sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Dvar Torá: Criatividade sem narcisismo; tradição sem imobilismo (CIP)


Sabe quando você é criança e faz o desenho clássico: uma casa com chaminé, uma árvore do lado de fora, uma cerca baixa, alguns adultos e algumas crianças. Quando você fazia desenhos assim, tinha uma casa específica em mente? Não era exatamente nessa época, mas em algum momento da minha vida eu passei a ter uma casa dos meus sonhos, que existe na realidade. Ela fica na Philadelphia e foi desenhada por Frank Lloyd Wright, um dos maiores arquitetos dos Estados Unidos. Sua obra mais famosa, provavelmente, é o museu Guggenheim em Nova York, mas o projeto pelo qual eu me apaixonei tantos anos atrás se chama Fallingwater e é uma residência construída sobre uma cachoeira [1]. O projeto, de 1935, foi eleito em 1991 pelo Instituto Americano de Arquitetos como o melhor trabalho de arquitetura de todos os tempos nos EUA. Eu nunca foi visitar Fallingwater mas na primeira vez que eu fui a Chicago, eu fui visitar alguns bairros que concentram casas cujos projetos eram assinados por Wright. Nessas casas de classe média, me impressionava como o arquiteto não tinha se limitado a desenhar o projeto da casa, mas tinha também desenhado os móveis, os vitrais e vários outros detalhes que tornavam o projeto muito mais interessante e rico. Cada projeto era autenticamente único, dotado de sua própria personalidade.

Fiquei lembrando destas visitas quando li a parashá desta semana. Aqui, Deus começa a instruir Moshé sobre a construção do Mishcán — o santuário portátil que os hebreus usaram antes que o Templo fosse construído em Jerusalém, incluindo os 40 anos durante os quais eles vagaram pelo deserto.

As instruções tem seus aspectos gerais, que dão forma ao projeto e suas dimensões totais de 5m x 15m e uma infinidade de detalhes. Há instruções para os materiais que darão estrutura e aparência ao projeto, a forma de construção da menorá e onde ela deveria ser colocada no projeto, a localização do kodesh ha-kodashim, o lugar mais sagrado daquela construção, onde ficava depositada a Arca da Aliança. Tem instruções para os dois querubins que ficarão sobre a arca, um olhando para o outro e para a cortina que separa o espaço mais sagrado do resto da construção.

Alguns autores destacam que alguns elementos da construção do Mishcán continuam presentes na arquitetura de sinagogas contemporâneas, como esta sinagoga Etz Chayim da CIP. A localização da Bimá e do Arón haCódesh, por exemplo, remontam a onde ficavam o Kodesh haKodashim e a Arca da Aliança. Assim como no projeto original, temos objetos rituais e simbólicos, como a Menorá, que temos aqui na CIP.

E, por outro lado, podemos ver uma série de diferenças também. Até mesmo com relação à menorá, as instruções que recebemos na parashá desta semana usam diversas referências da árvore da amendoeira, seus copos, cálices e pétalas — muito pouco a ver com leitura moderna da menorá que temos aqui na sinagoga. 

O diálogo entre a tradição e a inovação tem sido marcas registradas da vivência judaica, incluindo no que tange à arquitetura de nossas sinagogas mas será que há uma combinação ideal entre esses elementos?

Há alguns meses o Ale Edelstein me deu um livro chamado “O Desaparecimento dos Rituais” do filósofo coreano Byung-Chul Han. Eu demorei um pouco para começar a lê-lo, mas ele tem tido um impacto grande na forma como eu penso o equilíbrio entre tradição e inovação. Han é crítico de diversas características da nossa época e contam que ele se recusa a usar smart phones e só escuta música analógica [2]. Além disso, ele critica o narcisismo da nossa presença nas mídias sociais e que transborda também para aspectos da nossa vivência do mundo concreto.

Segundo ele, a força dos rituais no passado vinha do fato de que todos seguiam o mesmo roteiro. Quando alguém queria se casar, queria  ser participante ativo de um processo que conhecia, pro ter sido participante passivo muitas vezes antes. A repetição do roteiro lhe conferia força simbólica e alimentava uma comunidade na qual estes símbolos estavam imbuídos de significado. Em nossos dias, no entanto, “repetição” tornou-se uma palavra proibida, sinônimo de coisa chata e despida de significado. Quando nos casamos, procuramos uma cerimônia que seja única, que tenha personalidade, que reflita exatamente quem nós somos. Na busca narcísica pelo significado individualizado, abrimos mão dos símbolos compartilhados. Nas palavras de Han, passamos a criar uma comunicação sem comunidade [3] — na qual os símbolos já não têm mais força simbólica ou significado.

Quem me conhece saberá que esta crítica me pegou em cheio. Quando eu me casei, e lá se vão pouco mais de 20 anos, procuramos desenhar uma cerimônias que, de fato, refletisse quem nós éramos, ainda que neste processo abríssemos mão de práticas mais tradicionais. Na minha vida judaica pessoal e no meu rabinato, eu sempre procurei desenvolver caminhos nutridos por uma visão judaica de mundo e que fossem significativos para aqueles que o percorrem, mesmo que eles não fossem propriamente tradicionais. Depois de ler “O Desaparecimento dos Rituais”, eu tenho me perguntando se esta postura não tem alimentado condutas corrosivas em que a comunidade acaba se decompondo no processo de  abrir espaço para as manifestações do ego de seus membros. Qual o espaço do comum nestas vivências?

Parece que a pandemia acelerou estes processos de desestruturação comunitária, ao permitir que a participação nos rituais aconteça com um mínimo de comprometimento ou até sem comprometimento algum: de camisola ou pijama, cozinhando, analisando um orçamento; a câmera desligada, a atenção só tangencialmente vinculada ao que está acontecendo.

E, de outro lado, eu tenho visto uma explosão de criatividade na vida judaica, incorporando a participação ativa de pessoas que, de outra forma não poderiam ter este vínculo comunitário; desenvolvendo novos rituais profundamente significativos na vida de comunidades inteiras; permitindo que segmentos historicamente oprimidos e cujas vozes e perspectivas não tinham até agora sido incluídas nas nossas bibliotecas e práticas rituais possam finalmente se sentirem ouvidas, enxergadas, apreciadas.

Frank Lloyd Wright foi um gênio da arquitetura. Suas obras transmitiam, simultaneamente, caráter e o conforto do conhecido. Diferente de outros mestres cujos projetos são famosamente inapropriados para quem vive neles, as obras de Wright parecem combinar na medida certa inovação e aconchego.

Que possamos também encontrar o equilíbrio em nossas vidas religiosas, mantendo vínculos profundos com a tradição ao mesmo tempo em que não tenhamos medo de inovar; que a experiência comunitária não seja decomposta pelas manifestações narcísicas nem que o peso do coletivo impeça que cada um escute também sua própria voz no grande coral comunitário.

Shabat Shalom!

 

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Fallingwater

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Byung-Chul_Han

[3] Byung-Chul Han, O desaparecimento dos rituais:Uma topologia do presente, (2019), p. 9


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