indesejados.

Ao olharmos para o passado, é relativamente comum percebermos comportamentos inapropriados que aceitávamos como naturais e que hoje não são mais aceitáveis. Entramos no mês de Elul, o último do calendário judaico, no qual damos ênfase ao processo de Cheshbón haNéfesh, a contabilidade da alma, no qual olhamos com atenção para nossa ação no ano que passou, identificando onde fomos a pessoa que gostaríamos e onde nos afastamos deste ideal. É também uma oportunidade para expandirmos o olhar e percebermos quais condutas inadequadas continuam naturalizadas e que devem ser reavaliadas.

Na parashá desta semana, Shoftim, o povo recebe autorização para ter um rei depois de entrarem na Terra Prometida. O texto deixa claro que este líder seria um homem, ao mesmo tempo em que estabelece limites para o poder do monarca: ele deve ser israelita, não poderá acumular riqueza excessiva em outro, prata ou cavalos, não mandará seu povo de volta ao Egito e não terá muitas esposas. O texto não explicita quanto seria “muitas” mas parece haver um consenso de que até dezoito esposas seria aceitável; acima desse número, já seria um exagero.

Por muito tempo, os comentaristas desta passagem (homens, todos eles) [1] debateram se o número dezoito era exagerado ou não, se ele poderia ser ultrapassado se todas as mulheres fossem “boas”, se o limite se aplicaria também a uma pessoa que não fosse rei. Ninguém perguntou, no entanto, porque as esposas estavam listadas juntamente às demais riquezas que o rei podia acumular, ainda que com limites. Talvez a maior inovação que o judaísmo trouxe ao mundo foi a ideia de que todos os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, são dotados de dignidade inalienável. Será que as instruções ao rei que tratam suas esposas como propriedade refletem este profundo valor judaico?

Podemos encontrar exemplos semelhantes, nos quais as mulheres não foram tratadas com a devida dignidade em outras histórias da tradição judaica (o livro de Ester ou a história do rei Shlomô e suas 700 esposas, por exemplo) e de outras culturas, mas é chegado o momento de revisitarmos as condutas implicitamente aceitas nessas narrativas e apontarmos para o que não estamos mais dispostos a aceitar. Nos últimos anos, o movimento #metoo tem jogado luz para a forma como homens poderosos abusam de suas posições sociais e profissionais para praticar assédio e violência, práticas sobre as quais muitos sabiam mas que consideravam como “parte do jogo”.

Parashat Shoftim trata também da estruturação de um sistema judicial que torne a busca pela justiça uma característica central da sociedade hebreia. A este respeito, o rabino Eliezer Berkovits escreveu: “Buscar justiça é aliviar os oprimidos. Mas como os oprimidos serão aliviados, se não for julgando o opressor e esmagando sua capacidade de oprimir?! (…) A tolerância à injustiça é a tolerância ao sofrimento humano. Uma vez que os orgulhosos e poderosos que infligem o sofrimento geralmente não cedem à persuasão moral, a responsabilidade pelo sofredor exige que a justiça seja feita para que a opressão seja encerrada.” [2]

Que neste shabat, possamos buscar justiça para todos, em particular desafiando os abusos naturalizados dos poderosos e que assim comecemos o processo de nos transformarmos na versão de nós mesmos que queremos ser.

Rabino Rogério


[1] Veja, por exemplo, os comentário de Rashi, Ibn Ezra, Aderet Eliahu para Deut. 17:17.

[2] Conforme citado em Harvey Fields, “A Torah Commentary for Our Times”, vol. 3, p. 140. 

 


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Dvar Torá: Escolhendo ter sempre bençãos (CIP)


Eu tenho uma amiga que se recusava terminantemente a comprar rifas. Ela acreditava que temos um número limitado de eventos de boa sorte na vida e não queria gastar os seus com prêmios de melhor valor. Ela dizia: “e seu eu ganhar?!”, gastei a chance de mudar de vida com um jogo de panelas… 

Talvez isso tenha acontecido comigo. Há algumas semanas eu ganhei, não uma, mas duas vezes na loteria. Na primeira vez, depois de todo o suspense de descobrir que minha aposta tinha sido sorteada, eu abri o aplicativo pra saber quanto eu tinha ganho, sonhando em ter me tornado milionário, para descobrir que o meu prêmio total era a fortuna de R$114,00. Alguns dias depois, eu estava mostrando para alguém essa história e descobri que tinha sido sorteado também no prêmio seguinte. Novos segundos de tensão, até eu descobrir que o segundo prêmio era de imensos R$30,00! Será que eu desperdicei minhas chances de ficar milionário?! Na dúvida, eu continuo jogando, mas só quando o prêmio está acumulado — nesta semana, a Mega Sena está acumulada em R$115 milhões — isso sim, mudaria a vida de qualquer um!

Mas mudaria de que forma? Será que necessariamente boa?! No ano passado, um ganhador de quase R$50 milhões da Mega Sena, que continuava com sua sua vida pacata em Hortolândia foi assassinado por pessoas que queriam seu dinheiro. Não são raras as histórias de pessoas que ficam milionárias da noite para o dia e que, na sequência, perdem o dinheiro em pouco tempo [1]. Há a história do casal americano que torrou US$13 milhões em 15 anos ou do brasileiro que acabou com R$30 milhões em 5 anos. Mas além do risco de perder fácil o dinheiro que chegou fácil, será que  estes milhões trazem a felicidade que as pessoas esperam?

De outro lado, há notícias terríveis que recebemos ao longo da vida, em situações pessoais e profissionais e que, diferentemente do que esperávamos à primeira vista, acabam se tornando bençãos que estavam disfarçadas de maldições. Uma separação amorosa, que parecia que te levaria pro fundo do poço foi o que permitiu que você se descobrisse enquanto indivíduo, que se estruturasse de formas muito mais saudáveis dali pra frente. O mesmo com relações profissionais, uma promoção perdida, uma demissão. Situações que, em um primeiro momento, pareciam muito ruins mas que abriram novas possibilidades que você nem enxergaria se tudo “tivesse dado certo”.

Às vezes, o que parecia uma benção se revela uma maldição; e às vezes, o que parecia uma maldição nos enche de bençãos. Na nossa parashá desta semana, Deus diz ao povo, através de Moshé:


רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃ 

אֶת־הַבְּרָכָה אֲשֶׁר תִּשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם 

אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם׃ 

וְהַקְּלָלָה אִם־לֹא תִשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם

 וְסַרְתֶּם מִן־הַדֶּרֶךְ אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם 

לָלֶכֶת אַחֲרֵי אֱלֹהִים אֲחֵרִים אֲשֶׁר לֹא־יְדַעְתֶּם׃ 

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição:  

bênção, ao escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, que Eu te ordeno hoje;

e maldição, se vocês não escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, se desviando do caminho que Eu te ordeno hoje,

indo atrás de outros deuses que vocês não conhecem. [2]:


Dito assim, até parece fácil reconhecer qual é a benção e qual é a maldição,  e que comportamento ter nos grandes dilemas à nossa frente mas os comentaristas ao longo dos séculos gastaram muita tinta tentando explicar esses três versículos. 

Destes, um dos que eu mais gostei, vindo do mestre Chassídico Tsvi Hirsch de Nadvorna, na Ucrânia, que viveu na segunda metade do século 18. Na sua leitura do trecho “benção, ao escutarem os mandamentos de ה׳, teu Deus”, “escutar” deve ser entendido como “se integrar”, “se tornar um”, estabelecendo um paralelo com uma passagem talmúdica em que uma palavra da mesma raiz ganha até um significado sexual, de se tornar um. Portanto, a passagem deveria ser lida assim:

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição: 

bênção, se vocês unirem seu comportamento ao que vem de Deus, 

tornando o que você dá e o que você recebe um fluxo único; 

maldição se vocês não fizerem isso. 

A forma como recebemos nossas bençãos e maldições determinam o impacto que elas terão nas nossas vida. Um tropeço pode nos ensinar a revisitar nossa arrogância e desenvolver nossa empatia, ou pode nos tornar amargurados e rancorosos. Um grande sucesso, por outro lado, pode fazer com esqueçamos de tudo que ainda precisamos evoluir e de todas as pessoas que nos ajudaram ao longo do caminho e que não receberam ainda o reconhecimento devido, ou pode ser a ferramenta da qual precisávamos para ajudar outros a ter o mesmo sucesso que tivemos.

Na teologia do livro de Deuteronômio, as consequências das nossas ações não são individuais, mas se aplicam a toda a sociedade. Quando, como sociedade, passamos a buscar outros deuses — e aqueles que buscamos hoje em dia não fazem parte do universo teológico, mas se expressam como fama, poder e dinheiro — ou, ainda pior, quando passamos a considerar a nós mesmos como semi-deuses, a Torá nos alerta que as consequências serão as terríveis, as piores maldições possíveis. O que parecia um evento positivo se revelará como um desastre, perderemos nossa humanidade na busca do conforto, afogados pelas novas tecnologias.

Se, por outro lado, formos capazes de integrar nossa conduta social aos valores que a Torá nos ensina, como amar ao nosso próximo como a nós mesmos, proteger os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, agir com retidão e justiça, então mesmo o que parece uma notícia ruim se revelará uma benção, poderemos andar pelas nossas cidades sem medo, reconheceremos a face do Divino nos saudando a cada pessoa que encontrarmos, não importando quão diferente ela for de nós.

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição.

É só escolher!

Shabat Shalom!

 

[1] https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/ganhadores-loteria-que-perderam-tudo/

[2] Num. 12:26-28

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Dvar Torá: Uma educação judaica para os nossos tempos (CIP)


Há algumas semanas, eu recebi um pedido por WhatsApp da Priscila Karaver, coordenadora do Man’higut, o programa de preparação de madrichim e desenvolvimento de lideranças da CIP. Na mensagem, ela perguntava quais textos judaicos eu achava que eram essenciais na formação de um madrich. Aos ouvidos de um rabino, um pedido assim é a música que mais gostamos de escutar.

Desde então, tenho pensado em quais seriam estes textos na minha opinião e tenho visto meus colegas também procurando os textos essenciais na opinião deles. Curioso, fui olhar na pasta que Pri tinha compartilhado comigo para ver quais respostas já tinham sido enviadas e fiquei satisfatoriamente surpreso ao encontrar na lista um livro para bebês, daquele com muitas ilustrações, pouco texto e impresso em cartão grosso. O livro, de autoria da rabina Sandy Sasso, se chama “What is God’s Name?” e apresenta uma pluralidade de visões sobre o Divino, em um contexto que é simultaneamente muito judaico e intensamente plural. Usa uma linguagem acessível para crianças pequenas sem banalizar um assunto com o qual muitos de nós temos dificuldade de falar com abertura, especialmente com crianças pequenas, dando espaço para que elas desenvolvam suas próprias hipóteses parar onde está Deus no nosso mundo. Sandy Sasso é, na minha opinião, a melhor autora de livros infantis judaicos, tratando de assuntos importantes em linguagem acessível a crianças e a adultos, levantando questões muito significativas para todas as idades.

Há alguns anos, eu estava no carro e pude escutar uma entrevista dela na rádio. Uma ouvinte ligou e lhe perguntou:

Eu fui criada na Igreja Batista. Eu explorei uma variedade de religiões, tudo do judaísmo ao paganismo e voltei ao cristianismo e me juntei à Igreja Episcopal, porque é o que parece certo para mim. O que eu luto é como dar ao meu filho de sete anos e à minha filha de três anos a liberdade de encontrar seu próprio caminho para Deus e para a verdadeira espiritualidade, você sabe, em oposição à religião imposta pelos pais. Meus dois filhos gostam do aspecto social da igreja e, você sabe, fazem as perguntas habituais sobre Deus, mas quero que eles encontrem a paz que encontrei e não tenho ideia de como encorajar isso.

Era um domingo de manhã, eu voltava da sinagoga onde eu fazia meu estágio e quase bati o carro com essa pergunta para a rabina, pensando que pais judeus tipicamente não querem que seus filhos explorem opções religiosas diferentes das suas — mas a verdade é que gostaríamos que eles encontrassem nas suas vidas respostas que fossem verdadeiras para eles, incluindo no âmbito religioso. A rabina Sasso desviou dos aspectos mais polêmicos da pergunta e focou sua resposta no ensino de valores: 

Nós lemos toneladas de livros, o que dar de comida para [nossos filhos], como criá-los, como fazê-los dormir, como ensiná-los a usar a privada. Devemos também nos empenhar em nos educar sobre nossa própria vida espiritual, porque é muito difícil compartilhar com as crianças o que você está pensando se não estiver pensando sobre essas questões. Então, acho que primeiro precisamos nutrir nossa própria vida espiritual. E a maior parte do que fazemos em termos de nutrir a espiritualidade de nossos filhos realmente acontece quando ninguém mais está olhando, o que significa que nem tudo está planejado. É o que acontece todos os dias. Quero dizer, o que você faz quando vê uma pessoa em situação de rua na rua? Como você reage quando um animal é atropelado na estrada, um esquilo, por exemplo? Como agimos com outras pessoas? Todas essas são mensagens para nossos filhos sobre o que realmente importa na vida, o que é precioso, o que é mais importante do que ganhar a vida e seguir nossa rotina diária.

Acho que a sociedade faz um trabalho muito bom em nos ensinar como ser consumidores e um trabalho muito bom em nos ensinar como sermos concorrentes.

A pergunta que acho que os pais estão lutando para responder é como não apenas ensinamos a mente de nossos filhos, mas como ensinamos suas almas? E essa é uma questão muito mais profunda. E sei que queremos que nossos filhos sejam mais do que consumidores e concorrentes.

Na Escola Lafer acreditamos que o judaísmo precisa nos ensinar a sermos humanos mais capazes, que vão além de seus papéis como consumidores e concorrentes.

Eu tenho um amigo que estudo educação física na faculdade e que sempre me disse "educação física não é educação do físico; educação física é educação pelo físico". De alguma forma, o mesmo conceito se aplica à educação judaica. Claro que educação judaica é ensinar judaísmo mas também é ensinar através do judaísmo. É como ensinamos os nossos filhos o que fazer ao encontrar uma pessoa em situação de rua ou um animal atropelado na estrada, o que fazer no encontro com outras pessoas.

Há um outro livro sobre o qual eu tenho falado muito nos últimos anos, em particular com meus alunos de educação adulta, chamado "Here All Along", algo como "Sempre esteve aqui", de Sarah Hurwitz. [2] Na introdução do livro, ela conta que era uma aluna de bat-mitsvá em uma sinagoga de subúrbio nos Estados Unidos e achava o que aprendia absolutamente chato. Ela consegue enrolar os pais para trocar de sinagoga, para uma em que o curso era mais fácil e menos vezes por semana. Depois de trocar, ela se arrepende e se dá conta de que, mesmo chato, o primeiro curso era bem melhor, mas já não tinha o que dizer aos pais para voltar para a primeira sinagoga. Ela aprendeu essa versão chata do judaísmo e nunca mais se engajou com educação judaica. Ela teve uma carreira de sucesso, tendo se tornado a redatora-chefe dos discursos da primeira-dama dos Estados Unidos. Quando o governo terminou, ela, sem ter muito o que fazer, resolveu se inscrever em um curso de judaísmo para adultos. Sobre o que ela aprendeu, ela escreveu: "Este não era o velho e rotineiro judaísmo da minha infância. Era algo relevante, infinitamente fascinante e vivo."

O desafio que temos na educação dos nossos jovens é como apresentar um judaísmo que não é só preocupado com a ordem do acendimento das velas da chanukiá, mas é preocupado com as questões mais importantes das vidas deles e das nossas. Como diz a rabina Sandy Sasso, se o judaísmo não for um fator nas nossas vidas, não tem como transmití-lo para os nossos filhos.

Na parashá desta semana, Côrach lidera uma rebelião contra Moshé: "se somos todos parte de uma nação de sacerdotes, por que só você está na liderança?" Ao final da história, Moshé continua como líder, mas podemos ler esta história e focar nas minúcias da narrativa ou podemos nos perguntar como ela se conecta com o momento que estamos vivendo, com a questão da democracia, sobre a forma de contestar o sistema político. Podemos usar a tradição judaica para ficar só nela, para ficar olhando para dentro de nós mesmos cada vez mais, ou podemos educar para um judaísmo que é sofisticado, que serve de lente, através da qual nos relacionamos com o mundo. 

Esse é o trabalho que fazemos na Escola Lafer. Em geral, as pessoas pensam que é um programa de preparação para B-Mitsvá mas é um programa de preparação de adultos judeus, no qual a cerimônia é só a desculpa que usamos para convencer as famílias a virem conversar com a gente, mas o trabalho que fazemos é pensar como estes jovens adultos judeus poderão funcionar em um mundo cujas dinâmicas nem conhecemos ainda, mas no qual esperamos que o judaísmo seja um fator importante nas suas decisões e nos seus valores.

Se vocês conhecem crianças que poderiam aproveitar uma abordagem assim, liga pra gente para pensarmos juntos como o judaísmo pode ser um fator na vida deles.

Shabat Shalom!


 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Orgulho na maioria e na minoria



Para o meu coração matemático, o livro de baMidbar, que em português é chamado de “Números”, é a oportunidade da unir duas paixões: os números e o judaísmo. Desta vez, tenho pensado sobre as aulas de matemática dos primeiros anos, ainda aprendendo sobre o significado de cada um dos símbolos e notações. Lembro-me bem da confusão entre os símbolos “maior” (“>”) e menor (“<”) e das regrinhas que usávamos para saber qual usar em cada situação. Uma regra dizia que a “boca aberta” do símbolo sempre deveria estar na direção da quantidade maior; outra nos ensinava a fazer um tracinho do braço inferior do símbolo – desta forma, um símbolo se tornava um “4” inclinado (o menor) e outro se tornava um “7” inclinado (o maior). Olhando hoje, com algum saudosismo, parece que naquele tempo era mais fácil determinar quais eram as maiores grandezas e quais eram as menores, mesmo que precisássemos recorrer a estes “truques” no processo.


Hoje em dia, os conceitos de “maior” e “menor” se tornaram bem mais complexos, especialmente se considerarmos seus derivados, a “maioria” e a “minoria”. Além dos conceitos numéricos, há situações de poder, nos quais quem está em maior número nem sempre tem mais destaque. Só como exemplo, pensem nas mulheres, que apesar de serem a maioria da população (51,1%), tem claramente muito menos poder que os homens.


Na parashá desta semana, Shelach Lechá, Deus indica a Moshé que escolha emissários para investigar a terra de Israel, na qual eles pretendem ingressar em breve. Das doze pessoas escolhidas, dez voltaram com um relato negativo; apenas duas reportaram que, apesar dos desafios, os israelitas tinham condições de, com o apoio de Deus, conquistar a terra. O grupo majoritário, ao defender que eles não conseguiriam vencer em combate, afirmava que os residentes da terra eram gigantes, que perto deles os hebreus eram como gafanhotos [1]. O povo em sua maioria seguiu a opinião dos dez enviados pessimistas, para indignação Divina. Moshé conseguiu convencer Deus a não matá-los todos logo ali, mas em resposta à falta de confiança daquela geração em si mesma, Deus determinou que eles vagassem pelo deserto por 40 anos, para que aqueles que entrassem na terra de Israel tivessem uma mentalidade distinta daquela visão derrotista.


Em seu comentário sobre esta parashá, o rabino Jeffrey Salkin afirma: “A opinião da maioria nem sempre está certa. (...) Muitas das grandes coisas da história mundial não aconteceram porque a maioria era a favor delas; muitas vezes é preciso uma minoria criativa de pessoas para convencer os outros a expandir sua visão.” [2] 


Vivemos em uma época de imensas e rápidas transformações. Da tecnologia ao meio ambiente, dos valores sociais aos modelos de negócio, o mundo nunca testemunhou tantas revoluções ao mesmo tempo. De um lado, muitos de nós nos sentimos confusos com tantas mudanças o tempo todo, com medo até. De outro lado, novas oportunidades têm sido criadas a cada dia; grupos que viveram silenciados por séculos, que se viam como gafanhotos indefesos frente a gigantes que os destruiriam se chamassem atenção, passaram a ter coragem de se expressar. Como a nova geração que pôde entrar em Israel, estes grupos historicamente silenciados passaram a demandar seu pleno reconhecimento, querem ser enxergados, reconhecidos, ouvidos e respeitados. Em alguns casos, são a maioria ou têm a maioria ao seu lado; em outros, talvez não sejam tão numerosos, mas querem o seu direito de pertencer plenamente. Afinal de contas, nossa tradição ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] ou seja, cada vida é única e tem valor, mesmo quando não está na maioria.



Nesta sexta-feira, teremos na CIP o Cabalat Shabat do Orgulho, uma oportunidade para vermos e sermos vistos, para escutarmos e sermos escutados, para amarmos e sermos amados, para respeitarmos e sermos respeitados. Maioria ou minoria, nos números ou no poder, que possamos todos nos sentir verdadeiros com quem somos e com a coragem de conquistar nossos sonhos, mesmo quando eles parecem inalcançáveis.


Shabat Shalom!



[1] Num. 13:33

[2] Jeffrey K. Salkin, “The JPS B’nai Mitzvah Torah Commentary”

[3] https://bit.ly/3PdnBgO


sexta-feira, 2 de junho de 2023

Dvar Torá: O culpado pelo ciúme é o ciumento (CIP)


Outro dia, eu estava com a minha filha de 14 anos (quase 15!) na cozinha e ela me disse: “pai, quando eu tiver 18 anos eu vou escrever um livro sobre você, que vai chamar ‘Meu Pai, o Rabino.’” Segundo ela, aqui nas prédicas eu me apresento como uma pessoa séria, respeitada, e ela queria apresentar o outro lado do pai dela. Um desses lados sobre o qual minha filha queria escrever no livro é o fato de que eu, com uma frequência incrível, choro nas séries ou nos filmes que assistimos juntos. O curioso é que eu não acho que me apresente aqui tão sério, e, mesmo que de fato minhas relações pessoais, especialmente com meus filhos, incluam facetas da minha personalidade que eu não necessariamente revelo profissionalmente, já aconteceram algumas vezes de a minha voz embargar e eu ter que segurar o choro em várias das minhas prédicas.

Esses dias, entre lágrimas, eu assisti o último episódio da série Ted Lasso, que passa na Apple TV+. Essa série, sobre um treinador de futebol americano universitário contratado para treinar um time de futebol profissional na Premier League inglesa, foi um fenômeno global em termos de reconhecimento dos críticos e prêmios para os quais foi indicada e que efetivamente venceu. No entanto, como a plataforma Apple TV+ não é das mais populares por aqui, imagino que a grande maioria de vocês não a tenha assistido — mesmo assim, eu vou tentar não dar nenhum spoiler importante.

O que me atraiu na série foi a forma como ela vai na contramão de várias outras séries de sucesso. Em um mundo no qual o culto à personalidade é tão forte como no futebol profissional, ele tenta nadar contra a maré. Ted Lasso é o que, no linguajar judaico, chamaríamos de mensch. Além dele, ao longo das três temporadas da série, os demais personagens se transformam profundamente, na maioria dos casos, procurando ser pessoas melhores. No episódio final, um dos personagens que mais cresceu, reúne um grupo de amigos para dizer que, apesar de estar tentando se tornar uma pessoa melhor, ele está inconsolável frente à percepção de que ele continua sendo a mesma pessoa. “Mas você queria ser outra pessoa?!”, Ted lhe pergunta. “Sim, alguém melhor”, ele responde, emendando com a pergunta, “As pessoas podem mudar?”. Outro personagem responde: “eu não acho que mudemos, só aprendemos a aceitar quem sempre fomos”. Um terceiro personagem, que neste finalzinho da série está imerso em um processo de t'shuvá, de recohecimento dos seus erros, e tentando corrigi-los, diz: “eu acho que as pessoas podem mudar. Vocês sabem, às vezes para pior e às vezes para melhor.” Mais alguém entra na conversa, dizendo: “seres humanos nunca serão perfeitos. O melhor que podemos fazer é continuar pedindo ajuda e aceitando-a quando pudermos. E se você continuar fazendo isso, você sempre estará indo na direção de melhorar.”

Nesse momento, com os olhos vermelhos e o rosto molhado, eu fico pensando que eles têm razão. Não somos perfeitos e o máximo que podemos pedir é que, de maneira geral, estejamos caminhando na direção da melhora. Na tradição judaica, ou pelo menos na parte da tradição judaica pela qual eu me apaixonei, Deus tampouco é perfeito — são inúmeros os midrashim em que Deus se arrepende de algo que tenha feito. Há um midrash, por exemplo, de acordo com o qual Deus criou vários mundos antes do nosso, mas não ficou contente com o resultado, os destruiu e criou um novo. [1] Mesmo depois de estar com este mundo completo, Deus decide destrui-lo através do Dilúvio e, frente ao comportamento dos israelitas, propõe a Moshé mais de uma vez destruir todo o povo hebreu e começar de novo, só com Moshé.

Eu tinha um chefe que dizia que os erros da equipe não o incomodavam, desde que cada vez cometêssemos um erro novo. Segundo ele, nossos erros indicavam que estávamos tentando coisas novas, nos arriscando; algumas dessas tentativas dariam certo e outras, não. Se não fôssemos capazes de aprender dos nossos erros, no entanto, aí teríamos um problema. Nessa mesma linha de pensamento, quando a Fundação Kohelet criou um prêmio para a Educação Judaica, uma das 6 categorias foi “tomada de risco e fracasso” [2] — só não erra quem não toma riscos e mantermo-nos parados no mesmo lugar de sempre é a receita mais certeira para nos tornarmos irrelevantes muito em breve.

Essa forma de reconhecer e encarar nossa imperfeição e a intenção de caminharmos para frente pode ser aplicada também a coletivos, a sociedades e até mesmo à nossa tradição religiosa. Ter a coragem de reconhecer tanto os aspectos maravilhosos do judaísmo quanto as áreas nos quais ele nos frustra é o primeiro passo para sabermos para onde caminhar. Na parashá desta semana temos um exemplo de uma passagem problemática que nem sempre recebeu o olhar crítico que precisaria.

De acordo com a Torá, quando um marido tem ciúmes de sua esposa e teme que ela o tenha traído, ele deve levar a esposa ao sacerdote, que preparará uma mistura de água santificada e terra, na qual dissolverá a tinta com a qual escreveu um pergaminho com maldições caso as suspeitas ciumentas do marido sejam verdadeiras. A esposa deve, então, beber a mistura de água, terra e tinta. Se ela, de fato, tinha traído o marido “seu ventre se distenderá e sua coxa se enfraquecerá e a esposa se tornará uma maldição em meio ao seu povo.” [3] Por esta doutrina, caso não houvesse qualquer motivo para o ciúmes, ao beber a água com terra e tinta, a esposa não sofreria dos mesmos males. Neste caso, nem o marido, nem o sacerdote oferecem ao menos um pedido de desculpas por terem forçado-a a passar por este ritual.

A violência e a humilhação refletidas neste ritual devem chocar a todos. Lembremos que não existe na Bíblia qualquer procedimento semelhante para o marido que, estando casado com uma esposa, tem um relacionamento com outra pessoa. Na verdade, em tempos bíblicos, homens podiam casar-se com mais de uma esposa sem que isso fosse considerado traição do pacto nupcial.

Na literatura rabínica, ao perceberem adequar o ritual bíblico à realidade que eles conheciam de que a mágica não funcionava, os rabinos adicionaram um conceito de acordo com o qual mulheres que tinham mérito podiam ter as consequências por seus atos postergadas. [4] Ou seja: mesmo depois de sobreviver o ritual vexatório, ela ainda não era considerada inocente, mas podia ser que sua punição só tivesse sido retardada. Na Mishná, Rabi Shimón chega a alertar os outros rabinos de que “aquele que diz que o mérito atrasa a punição, enfraquece o poder da água frente a todas as mulheres que a bebem. Além disso, você difama as mulheres inocentes que a beberam, pois as pessoas dirão: ‘elas são impuras mas seu mérito atrasou a punição.’”  Apesar do aviso, rabi Iehudá haNassi, o redator da Mishná, decidiu manter esse conceito, dizendo que elas poderiam sobreviver, mas se tornariam estéreis e sua saúde deterioraria gradativamente. 

O ritual acabou sendo abolido, não por qualquer objeção moral a ele, mas porque o rabino Iochanán ben Zacái achou que, considerando o alto grau de infidelidade matrimonial no final do período do 2º Templo, não fazia mais sentido acusar ninguém deste pecado. [5]

Ao encontrarmos estes textos na nossa tradição, tanto a passagem bíblica como o tratamento que ele recebeu na Mishná, temos que denunciá-los, reafirmar que o ciúmes é uma doença do ciumento, que é ele que deve procurar ajuda e tratamento. Que a vítima do ciúmes nunca pode ser penalizada; ela deve ser acolhida e empoderada, encorajada a refletir se o relacionamento é saudável e se deseja continuar nele. Sempre vale destacar e divulgar o trabalho de prevenção da e resposta à violência doméstica desenvolvido pelo Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP. Informe-se mais visitando o site elf.ong.br

Que nas nossas vidas pessoais e comunitárias, nos nossos textos e nas nossas tradições, possamos aceitar nossas próprias falhas e as dos outros, sem nunca deixar de procurar a melhoria constante.

Shabat Shalom!



 

[1] Bereshit Rabá 3:7 

[2] https://koheletprize.org/pd-category/risk-taking-failure/

[3] Num. 5:27

[4] Mishná Sotá 3:4-5

[5] Mishná Sotá 9:9