quinta-feira, 20 de abril de 2023

Porque gravidez não é doença, nem fonte de impurezas


Não foram raras as vezes em que ouvi pessoas estabelecendo uma relação entre a palavra hebraica para “compaixão”, rachamim, e a palavra para “útero”, réchem, e, a partir daí, comentarem que o Divino não tem gênero, incorporando aspectos masculinos (como o poder, guevurá, e o julgamento, din) e femininos (como a compaixão, rachamim). Deixando de lado o essencialismo que considera o poder e a justiça atributos inerentemente masculinos, enquanto a compaixão seria uma qualidade inerentemente feminina, poderíamos considerar que a tradição judaica teria uma visão positiva da maternidade e da capacidade de gerir outra vida dentro de seu próprio corpo.


Em algumas passagens bíblicas, claramente, esta expectativa é confirmada. Em Isaías 66:13, por exemplo, Deus se apresenta como uma mãe para o povo judeu, afirmando “Como uma mãe consola seu filho, assim eu os consolarei; Você encontrará conforto em Jerusalém”. 


Em outras passagens da Torá, no entanto, a maternidade é vista de forma crítica. Quando o fruto proibido é comido, o castigo da mulher é expresso desta forma: “Duplicarei e reduplicarei as dores da sua gestação; você dará a luz com dor, contudo seu desejo será para o seu homem e ele governará sobre você.” [1] Ao invés de ser vista como um momento maravilhoso no qual nova vida está sendo criada, a gestação é apresentada neste texto como um evento doloroso, em particular o culminar deste processo, o parto.


Na parashá-dupla desta semana, Tazría-Metsorá, a questão da maternidade volta a ser endereçada sem que a maravilha da gestação da vida seja reconhecida. Pelo contrário: o tom das instruções relaciona a participação feminina no processo reprodutivo como uma fonte de impurezas e culpa. De um lado, temos questões relativas ao estado de impureza ritual de mulheres durante o seu fluxo menstrual (e nos dias subsequentes) [2], parte indissociável do processo reprodutivo. De outro lado, o tratamento dado a parturientes, novamente as relaciona à impureza ritual, indicando o número de dias que elas devem permanecer isoladas de objetos rituais, a depender de se o bebê tiver sido um menino ou uma menina. Além disso, ao final do período elas deviam oferecer um sacrifício de chatáat, uma oferta pela purificação de uma transgressão. [3] Com a destruição do Templo no ano 70 EC e o decorrente abandono dos sacrifícios animais pelo judaísmo rabínico, estas práticas perderam a relevância mas a visão que enxerga na gravidez e no parto obstáculos que representam perigos e desafios ainda se mantém em práticas judaicas contemporâneas. Ainda hoje, muitos sidurim e rabinos indicam que uma mulher que acabou de dar à luz deve dizer bircat hagomêl, a benção que alguém diz depois de ter passado por uma doença séria ou por uma cirurgia. 


É necessário e urgente que tenhamos a coragem de olhar criticamente para estes textos e para estas práticas. A rabina e teóloga Rachel Adler, a respeito das passagens nesta parashá-dupla escreveu “Sagrado não precisa significar inerrante; basta que o sagrado seja inesgotável. Nas profundezas da Tua Torá, eu procuro Você, Eheyeh, criador de um mundo de sangue. Rasgo a Tua Torá verso a verso, até que esteja quebrada e sangrando assim como eu." [4]


Gravidez não é doença. O ciclo reprodutivo feminino não é fonte de impurezas. Ainda que hajam riscos envolvidos na gravidez e no parto, estes são momentos a serem desfrutados e celebrados, situações em que a parceria entre Deus e humanos se torna clara e visível [5] e nossas práticas rituais devem refletir esta postura de estarmos maravilhados e incrivelmente felizes quando uma criança nasce. 


Que neste shabat possamos nos alegrar e maravilhar com a vida e com uma tradição religiosa que nos surpreende e nos provoca e na qual o questionamento e inovação não são apenas aceitos, são também valorizados.  




[1] Gen. 3:16

[2] Lev. 16:19-26

[3] Lev. 12:1-8

[4] Lifecycles 2: Jewish Women on Biblical Themes in Contemporary Life, , p. 206

[5] Veja, por exemplo, BT Nidá 31a



sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


quinta-feira, 30 de março de 2023

Da palavras, símbolos e resistência


Vários anos atrás, fui visitar um templo religioso na região de Chicago, onde me assustei ao encontrar um desenho muito parecido com uma suástica encravado em suas paredes. Ao questionar a pessoa que guiava nossa visita pelo espaço, fui informado de que aquele desenho já era um símbolo religioso muito antes de ser apropriado pelos nazistas como a marca de seu partido. Ainda que eu compreendesse a lógica explicada pelo guia, era difícil entender como naquele edifício, cuja construção tinha sido completada em 1953, o significado mais difundido que aquele símbolo tinha ganhado no século XX, ofensivo como era a milhões de pessoas, não tivesse sido levado em conta para que ele não fosse adotado na decoração das paredes.


Assim como os símbolos gráficos, as palavras também podem ganhar vida própria, como bem atestam os poetas. Palavras são muitas vezes escolhidas em alguns contextos pelos duplos significados que possuem, levando a situações cômicas, ou são evitadas exatamente porque podem ter seu significado mal interpretado.


A parashá desta semana, Tsáv, retorna ao tema dos sacrifícios animais, seus contextos e regras. Um dos tipos de sacrifícios oferecidos a Deus era a “olá”, na qual um animal era inteiramente queimado no altar. A tradução adotada para este termo para o grego foi “holokauston”, um conceito que já era conhecido de religiões helenísticas e que significava queima (kaustos) completa (holos) e que foi traduzido para o português como “holocausto”. 


No final do século XIX, a palavra “holocausto” passou a ser usada pela imprensa norte-americana para designar massacres de imensas proporções, como o genocídio armênio de 1915-1917. Ao final da Segunda Guerra, quando a dimensão total das atrocidades nazistas começou a ser revelada, “Holocausto” (agora escrita com inicial maiúscula e muitas vezes precedida pelo artigo definido “O”) passou muitas vezes a designar o quase-extermínio da população judaica da Europa, com o assassinato brutal e sistemático de 6 milhões de pessoas.


Assim como eu me assustei ao encontrar uma suástica em um templo religioso, muitas pessoas se assustam ao encontrar o termo “holocausto” em uma tradução da Torá, em particular em referência a uma prática religiosa. O assassinato sistemático de seres humanos e o descarte de seus corpos em fornos crematórios é a antítese da busca de relacionamento com o Divino – de tal forma, que muitos são os que rejeitam o termo “holocausto” para tratar deste trágico evento da história mundial e judaica. Entre os termos sugeridos como alternativa, “Shoá”, um termo bíblico que significa “catástrofe” acabou se transformando no termo adotado preferencialmente no mundo judaico para tratar destes eventos.


Enquanto a Shoá ainda estava em curso, um grupo de jovens militantes dos movimentos juvenis judaico-sionistas lideraram um levante contra as forças nazistas que esvaziavam o Gueto de Varsóvia e enviavam seus residentes para Campos de Extermínio. Na véspera de Pessach de 1943, que neste ano cairá na próxima quarta-feira (05/04), quando as forças da SS entraram no Gueto, se viram atacadas por combatentes judeus, que foram capazes de manter o combate por quase dois meses, constituindo um imenso ato de resistência frente a um exército em muito maior número, melhor treinado e com armamentos muito mais poderosos. Ao comentar o significado do Levante, um dos seus líderes, Itschak Cukierman, afirmou: 


“Não creio que seja realmente necessário analisar a Revolta em termos militares. Esta foi uma guerra de menos de mil pessoas contra um poderoso exército e ninguém duvidou de como seria. Este não é um assunto para estudar na escola militar. (...) Se existe uma escola para estudar o espírito humano, este deveria ser um grande tema de estudo. As coisas importantes eram inerentes à força demonstrada pela juventude judaica após anos de degradação, para se levantar contra seus destruidores e determinar qual morte escolheriam: Treblinka ou Revolta.” [1]


Neste ano, em que o Levante do Gueto de Varsóvia comemora 80 anos, a CIP homenageará sua história no Cabalat Shabat de 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.


Que neste shabat, possamos recuperar a força das palavras, dos símbolos e o controle sobre as nossas próprias histórias, valorizar a vida e a resistência em sua defesa. 


Shabat Shalom.



[1] http://bit.ly/3KkxwOO



sexta-feira, 24 de março de 2023

Dvar Torá: Justiça e democracia em Israel (CIP)


Na semana passada, eu estava dando uma aula sobre as novas tradições de Pessach, que é uma dos feriados judaicos mais antigos, dos que ainda são muito celebrados entre as famílias e nos quais, nas últimas décadas, nós encontramos mais inovação. Eu coleciono hagadot com propostas inovadoras e eu trouxe algumas pra mostrar para os alunos: uma hagadá surpreendentemente interessante e profunda que usa como pano de fundo Harry Potter e sua turma, uma hagadá como uma teologia linda escrita pelo poetisa Marcia Falk, algumas hagadot de sedarim de mulheres, uma hagadá que busca o diálogo inter-geracional, uma escrita por e para mulheres vítimas de violência doméstica, uma que conversa com os temas do movimento sindical, com questões dos refugiados contemporâneos. Uma hagadá linda e difícil, escrita por sobreviventes da Shoá para seu primeiro seder de Pessach depois de libertados dos campos de extermínio, ainda em um campo para refugiados em Munique. Lemos juntos um texto escrito por Arthur Waskow, um rabino vinculado ao movimento Renewal que escreveu sobre sua experiência comemorando Pessach apenas alguns dias depois do assassinato de Martin Luther King, enquanto o caos imperava nas ruas de Washington, onde ele vivia — toque de recolher, tanques nas ruas e centenas de manifestantes negros presos. No ônibus, Waskow ia planejando os detalhes do sêder, o momento do calendário judaico em que mais nos identificamos com os oprimidos. De repente, ele começou a cantarolar no ônibus: “Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder”. Naquele momento, ele tomou uma decisão importante na sua vida: “De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais, nunca mais, uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.” [1]

Esse é o dilema da vida religiosa — quando permitir que a recitação ritual tome o lugar da vida real, da conversa real e quando não. Muitas vezes, quando eu conduzo o serviço de Shacharit, eu digo que há toda uma sessão introdutória, chamada Psukei deZimrá, dedicada a permitir que esqueçamos dos problemas que nos acompanharam até aquele momento, de tal forma que possamos verdadeiramente nos dedicarmos à nossa vida interior. Uma vida espiritual equilibrada é uma necessidade de quem quer poder transformar objetivamente nossa realidade social: precisamos de força interna para lidarmos com as questões de todo dia e se não dedicarmos tempo a construí-la, também não temos como agir no mundo. E, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que há situações frente às quais focar exclusivamente na nossa realidade interior pode configurar uma heresia.

Algumas semanas atrás, em Shabat Shirá, quando lemos sobre a saída dos hebreus de Mitsrayim, o texto nos contava que quando o povo reclamava com Moshé por uma intervenção Divina, quando os soldados do Faraó os perseguiam de um lado e o Mar, ainda fechado, estava do outro, a resposta de Deus foi 

 מַה־תִּצְעַק אֵלָי?! דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי־יִשְׂרָאֵל וְיִסָּעוּ!! 

Por que você grita comigo?! 

Fale com os israelitas e que eles sigam em frente!! [2]

Há momentos em que, mais que reza, precisamos de ação ou pelo menos de solidariedade com quem age.

A sociedade israelense está em ebulição, como estava Washington naquele abril de 1968 seguindo o assassinato de Martin Luther King Jr. Há semanas que centenas de milhares de manifestantes têm saído às ruas de todo o país em protestos contra uma mudança tão radical no seus sistema judicial que os analistas dizem que comprometeria o caráter democrático do Estado de Israel. Uma explicação bastante superficial é que há dois pontos principais no projeto que tem avançado em velocidade recorde na Knesset: um ponto garante que a coalisão do governo indique a maioria dos membros da Suprema Corte. Outro ponto estabelece que a Knesset passe a poder derrubar decisões da Suprema Corte pela maioria simples de seus membros. Lembrem-se que uma das funções de cortes constitucionais, como é a Suprema Corte de Israel, é defender os direitos das minorias contra leis que infrinjam suas garantias legais. Da forma como a reforma judicial está proposta, direitos estabelecidos poderiam ser revogados com a anuência da coalisão da vez.

No mundo todo, comunidades judaicas têm se mobilizado, buscando reverter a proposta encaminhada ou desacelerar seu processo de aprovação, possibilitando que, através do diálogo entre os grupos políticos, uma proposta de consenso social possa ser formulada. Rabinos de todos os movimentos tem se manifestado pedindo ao governo de Israel que reconsidere sua proposta. A JFNA, a entidade guarda-chuva das Federações Judaicas nos Estados Unidos, emitiu uma carta aberta endereçada tanto ao primeiro ministro Biniamin Netaniahu quanto ao líder da Oposição, Yair Lapid, apontando para o impacto que uma mudança deste tipo teria na relação entre Israel e a comunidade judaica norte-americana [3]. Eles pediam, sem sucesso, que fosse adotada, no lugar do projeto encaminhado pelo governo, a proposta de  Itschak Herzog, o presidente de Israel [4].

Segmentos da comunidade judaica brasileira também têm se mobilizado em solidariedade aos manifestantes que pedem a proteção ao caráter democrática de Israel. Em uma carta endereçada ao governo israelense e assinada inicialmente por um grupo de entidades judaicas, incluindo a CIP [5], reafirmamos nosso Sionismo e compromisso com Israel como um Estado Judaico e Democrático e, reconhecemos o impacto que acontecimentos em Israel projetam sobre nós. Ao final do documento, “manifestamos nosso apoio e solidariedade aos israelenses que lutam pela manutenção da democracia, e conclamamos a população judaica brasileira para que faça o mesmo, repudiando qualquer ameaça ao Estado Democrático de Direito no país.”

Nesta semana começamos Vaicrá, o terceiro livro da Torá. Nesta primeira parashá, o texto trata de diversos tipos de sacrifícios, incluindo a “chatat” e o “asham”, ofertas para casos em que as pessoas deixavam de cumprir as instruções da Torá por negligência, descuido ou má fé [6]. Uma parte importante dessas regras dizia respeito à preservação da integridade do sistema judicial, garantindo que não houvessem testemunhos falsos nem omissão em testemunhos que poderiam inocentar um suspeito. 

A decisão sobre sua estrutura judicial pertence apenas aos israelenses, mas suas implicações claramente nos afetam também. Se informe sobre o processo em curso, procure formar a sua própria opinião e, se achar apropriado, se manifeste e ajude a defender a Democracia israelense!

Shabat Shalom!


 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Dvar Torá: O Bezerro de Ouro e a rejeição das evidências (CIP)


Você acredita em vida inteligente extraterrestre? Eu não consegui encontrar estatísticas para o Brasil, mas de acordo com uma pesquisa recente sobre a população norte-americana realizada pelo Pew Research Center, cerca de 2/3 da população americana acredita em inteligência existindo fora do nosso planeta. Como várias outras estatísticas, o índice muda bastante dependendo do sub-grupo da população que consideramos: 76% das pessoas entre 18-29 respondem favoravelmente enquanto apenas 56% das pessoas acima de 65 anos respondem da mesma forma. 69% das pessoas asiáticas concordam que há vida inteligente em outros planetas enquanto apenas 61% das pessoas negras dizem o mesmo. O curioso pra mim foi ver como a religião impacta estes números: para pessoas que dizem que a religião é muito importante para elas, apenas 49% declararam acreditar em vida inteligente extraterrestre, enquanto para pessoas para quem a religião não é nada importante, 83% responderam da mesma forma.

Vamos, só para um exercício mental, imaginar que você NÃO acredite em vida inteligente fora da Terra. Então, um dia, você acorda e encontra o céu lilás, com uma imensa espaçonave estacionada no meio do céu. Você liga a TV e descobre que a mesma coisa aconteceu ao redor de todo o mundo; que todas as 8 bilhões de pessoas que vivem no mundo estão vendo uma espaçonave flutuando sobre suas cabeças. Eu gostaria de imaginar que a imensa maioria das pessoas, mesmo aquelas que se declaravam absolutamente convencidas de que não existia vida inteligente em outros planetas, teria mudado de opinião, considerando a força da evidência que lhes foi apresentada.

Eu digo “gostaria de imaginar” porque os fatos e as evidências têm perdido cada vez mais sua potência de convencimento frente às crenças e às opiniões. Se alguém acredita que seres humanos e todos os animais foram criados no 6º dia da Criação e lhe é apresentada evidência de que os  dinossauros viveram 65 milhões de anos antes do aparecimento dos primeiros humanos, a pessoa pode responder que os dinossauros carregados na Arca de Noé eram bebês ou que as inúmeras lendas sobre dragões são evidência de que a humanidade e os dinossauros viveram ao mesmo tempo. A minha favorita, que parece estar caindo de moda mesmo entre os criacionistas, diz que os fósseis de dinossauros que indicam que eles são milhões de anos mais velhos que os humanos, são “evidência plantada” para testar nossa fé. 

Podemos encontrar exemplos mais recentes e relevantes de como as evidências estão perdendo importância — as dúvidas crescentes sobre a eficiência das vacinas, mesmo depois de termos praticamente erradicado o sarampo, a poliomielite, a rubéola e a difteria no Brasil, graças a campanhas extremamente bem sucedidas de vacinação. Se olharmos as curvas de infecções e mortes por Covid dos últimos três anos, perceberemos que, após a introdução da vacinação, a doença se tornou muito menos transmissível e, ainda mais importante, muito menos letal. Há quem não acredite que a terra seja uma esfera, apesar de continuar assistindo programas transmitidos por satélites estacionados sobre o globo terrestre. Meu pai, que fumava dois maços de cigarro por dia, estava entre as pessoas que se recusavam a aceitar qualquer relação entre o fumo e o câncer — nem preciso dizer que ele faleceu de câncer do pulmão aos 66 anos.

Na parashá desta semana, a narrativa, que estava focada nas instruções para a construção do Mishcán, retorna ao momento em que Moshé subiu ao Monte Sinai para receber a Torá. Ao final dos 40 dias em que ele passa lá, Deus pede que ele se apresse pois o povo havia agido de forma detestável. Eles tinham construído um bezerro de ouro e disseram: “este é o seu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito.”

O povo, que tinha acabado de ser libertado do Egito através da ação Divina em 10 golpes que iam da transformação da água do rio Nilo em Sangue à morte de todos os primogênitos do Egito, que tinha visto o mar se abrir à sua frente para que pudessem cruzar em segurança e como ele tinha se fechado afogando as tropas egípcias que os perseguiam; o mesmo povo que tinha vivenciado as primeiras Dez Afirmações da Revelação no Monte Sinai e que, amedrontado, tinha pedido a Moshé que só ele falasse com Deus dali pra diante. Esse povo, que tinha recebido todas estas evidências da sua relação especial com Deus, tinha resolvido negá-las e adotar uma escultura de ouro, que eles mesmos tinham criado a partir de seus brincos, como seu redentor.

Ninguém precisa acreditar nessa história de forma literal para perceber que há aqui um processo de construção de realidade paralela desconectada da experiência que cada uma daquelas duas milhões de pessoas tinha vivenciado.

Por que será que é tão fácil nos deixarmos seduzir por narrativas paralelas deste tipo, desconectadas de toda evidência empírica que temos a nosso dispor?

As pessoas que estudam este fenômeno, o negacionismo, falam em quatro motivos para que as pessoas neguem as evidências desta forma:

1- a informação vem de uma fonte que eles percebem como não confiável, em particular com viés contrário às posições na qual essas pessoas acreditam (como uma abordagem anti-religiosa, por exemplo)

2- pertencimento a um grupo social que se opõe a esta perspectiva. Eu recentemente escutei em um podcast que algumas pessoas iam se vacinar fantasiadas para garantir que seus amigos, contrários à vacinação, não soubessem que elas tinham quebrado as normas do grupo; 

3- a informação contradiz o que eles acreditam ser verdadeiro, bom ou valioso. Neste caso, há uma contradição entre a conclusão para a qual as evidências apontam e algum valor muito importante para estas pessoas e elas se recusam a abrir mão dele. Naomi Oreskes, professora de história da ciência na Universidade de Harvard, “essas pessoas não rejeitam a ciência porque não têm fatos suficientes. Eles rejeitam a ciência porque acham que ela vai contra seus valores ou ideologia”.  O resultado desta negação das evidências leva a uma dissonância cognitiva, que gera desconforto. Um artigo publicado nos anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos afirma que “dado esse sentimento aversivo, as pessoas são motivadas a resolver a contradição e eliminar o desconforto de várias maneiras, como rejeitar a nova informação, banalizar o tópico, racionalizar que não há contradição ou revisar seu pensamento existente (…) Criticamente, as pessoas tendem a resolver a dissonância usando o caminho de menor resistência. Para uma pessoa que fumou a vida toda, é muito mais fácil rejeitar ou banalizar as evidências científicas sobre os riscos do fumo à saúde do que alterar seu hábito arraigado. Com a dissonância, a intransigência das crenças existentes se assemelha à rigidez dos comportamentos existentes: é mais fácil rejeitar uma informação científica do que revisar todo um sistema de crenças existentes que se acumulou e integrou a uma visão de mundo ao longo dos anos, muitas vezes reforçada pela influência social. consenso.”.

4- a informação é entregue usando uma linguagem ou meio diferente daquele como a pessoa concebe este assunto. Por exemplo, quando ações concretas de consumo ético são propostos para resolver quetões consideradas abstratas como a mudança climática ou exploração do trabalho em formas análogas à escravidão, muitas vezes elas são rejeitadas de cara, sem que seu mérito seja considerado.

Todos nós rejeitamos a evidência uma vez ou outra. Algumas vezes são questões banais com a qual ninguém se importa realmente. Outras, são questões que determinam o destino de toda uma geração, como o que aconteceu com a geração do Êxodo e sua falta de entendimento de que havia sido ה׳, um Deus sem corpo, diferente das divindades que o povo tinha conhecido no Egito, que os tinha redimido da escravidão; ou a qualidade da vida que nossos descendentes terão neste planeta quando as temperaturas médias crescentes levarem a desastres naturais ainda mais radicais e devastadores do que os temos vivenciado nos últimos anos; ou ainda o retorno de doenças que haviam sido erradicadas do Brasil e que retornaram porque as pessoas deixaram de acreditar na eficiência e necessidade da vacinação de todos.

Após todas as crises, nossa parashá avança para um final feliz, com Deus e Moshé se encontrando face-a-face e Moshé retornando ao Monte Sinai para, depois de 40 dias sem incidentes, descer com o segundo jogo de tábuas da Lei. De acordo com o rabino Art Green, a relação renegociada entre Deus e o povo Judeu. As primeiras tábuas tinham sido obra do trabalho exclusivo de Deus, como se um lado tentasse impor ao outro as condições do Pacto. O segundo jogo de tábuas foram resultado conjunto do trabalho humano e Divino, condições mutuamente pactuadas e que, portanto, acolhiam e obrigavam a todos.

Que consigamos todos re-pactuar as condições da nossa convivência social, de tal forma que consigamos aceitar como verdadeiras as evidências à nossa frente e adotar condutas que amenizem os riscos e potencializem os ganhos para nossa vida conjunta nesse país e nesse planeta.

Shabat Shalom!

 

quinta-feira, 2 de março de 2023

Uma luz ou muitas luzes?


Outro dia, eu estava assistindo um daqueles programas que tratam do noticiário com humor, no qual eles falavam das inúmeras violações dos Direitos Humanos que estavam envolvidos na preparação do Qatar para sediar a Copa do Mundo em dezembro passado [1]. Em uma das declarações, um dirigente da FIFA afirmou que a organização encontrava dificuldades em trabalhar com governos democráticos pelos múltiplos agentes com que precisava negociar e que a organização de grandes eventos era facilitada quando os países tinham governos autoritários. Ainda que a sinceridade de sua manifestação nos choque, não são raras as pessoas que acreditam que uma unicidade de visão garanta maior coerência a um grupo (qualquer que seja seu tamanho) do que a pluralidade de ideias distintas. Em oposição a esta perspectiva, há quem acredite que o debate estabelecido entre perspectivas distintas aprimora e fortalece os processos, ainda que eles se tornem mais complexos e demorados.


A parashá desta semana, Tetsavê, começa com  instruções para o estabelecimento de luzes, que ficariam permanentemente acesas no Mishkán [2]. No entanto, a frase seguinte instrui Moshé e Aharón a acenderem as velas desde a tarde até a noite. Frente a esta aparente contradição, vários comentaristas questionaram se as luzes deveriam ficar acesas o tempo todo ou apenas quando estivesse escuro. A solução, em uma abordagem classicamente judaica (e rabínica!) foi afirmar que as duas leituras tinham razão…. Uma única luz era mantida acesa durante o dia, enquanto as demais luzes da menorá eram acesas apenas entre o entardecer e o amanhecer, quando a escuridão da noite demandava iluminação adicional para aquele lugar sagrado.


Há momentos da nossa história que têm grande clareza: todos concordamos sobre aonde queremos chegar e quais os melhores caminhos para atingir nossos objetivos comuns. Nestes períodos, podemos ser iluminados por apenas uma luz, ao redor da qual todos nos alinhamos. O filósofo israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), no entanto, nos alerta para que situações deste tipo não se tornem totalitárias: “uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que essa.” [3]


Voltando à instrução da parashá, nos períodos mais escuros do dia, várias velas eram acesas para gerar a luz necessária, mesmo que a luz resultante fosse mais difusa do que a luz emanada por uma única vela. De forma similar, em situações nas quais, naturalmente, existe divergência de opiniões, é fundamental que as múltiplas vozes sejam consideradas, mesmo que assim o processo se torne menos ágil. A clareza decorrente de uma única opinião geralmente é pálida frente à sofisticação e complexidade que advém do contraste de pontos de vista conflitantes. O filósofo russo Vladimir Lossky formulou esta ideia de forma particularmente afiada com relação à teologia, mas seu argumento se mantém válido também em outros campos do conhecimento: “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia, do que uma clareza superficial em detrimento de uma análise profunda.” O rabino Joseph Soloveitchik, principal referência da Ortodoxia Moderna norte-americana, expressou uma ideia similar, em uma perspectiva metafórica e  igualmente teológica e que me lembra a cúpula da sinagoga na CIP: “A luz branca da divindade é sempre refratada através da cúpula da realidade composta por muitos vidros coloridos.”


Quem em nossa busca pela luz em meio à escuridão, nunca abramos mão do brilho da nossa própria vela, e aprendamos a aproveitar a força que decorre das múltiplas velas na menorá..


Shabat Shalom!





[1] https://youtu.be/UMqLDhl8PXw

[2] Ex. 27:20

[3] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Cap. 2: Bereshit - Noach


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Dvar Torá: Criatividade sem narcisismo; tradição sem imobilismo (CIP)


Sabe quando você é criança e faz o desenho clássico: uma casa com chaminé, uma árvore do lado de fora, uma cerca baixa, alguns adultos e algumas crianças. Quando você fazia desenhos assim, tinha uma casa específica em mente? Não era exatamente nessa época, mas em algum momento da minha vida eu passei a ter uma casa dos meus sonhos, que existe na realidade. Ela fica na Philadelphia e foi desenhada por Frank Lloyd Wright, um dos maiores arquitetos dos Estados Unidos. Sua obra mais famosa, provavelmente, é o museu Guggenheim em Nova York, mas o projeto pelo qual eu me apaixonei tantos anos atrás se chama Fallingwater e é uma residência construída sobre uma cachoeira [1]. O projeto, de 1935, foi eleito em 1991 pelo Instituto Americano de Arquitetos como o melhor trabalho de arquitetura de todos os tempos nos EUA. Eu nunca foi visitar Fallingwater mas na primeira vez que eu fui a Chicago, eu fui visitar alguns bairros que concentram casas cujos projetos eram assinados por Wright. Nessas casas de classe média, me impressionava como o arquiteto não tinha se limitado a desenhar o projeto da casa, mas tinha também desenhado os móveis, os vitrais e vários outros detalhes que tornavam o projeto muito mais interessante e rico. Cada projeto era autenticamente único, dotado de sua própria personalidade.

Fiquei lembrando destas visitas quando li a parashá desta semana. Aqui, Deus começa a instruir Moshé sobre a construção do Mishcán — o santuário portátil que os hebreus usaram antes que o Templo fosse construído em Jerusalém, incluindo os 40 anos durante os quais eles vagaram pelo deserto.

As instruções tem seus aspectos gerais, que dão forma ao projeto e suas dimensões totais de 5m x 15m e uma infinidade de detalhes. Há instruções para os materiais que darão estrutura e aparência ao projeto, a forma de construção da menorá e onde ela deveria ser colocada no projeto, a localização do kodesh ha-kodashim, o lugar mais sagrado daquela construção, onde ficava depositada a Arca da Aliança. Tem instruções para os dois querubins que ficarão sobre a arca, um olhando para o outro e para a cortina que separa o espaço mais sagrado do resto da construção.

Alguns autores destacam que alguns elementos da construção do Mishcán continuam presentes na arquitetura de sinagogas contemporâneas, como esta sinagoga Etz Chayim da CIP. A localização da Bimá e do Arón haCódesh, por exemplo, remontam a onde ficavam o Kodesh haKodashim e a Arca da Aliança. Assim como no projeto original, temos objetos rituais e simbólicos, como a Menorá, que temos aqui na CIP.

E, por outro lado, podemos ver uma série de diferenças também. Até mesmo com relação à menorá, as instruções que recebemos na parashá desta semana usam diversas referências da árvore da amendoeira, seus copos, cálices e pétalas — muito pouco a ver com leitura moderna da menorá que temos aqui na sinagoga. 

O diálogo entre a tradição e a inovação tem sido marcas registradas da vivência judaica, incluindo no que tange à arquitetura de nossas sinagogas mas será que há uma combinação ideal entre esses elementos?

Há alguns meses o Ale Edelstein me deu um livro chamado “O Desaparecimento dos Rituais” do filósofo coreano Byung-Chul Han. Eu demorei um pouco para começar a lê-lo, mas ele tem tido um impacto grande na forma como eu penso o equilíbrio entre tradição e inovação. Han é crítico de diversas características da nossa época e contam que ele se recusa a usar smart phones e só escuta música analógica [2]. Além disso, ele critica o narcisismo da nossa presença nas mídias sociais e que transborda também para aspectos da nossa vivência do mundo concreto.

Segundo ele, a força dos rituais no passado vinha do fato de que todos seguiam o mesmo roteiro. Quando alguém queria se casar, queria  ser participante ativo de um processo que conhecia, pro ter sido participante passivo muitas vezes antes. A repetição do roteiro lhe conferia força simbólica e alimentava uma comunidade na qual estes símbolos estavam imbuídos de significado. Em nossos dias, no entanto, “repetição” tornou-se uma palavra proibida, sinônimo de coisa chata e despida de significado. Quando nos casamos, procuramos uma cerimônia que seja única, que tenha personalidade, que reflita exatamente quem nós somos. Na busca narcísica pelo significado individualizado, abrimos mão dos símbolos compartilhados. Nas palavras de Han, passamos a criar uma comunicação sem comunidade [3] — na qual os símbolos já não têm mais força simbólica ou significado.

Quem me conhece saberá que esta crítica me pegou em cheio. Quando eu me casei, e lá se vão pouco mais de 20 anos, procuramos desenhar uma cerimônias que, de fato, refletisse quem nós éramos, ainda que neste processo abríssemos mão de práticas mais tradicionais. Na minha vida judaica pessoal e no meu rabinato, eu sempre procurei desenvolver caminhos nutridos por uma visão judaica de mundo e que fossem significativos para aqueles que o percorrem, mesmo que eles não fossem propriamente tradicionais. Depois de ler “O Desaparecimento dos Rituais”, eu tenho me perguntando se esta postura não tem alimentado condutas corrosivas em que a comunidade acaba se decompondo no processo de  abrir espaço para as manifestações do ego de seus membros. Qual o espaço do comum nestas vivências?

Parece que a pandemia acelerou estes processos de desestruturação comunitária, ao permitir que a participação nos rituais aconteça com um mínimo de comprometimento ou até sem comprometimento algum: de camisola ou pijama, cozinhando, analisando um orçamento; a câmera desligada, a atenção só tangencialmente vinculada ao que está acontecendo.

E, de outro lado, eu tenho visto uma explosão de criatividade na vida judaica, incorporando a participação ativa de pessoas que, de outra forma não poderiam ter este vínculo comunitário; desenvolvendo novos rituais profundamente significativos na vida de comunidades inteiras; permitindo que segmentos historicamente oprimidos e cujas vozes e perspectivas não tinham até agora sido incluídas nas nossas bibliotecas e práticas rituais possam finalmente se sentirem ouvidas, enxergadas, apreciadas.

Frank Lloyd Wright foi um gênio da arquitetura. Suas obras transmitiam, simultaneamente, caráter e o conforto do conhecido. Diferente de outros mestres cujos projetos são famosamente inapropriados para quem vive neles, as obras de Wright parecem combinar na medida certa inovação e aconchego.

Que possamos também encontrar o equilíbrio em nossas vidas religiosas, mantendo vínculos profundos com a tradição ao mesmo tempo em que não tenhamos medo de inovar; que a experiência comunitária não seja decomposta pelas manifestações narcísicas nem que o peso do coletivo impeça que cada um escute também sua própria voz no grande coral comunitário.

Shabat Shalom!

 

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Fallingwater

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Byung-Chul_Han

[3] Byung-Chul Han, O desaparecimento dos rituais:Uma topologia do presente, (2019), p. 9