sexta-feira, 10 de março de 2023

Dvar Torá: O Bezerro de Ouro e a rejeição das evidências (CIP)


Você acredita em vida inteligente extraterrestre? Eu não consegui encontrar estatísticas para o Brasil, mas de acordo com uma pesquisa recente sobre a população norte-americana realizada pelo Pew Research Center, cerca de 2/3 da população americana acredita em inteligência existindo fora do nosso planeta. Como várias outras estatísticas, o índice muda bastante dependendo do sub-grupo da população que consideramos: 76% das pessoas entre 18-29 respondem favoravelmente enquanto apenas 56% das pessoas acima de 65 anos respondem da mesma forma. 69% das pessoas asiáticas concordam que há vida inteligente em outros planetas enquanto apenas 61% das pessoas negras dizem o mesmo. O curioso pra mim foi ver como a religião impacta estes números: para pessoas que dizem que a religião é muito importante para elas, apenas 49% declararam acreditar em vida inteligente extraterrestre, enquanto para pessoas para quem a religião não é nada importante, 83% responderam da mesma forma.

Vamos, só para um exercício mental, imaginar que você NÃO acredite em vida inteligente fora da Terra. Então, um dia, você acorda e encontra o céu lilás, com uma imensa espaçonave estacionada no meio do céu. Você liga a TV e descobre que a mesma coisa aconteceu ao redor de todo o mundo; que todas as 8 bilhões de pessoas que vivem no mundo estão vendo uma espaçonave flutuando sobre suas cabeças. Eu gostaria de imaginar que a imensa maioria das pessoas, mesmo aquelas que se declaravam absolutamente convencidas de que não existia vida inteligente em outros planetas, teria mudado de opinião, considerando a força da evidência que lhes foi apresentada.

Eu digo “gostaria de imaginar” porque os fatos e as evidências têm perdido cada vez mais sua potência de convencimento frente às crenças e às opiniões. Se alguém acredita que seres humanos e todos os animais foram criados no 6º dia da Criação e lhe é apresentada evidência de que os  dinossauros viveram 65 milhões de anos antes do aparecimento dos primeiros humanos, a pessoa pode responder que os dinossauros carregados na Arca de Noé eram bebês ou que as inúmeras lendas sobre dragões são evidência de que a humanidade e os dinossauros viveram ao mesmo tempo. A minha favorita, que parece estar caindo de moda mesmo entre os criacionistas, diz que os fósseis de dinossauros que indicam que eles são milhões de anos mais velhos que os humanos, são “evidência plantada” para testar nossa fé. 

Podemos encontrar exemplos mais recentes e relevantes de como as evidências estão perdendo importância — as dúvidas crescentes sobre a eficiência das vacinas, mesmo depois de termos praticamente erradicado o sarampo, a poliomielite, a rubéola e a difteria no Brasil, graças a campanhas extremamente bem sucedidas de vacinação. Se olharmos as curvas de infecções e mortes por Covid dos últimos três anos, perceberemos que, após a introdução da vacinação, a doença se tornou muito menos transmissível e, ainda mais importante, muito menos letal. Há quem não acredite que a terra seja uma esfera, apesar de continuar assistindo programas transmitidos por satélites estacionados sobre o globo terrestre. Meu pai, que fumava dois maços de cigarro por dia, estava entre as pessoas que se recusavam a aceitar qualquer relação entre o fumo e o câncer — nem preciso dizer que ele faleceu de câncer do pulmão aos 66 anos.

Na parashá desta semana, a narrativa, que estava focada nas instruções para a construção do Mishcán, retorna ao momento em que Moshé subiu ao Monte Sinai para receber a Torá. Ao final dos 40 dias em que ele passa lá, Deus pede que ele se apresse pois o povo havia agido de forma detestável. Eles tinham construído um bezerro de ouro e disseram: “este é o seu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito.”

O povo, que tinha acabado de ser libertado do Egito através da ação Divina em 10 golpes que iam da transformação da água do rio Nilo em Sangue à morte de todos os primogênitos do Egito, que tinha visto o mar se abrir à sua frente para que pudessem cruzar em segurança e como ele tinha se fechado afogando as tropas egípcias que os perseguiam; o mesmo povo que tinha vivenciado as primeiras Dez Afirmações da Revelação no Monte Sinai e que, amedrontado, tinha pedido a Moshé que só ele falasse com Deus dali pra diante. Esse povo, que tinha recebido todas estas evidências da sua relação especial com Deus, tinha resolvido negá-las e adotar uma escultura de ouro, que eles mesmos tinham criado a partir de seus brincos, como seu redentor.

Ninguém precisa acreditar nessa história de forma literal para perceber que há aqui um processo de construção de realidade paralela desconectada da experiência que cada uma daquelas duas milhões de pessoas tinha vivenciado.

Por que será que é tão fácil nos deixarmos seduzir por narrativas paralelas deste tipo, desconectadas de toda evidência empírica que temos a nosso dispor?

As pessoas que estudam este fenômeno, o negacionismo, falam em quatro motivos para que as pessoas neguem as evidências desta forma:

1- a informação vem de uma fonte que eles percebem como não confiável, em particular com viés contrário às posições na qual essas pessoas acreditam (como uma abordagem anti-religiosa, por exemplo)

2- pertencimento a um grupo social que se opõe a esta perspectiva. Eu recentemente escutei em um podcast que algumas pessoas iam se vacinar fantasiadas para garantir que seus amigos, contrários à vacinação, não soubessem que elas tinham quebrado as normas do grupo; 

3- a informação contradiz o que eles acreditam ser verdadeiro, bom ou valioso. Neste caso, há uma contradição entre a conclusão para a qual as evidências apontam e algum valor muito importante para estas pessoas e elas se recusam a abrir mão dele. Naomi Oreskes, professora de história da ciência na Universidade de Harvard, “essas pessoas não rejeitam a ciência porque não têm fatos suficientes. Eles rejeitam a ciência porque acham que ela vai contra seus valores ou ideologia”.  O resultado desta negação das evidências leva a uma dissonância cognitiva, que gera desconforto. Um artigo publicado nos anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos afirma que “dado esse sentimento aversivo, as pessoas são motivadas a resolver a contradição e eliminar o desconforto de várias maneiras, como rejeitar a nova informação, banalizar o tópico, racionalizar que não há contradição ou revisar seu pensamento existente (…) Criticamente, as pessoas tendem a resolver a dissonância usando o caminho de menor resistência. Para uma pessoa que fumou a vida toda, é muito mais fácil rejeitar ou banalizar as evidências científicas sobre os riscos do fumo à saúde do que alterar seu hábito arraigado. Com a dissonância, a intransigência das crenças existentes se assemelha à rigidez dos comportamentos existentes: é mais fácil rejeitar uma informação científica do que revisar todo um sistema de crenças existentes que se acumulou e integrou a uma visão de mundo ao longo dos anos, muitas vezes reforçada pela influência social. consenso.”.

4- a informação é entregue usando uma linguagem ou meio diferente daquele como a pessoa concebe este assunto. Por exemplo, quando ações concretas de consumo ético são propostos para resolver quetões consideradas abstratas como a mudança climática ou exploração do trabalho em formas análogas à escravidão, muitas vezes elas são rejeitadas de cara, sem que seu mérito seja considerado.

Todos nós rejeitamos a evidência uma vez ou outra. Algumas vezes são questões banais com a qual ninguém se importa realmente. Outras, são questões que determinam o destino de toda uma geração, como o que aconteceu com a geração do Êxodo e sua falta de entendimento de que havia sido ה׳, um Deus sem corpo, diferente das divindades que o povo tinha conhecido no Egito, que os tinha redimido da escravidão; ou a qualidade da vida que nossos descendentes terão neste planeta quando as temperaturas médias crescentes levarem a desastres naturais ainda mais radicais e devastadores do que os temos vivenciado nos últimos anos; ou ainda o retorno de doenças que haviam sido erradicadas do Brasil e que retornaram porque as pessoas deixaram de acreditar na eficiência e necessidade da vacinação de todos.

Após todas as crises, nossa parashá avança para um final feliz, com Deus e Moshé se encontrando face-a-face e Moshé retornando ao Monte Sinai para, depois de 40 dias sem incidentes, descer com o segundo jogo de tábuas da Lei. De acordo com o rabino Art Green, a relação renegociada entre Deus e o povo Judeu. As primeiras tábuas tinham sido obra do trabalho exclusivo de Deus, como se um lado tentasse impor ao outro as condições do Pacto. O segundo jogo de tábuas foram resultado conjunto do trabalho humano e Divino, condições mutuamente pactuadas e que, portanto, acolhiam e obrigavam a todos.

Que consigamos todos re-pactuar as condições da nossa convivência social, de tal forma que consigamos aceitar como verdadeiras as evidências à nossa frente e adotar condutas que amenizem os riscos e potencializem os ganhos para nossa vida conjunta nesse país e nesse planeta.

Shabat Shalom!

 

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