quinta-feira, 28 de julho de 2022

Moshé é de Vênus, as tribos são de Marte

Eu li uma vez um livro cuja tese central é que homens e mulheres operam de acordo com modelos mentais distintos. Em um dos primeiros exemplos do livro, a esposa pergunta se eles podem ir visitar sua família no final de semana e o marido responde que eles podem, se ela quiser. Ela se ofende, entendendo que ele está tratando a questão como uma concessão a ela e ele não consegue entender por que ela está ofendida se ele concordou com o pedido que ela havia feito. Apesar das generalizações de gênero, os exemplos dados no livro eram interessantes para entender como pessoas cheias de boas intenções e sem motivos efetivos para discórdia podem entrar em conflito simplesmente por falhas de comunicação – porque operam de acordo com modelos mentais distintos e preenchem as lacunas em branco que toda comunicação tem, baseados em seus próprios pressupostos e não nos da pessoa com quem estão conversando. 

Na parashá desta semana, temos um destes exemplos de falha de comunicação que quase termina em um grande conflito. O povo de Israel está chegando à Terra Prometida e as tribos de Reuven e Gad abordam Moshé com uma proposta: como eles tinham bastante gado e tinham percebido que a terra ao leste do rio Jordão era adequada para a criação de animais, eles pediam para receber porções de terra neste território ao invés do território a oeste do Jordão, no qual eles estavam prestes a entrar.

A resposta de Moshé foi bastante forte em rejeitar a proposta. Assumindo que o pedido vinha acompanhado da intenção de não cruzar o rio Jordão com o resto do povo e, desta forma, não fazer parte dos esforços de guerra do qual todos esperavam que eles participassem, Moshé estabeleceu um paralelo entre a conduta das duas tribos e aquela dos dez enviados para investigar a terra que voltaram falando da impossibilidade de conquistarem o território que Deus havia lhes prometido e, desta forma, tinham convencido o povo de Israel que melhor seria morrer no deserto ou voltar para o Egito.

Em sua proposta, no entanto, as tribos de Reuven e Gad não se recusavam a marchar com as demais tribos e a ajudar a conquistar a terra de Israel. Seu pedido, como esclareceram na sequência, era para que, uma vez tendo conquistada toda a terra, que eles pudessem receber os territórios a leste do rio Jordão.

Muitas vezes cometemos este mesmo erro. Assumimos, sem perguntar, as motivações de outras pessoas ou a entonação incorreta para algumas expressões. Muitas vezes, uma vírgula mudaria completamente o significado de uma frase e, sem ter percebido isso, saímos agindo, acreditando que sabemos o que ela queria dizer. Certa vez perguntei a um amigo se ele tinha conseguido fazer algo que almejava muito mas que era difícil de conseguir. “Não foi por falta de oportunidade”, ele me respondeu. Vendo minha expressão de choque, ele se corrigiu: “Não foi, ‘vírgula’, por falta de oportunidade.”

Na pressa de hoje, com conversas corridas e mensagens instantâneas sem pontuação ou entonação, estas confusões têm se tornado ainda mais frequentes. Não temos mais tempo (nem os recursos) para percebermos que a razão da confusão pode ter sido a falta de uma vírgula, uma entonação mal interpretada ou até mesmo modelos mentais distintos. 

Qual a saída, então? Uma passagem famosa de Pirkei Avot, o tratado da Mishná conhecido como Ética dos Pais, nos orienta a “julgar todas as pessoas com uma presunção favorável”. Precisamos tomar mais cuidado com nossa comunicação… Na dúvida, o melhor é esclarecer o que queremos dizer; perguntar e ter certeza de que nossa interpretação está certa. Se os membros das tribos de Reuven e Gad tivessem se expressado de forma mais cuidadosa e se Moshé tivesse perguntado mais detalhes sobre os planos deles antes de explodir em fúria, o conflito teria sido evitado.

Nesta semana começamos o mês de Av, penúltimo do calendário judaico. Em breve, estaremos comemorando Rosh haShaná e Iom Kipur e nos dando conta de todas as transgressões que cometemos através das palavras. Que neste shabat, prestemos especial atenção ao como falamos e como escutamos, buscando aumentar a compreensão e diminuir as falhas de comunicação.

Shabat Shalom!


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Fé e razão em equilíbrio

A partir da Hascalá, o Iluminismo Judaico, no final do século XVIII, estudiosos do judaísmo, em particular no mundo judaico liberal, passaram a buscar a racionalidade nas práticas religiosas e se afastar das explicações místicas, considerando-as supersticiosas ou baseadas em crendices. Este fenômeno atingiu seu ápice na metade do século passado, quando até mesmo o estudo de fontes místicas nos seminários rabínicos liberais não era visto com bons olhos. O rabino Abraham Joshua Heschel, cujos livros continuam nos inspirando e orientando décadas depois de sua morte, era um dos que insistia em ensinar estes textos apesar da resistência e dos olhares feios. Nos anos em que ele ensinou no JTS, a escola rabínica vinculada ao movimento Conservador em Nova York, ele tinha um pequeno grupo de alunos com quem estudava os textos chassídicos, cheios de mitologias e de perspectivas sobre as dinâmicas Divinas. Antes vistos como “estranhos”, estes discípulos de Heschel acabaram se tornando os grandes teólogos da geração seguinte. O rabino Art Green, com quem eu estudei, era um destes desbravadores que ousaram desafiar a perspectiva do que era o “judaísmo apropriado.” Além de Heschel, Martin Buber (que publicou contos sobre o mundo chassídico, cheios de perspectivas místicas) e Gershom Scholem (que estudou academicamente o misticismo judaico) ajudaram a resgatar perspectivas menos racionais às práticas judaicas.

A parashá desta semana, Chucat, tem uma destas passagens que será bem difícil explicar para quem busca explicação racional para tudo que está na Torá. O texto nos diz que o contato com um cadáver torna uma pessoa ritualmente impura e que a forma de recuperar a santidade ritual é através das cinzas de uma vaca vermelha sem qualquer defeito que havia sido abatida e queimada de acordo com o processo detalhado no texto.

Muito antes da Hascalá, este ritual já atraía a curiosidade dos comentaristas. Rabi Iochanan ben Zacai, que liderava o Sanhedrin na época da destruição do Segundo Templo, disse aos seus alunos que não havia qualquer explicação racional para ele, uma explicação (ou falta dela) compartilhada por vários outros sábios do Talmud e do Midrash. De acordo com outros comentaristas, entre eles Nachmanides e Nechama Leibowitz, o ritual pode não ter explicação racional, mas sua utilidade está em deixar claro para os judeus que a proximidade com cadáveres não é bem vista, em particular tendo em vista práticas de outras religiões nas quais estes corpos são adorados.

Há momentos em que o racionalismo judaico nos serve muito bem e outros nos quais precisamos reconhecer que não temos controle sobre tudo e que alguns assuntos ficam melhor se não forem explicados completamente. Práticas relacionadas à morte, em particular, exercem um fascínio sobre nós. Mesmo pessoas que têm pouquíssima afinidade com a religião buscam práticas religiosas quando falece alguém muito próximo e têm dúvidas sobre o que acontece quando alguém morre. Quando estas perguntas são feitas a mim, costumo dizer que há inúmeras respostas judaicas diferentes sobre o que acontece depois da morte e que o que cada um de nós acredita é resultado tanto do que o judaísmo tem a ensinar quanto da fé. Não devemos ter vergonha em reconhecer que algumas crenças não tem base racional e que são fundamentadas unicamente na fé.

Que consigamos encontrar o equilíbrio e construir juntos perspectivas judaicas que permitam que mantenhamos nosso intelecto ativo quando tratamos de temas religiosos ao mesmo tempo em que deixa espaço para a fé em nossa vida interior.


Shabat Shalom!


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Dvar Torá: Menos certezas e narrativas mais diversas (CIP)


Eu tenho um péssimo hábito de iniciar a leitura de vários livros ao mesmo tempo. Nestes tempos de livros eletrônicos, este péssimo hábito nem tem mais a consequência de gerar uma pilha física na mesa de cabeceira que, em algum momento se torna instável e nos força a terminar os livros que tínhamos iniciado antes de começar um novo.

Por que, então, eu digo “péssimo hábito”? Porque muitas vezes me toma meses, até anos para terminar os livros. Vou começando um, dois, três, dez e acabou não encerrando as leituras que comecei. Quando resolvo voltar e terminar de lê-los já esqueci do que eles falavam e preciso voltar muitas páginas para voltar a estar a par da narrativa.

Um desses muito livros cuja leitura eu comecei mas ainda não terminei é A Guerra do Paraguai, de Luiz Octavio Lima. Quando eu estava estudando o assunto na escola, ainda na década de 80, aprendíamos sobre um processo de revisão histórica em curso no Brasil. Na época dos meus pais, eles tinham aprendido que Solano Lopez, o líder do Paraguai na época da guerra, era um ditador expansionista que queria dominar a América do Sul e que o Duque de Caxias tinha sido um herói da guerra. Já na época em que eu estava estudando, aprendíamos que Solano Lopez era um líder carismático e desenvolvimentista, que queria que o Paraguai se tornasse uma referência industrial na América do Sul, o que tinha gerado estranhamento com a Inglaterra, país do qual o continente comprava a maior parte de seus produtos manufaturados. Os ingleses, então, teriam convencido Brasil, Argentina e Uruguai a se aliarem e declararem guerra ao Paraguai de Solano Lopes. Além de um Paraguai completamente destruído, a guerra teria deixado uma imensa dívida pública dos países aliados com o Império Britânico. Desta forma, os ingleses teriam sido os verdadeiros vencedores da guerra: tinham eliminado um concorrente comercial e passaram a cobrar altos juros na dívida contraída por Brasil, Argentina e Uruguai. O efeito da guerra sobre o Paraguai era descrito quase como um genocídio: a brutalidade das forças aliadas tinham dizimado a população paraguaia, especialmente seus homens e sendo um fator determinando para o atraso econômico do qual nosso país vizinho sofre até hoje.

No livro de Luiz Octavio Lima, a situação apresentada é bem mais complexa. Solano Lopez é apresentado como uma playboy mulherengo, filho da elite, mas que de fato tinha sonhos de modernizar seu país e que toma medidas neste sentido. No entanto, ele acaba se envolvendo em disputas geo-políticas dos países vizinhos e apoia as facções que saem perdendo destas disputas, gerando inimigos que passaram a ocupar o poder, especialmente na Argentina e no Uruguai. A influência inglesa sobre os países aliados, uma tese que havia sido defendida pela Grande Enciclopédia Soviética, é refutada, dado que não existe qualquer evidência documental que a sustente. O efeito nefasto da guerra sobre a população paraguaia e sua economia, por outro lado, foram confirmados.

Na época dos meus pais, o Duque de Caxias era um herói nacional gigante, sobre quem ninguém podia levantar qualquer crítica; quando eu estudei o assunto, apesar de meus professores não usarem este termo, ele era apresentado praticamente como um criminoso de guerra. A visão histórica apresentada hoje é mais complexa: um brilhante estrategista militar que cometeu excessos na guerra.

Assim são, muitas vezes, as narrativas: cheias de cores e de adjetivos, mas nem sempre preocupadas em refletir toda a complexidade de cada situação. Para isso, precisamos considerar as múltiplas narrativas de um mesmo evento, como se fossem os distintos pontos de vista que precisamos ter para construir uma imagem tri-dimensional.

Eu sempre fico pensando em como as narrativas são limitadas e militantes por um determinado ponto de vista quando leio a parashá desta semana, Côrach, e os comentários a respeito dela.

Só pra recordar: Côrach liderou uma rebelião contra Moshé e Aharón da qual participaram 250 líderes da comunidade. Seu questionamento, aparentemente era por mais democracia: “toda a comunidade é santa, todos eles, e Adonai está entre eles. Por que, então, vocês se elevam acima da congregação de Adonai?” [1] Em resposta a esta rebelião, Deus abriu o chão do deserto abriu sua boca e engoliu Côrach, tua sua gente e suas posses e um fogo de Deus consumiu os 250 líderes que tinham se juntado à sua causa.

Levando em conta que, pela Torá, Deus claramente tinha considerado a rebelião de Côrach infundada ou algo pior, os comentaristas se esforçaram para encontrar argumentos que justificassem o rigor da punição Divina. Um midrash [2] diz que Côrach seduziu o povo com seu discurso populista, argumentando que o poder que ele buscava era para o povo e não para sua própria honra; outros midrashim apresentam Côrach como alguém que manipulava os textos da Torá com sabedoria mas com má intenção, fazendo pouco caso das regras estabelecidas por Deus através de Moshé. Até bem recentemente, eram bem difícil encontrar alguém que mostrasse qualquer empatia pelas posições de Côrach. Uma exceção foi o mestre chassídico Meshulam Feivush Heller de Zbarazh. De acordo com ele, Côrach realmente acreditava que ele agia sem ser guiado pelo ego e que Moshé era quem buscava o engrandecimento pessoal, ainda que na verdade os papeis estavam trocados [3]. Ou seja: ele continua com uma análise crítica de Côrach, mas atribui seus erros à sua inocência, não à malícia. Como comentarista de um jogo cujo resultado eles já conhecem, estes comentaristas partem da premissa de que a punição era justificada e que tudo que lhes resta é desvendar seu motivo.

Recentemente, no entanto, alguns comentaristas começaram a quebrar este consenso e a enxergar em Côrach, um líder que, de fato, queria reformar a estrutura de poder dos israelitas no deserto. Para eles, nenhum dos argumentos apresentados para a culpa de Côrach se justifica pelo texto bíblico e não passam de tentativas de apologia, de justificar uma atitude Divina injustificável.

Neste jogo das narrativas, cada lado tem abordado a questão com a conclusão pré-definida e a argumentação, não como uma busca sincera de para onde apontam os melhores argumentos, mas como um exercício retórico de tentar criar uma leitura da realidade que embase sua posição. Esta conduta não é recente — em Pirkei Avot, a disputa de Côrach é apresentada como exemplo paradigmático de uma disputa que não tem objetivos puros, enquanto a disputa entre Hilel e Shamai é apresentada como seu contraponto. A análise histórica, no entanto, nos mostra que a visão de romântica de um debate sempre respeitoso entre Hilel e Shamai não bate com a realidade e é uma visão rabínica posterior, com o objetivo de suavizar a violência que algumas vezes caracterizou o embate entre estas duas escolas de pensamento judaico. Da mesma forma, quem sabe, a disputa representada por Côrach pode não ter sido assim tão ruim?!

Quando pré-definimos nossa posição e só buscamos os argumentos que a confirmam, corremos o sério risco de sermos enganados por nossa própria sagacidade e nos convencermos de que Fulgêncio Batista era o pior vilão da história latino-americana ou que o a Inglaterra manipulou as pobres nações aliadas para atingir seus objetivos sórdidos.

O teólogo russo Vladimir Lossky certa vez disse “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia do que a clareza superficial às custas da análise profunda.” Ainda que sua área não seja a teologia, a análise de  Luiz Octavio Lima para a Guerra do Paraguai demonstra que o mesmo conceito se aplica a outras áreas do conhecimento e da vida.

Neste ano de eleições e de narrativas polarizadas, em que cada lado nos apresenta sua versão simples, clara e tendenciosa da realidade, não aceitemos a clareza representada pelas análises fáceis e superficiais só pela preguiça de investigarmos mais e entendermos a complexidade e importância dos assuntos à nossa frente. Que tenhamos a coragem de contestar até o senso comum para tomarmos decisões das quais nos orgulhemos e que possamos continuar nos orgulhando mesmo quando a revisitarmos depois de conhecermos suas consequências.

Shabat Shalom,


[1] Num. 16:3
[2] baMidbar Rabá 18:10
[3] Speaking Torah, vol. 2, p. 33


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Dvar Torá: Educar judaicamente para um mundo que não conhecemos (CIP)


Imagina por um minuto que a receita de omelete focasse na forma como ir ao galinheiro e pegar os ovos. Em um contexto urbano, no qual compramos nossos ovos no mercado, uma receita assim ficaria não apenas obsoleta, mas se tornaria irrelevante. Da mesmo forma, em um mundo em rápida transformação como nosso, se torna cada vez mais importante que a Educação Judaica foque no desenvolvimento de uma visão de mundo e de competências para que nossos alunos possam construir sua realidade judaica com certa autonomia na sua vida adulta.

Em todo o mundo da educação, esta é a questão central que se discute hoje: como podemos preparar nossos alunos para uma realidade que ainda não conhecemos. No contexto judaico, certamente esta pergunta não é menos necessária, mas ela talvez ela seja um pouco mais polêmica. De um lado, tem quem acredite que devíamos continuar fazendo tudo como estávamos fazendo antes. Funcionou até agora… por que mudar?! De outro, tem quem defenda que os valores e práticas da tradição judaica nos ajudaram muito até aqui mas perderam sua função na vida contemporânea — educação judaica, nesse sentido, seria um contrassenso.

O projeto de Educação Judaica da CIP se coloca como alternativa a estas duas visões. Acreditamos em um judaísmo comprometido com as nossas vidas, que pode adicionar textura à nossa experiência do tempo e significado às nossas práticas mais banais. 

Em uma das passagens de Pirkei Avot que eu mais gosto, o texto pergunta: “quem é sábio, quem é poderoso, quem é rico e quem é respeitado?”. A resposta vira nossas expectativas de ponta cabeça, afirmando que sábio, não é quem tem muito a ensinar mas quem aprende com todos; poderoso não é que controla os outros, mas a si mesmo; rico não é quem tem muito, mas quem é feliz com o que tem, e respeitado na verdade é quem respeita os outros [1]. De alguma forma, é para esta capacidade de pensar judaicamente fora da caixa que educamos nossos alunos — para que eles consigam enxergar além do óbvio e encontrar soluções judaicas para problemas que ainda nem conhecemos.

Na parashá desta semana, Moshé instrui 12 enviados que foram enviados para observar da terra de Cnaán. “Subam ali pelo Neguev e sigam pela região montanhosa e vejam que tipo de país é este. O povo que nele habita é forte ou fraco, poucos ou muitos? O país que habitam é bom ou ruim? As cidades onde vivem são abertas ou fortificadas? O solo é rico ou pobre? É arborizado ou não?” [2]

Vivendo ainda em seu paradigma anterior — no qual eram escravos e viviam sempre com medo de seus opressores — e sem se dar conta de que sua realidade havia se transformado radicalmente, 10 dos 12 enviados voltaram contando que “os povos que habitam o país são poderosos e as cidades são fortificadas e muito grandes.” [3] Aparentemente, faz sentido o relato que eles apresentaram. Um midrash [4] no entanto, oferece uma leitura diferente da relação entre poder e muralhas, mais em linha com as definições dadas pela passagem de Pirkei Avot. Nas palavras do midrash,  a forma como os enviados olharam a terra deveria ter sido: “Se eles moram em acampamentos, são poderosos e confiam na sua força; mas se estão em fortalezas, são fracos e têm o coração medroso.” Os enviados confundiram demonstração de poder com o próprio poder e, por isso, tiveram que passar 40 anos no deserto até que uma nova geração, que conseguisse enxergar a nova realidade sem os vícios da condição anterior e, assim, pudesse substituí-la.

Equipados com uma educação judaica alinhada com a nossa realidade e com a realidade que ainda está por vir, nossos jovens se apresentam à vida cor coragem e orgulho, sem muros e prontos para construirmos juntos sua realidade judaica. 

Que possamos aprender de seu exemplo de uma conduta judaica orgulhosa, corajosa e preparada!

Shabat Shalom!  

[1] Pirkei Avot 4:1
[2] Num. 13:17-20
[3] Num 13: 28
[4] baMidbar Rabá 16:12


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Podcast "Torá com Fritas" - ep. 36: Judaísmo Reconstrucionista

(conteúdo originalmente publicado em https://podbay.fm/p/tora-com-fritas/e/1655971223)

No trigésimo sexto episódio, Theo Hotz e Ângela Goldstein conversam com o rabino Rogério Cukierman, da congregação israelita paulista (a CIP), sobre judaísmo reconstrucionista, uma das mais recentes correntes judaicas.

As indicações são:

  • O filme Moloch, de 1999, do diretor Alexander Sokurov

E os livros:

  • "O judaísmo como uma civilização" - Mordechai Kaplan
  • "Here all along" - Sarah Herwitz
  • “A jewish theology” - Louis Jacobs
  • “Cabalá prática” - Leibwolf
  • “Radical judaism” - Art Green

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Dvar Torá: Por que é tão difícil não falar mal dos outros? (CIP)


Eu quero voltar pro finalzinho da Amidá, na página 26. Nos primeiros séculos do período rabínico, as pessoas ofereciam pedidos pessoais ANTES da Amidá. Quando Raban Gamliel II, líder da comunidade judaica na Terra de Israel no começo do 2º século, instituiu a Amidá, este espaço para pedidos pessoais foi mudado para o FINAL da Amidá. No Talmud, vários rabinos propuseram formulações para estes pedidos pessoais, um rabino da Babilônia, Mar bar Ravina [1],[2]. Quando Amram Gaon codificou o primeiro sidur do qual temos conhecimento, ao redor do ano 860 EC [3], ele incluiu a versão de Mar bar Ravina como sugestão para as pessoas que não soubessem como compor sua própria petição pessoal e quando o primeiro sidur europeu, o Machzor Vitry, foi impresso no século 11, o que era uma sugestão se tornou uma regra: todos deveriam, ao final da Amidá, dizer aquela versão da prece pessoal.

E o que diz a prece pessoal de Mar bar Ravina? “Meu Deus, impeça minha língua de dizer o mal e meus lábios de enganarem” e por aí vai…

De tudo que os rabinos podiam pedir do ponto de vista pessoal, eles não pediram riqueza, nem sabedoria, nem a disposição para trabalhar de forma mais intensa no dia seguinte. Eles pediram a capacidade de se conter e não fazer parte do que a nossa tradição chama de “lashon hará”, a língua do mal. E a verdade é que é tão difícil, né?!

A prática de falar mal dos outros se tornou de tal forma parte das nossas rotinas que a gente nem percebe mais… entra em reunião de trabalho falando mal do colega; se reúne com a família e se põe a falar mal da prima que ninguém gosta; cria grupo paralelo dos pais da escola pra poder falar mal dos pais que ficaram abandonados no grupo original. Quando a gente se dá conta, já foi — e não foi nem por maldade, mas simplesmente porque é assim que todo mundo se comporta.

Se você parar para prestar atenção nas confissões que fazemos em Iom Kipur, grande parte delas são coisas que fazemos com a fala. Só para dar alguns exemplos:
  • Difamamos = דיברנו דופי
  • Incitamos o mal = הרשענו
  • Acusamos falsamente = טפלנו שקר
  • Demos mau conselho = יעצנו רע
  • Zombamos = לצנו
  • Provocamos = ניאצנו 
Ao mesmo tempo, a tradição reconhece que a fala é um atributo Divino, através do qual Deus criou o mundo e que distingue os seres humanos dos outros animais. Quando Rashi comenta o verso em Bereshit que fala do sopro Divino que deu ao ser humano sua alma viva, ele diz: “animais também são chamados de almas vivas, mas a alma humana tem tudo o que eles têm e mais porque aos seres humanos foi dada a compreensão e a fala.” [4]

E o mesmo Rashi revela uma compreensão assustadoramente contemporânea ao analisar uma passagem da Torá, no livro de Vaicrá [5] que proíbe a fofoca. Ele escreveu: “Digo isso porque todos os que semeiam a discórdia entre as pessoas e todos os que falam calúnias vão à casa dos amigos para espiar o mal que ali vêem, ou o mal que ali ouvem, para que o divulguem nas ruas. - eles são chamados de "pessoas que andam espionando.”

Um midrash [6] diz que, dos 6 atributos que foram dados aos seres humanos, 3 estavam sob nosso controle e 3 não. A visão, o olfato e a audição não estariam sob nosso controle — afinal de contas, cheiramos, escutamos e enxergamos mesmo o que não queremos. De outro lado, a fala e os movimentos dos pés das mãos estariam sob nosso controle. O exemplo que o midrash dá não poderia ser mais claro com relação às nossas escolhas: “a pessoa precisa decidir para estudar Torá, difamar, blasfemar e se rebelar.” E uma passagem dos Provérbios confirma este caráter de escolha, ao afirmar: “Morte e vida estão no poder da língua.” [7]

De acordo com o Talmud, lashon hará tem o poder de matar três pessoas: aquela que fala, aquela que escuta e aquela sobre quem está sendo falado. Por que será que é tão difícil usar sempre este atributo na direção da vida?!

Na parashá desta semana, Miriám, a profetisa, se torna a fofoqueira, ao fazer contra um comentário maldoso sobre Moshé ou sobre sua esposa para Aharón — comentário específico não é claro e há comentaristas que enxergam nele aspectos de preconceito racial e outros que dizem que ela estava defendendo a cunhada, que estaria recebendo pouca atenção de Moshé. De qualquer forma, ela desenvolve uma doença de pele como punição pelo seu ato e teve que ser excluída do acampamento por sete dias.

Na maioria dos casos, no entanto, a exclusão que acontece como consequência de lashon hará, não é daquele que dá início ou que espalha a fofoca, mas aquele sobre quem se fala. Seja por vergonha, por sentir-se não acolhido ou por sentir-se explicitamente rejeitado, não é incomum que as vítimas dos processos de lashon hará se afastem do ambiente comunitário em um processo no qual todos perdemos.

Há uns 25 anos, eu morava em Tel Aviv e passei a frequentar a sinagoga reformista de lá, Beit Daniel. Toda semana, eu me sentava mais ou menos no mesmo lugar e havia uma senhora que sentava sempre perto de mim. Com o tempo, começamos a conversar, ela sempre tentando me apresentar sua neta… Um dia, ela me pergunta: “você viu quem está na sinagoga hoje?”. “Não,” eu respondi. “Quem?!” “Convidados não desejados!”, ela me disse. “Quem são eles?” eu perguntei, e adicionei em tom de piada, “o Rabino Chefe”, uma figura ultra-ortodoxa e sisuda que nunca apareceria na nossa sinagoga reformista. “O rabino-chefe não é bem vindo?!”, ela se espantou com a minha brincadeira. “À minha casa eu não o convidaria”, eu respondi e com isso concluímos nossa conversa.

Mais tarde, durante o kidush, entendi de quem ela estava falando. Naquele dia, havia acontecido a Parada do Orgulho Gay em Tel Aviv e membros da nossa sinagoga tinham ido participar e convidar os participantes a virem ao Cabalat Shabat. Para minha vizinha de sinagoga, no entanto, aquelas pessoas que não tinham lhe feito nada, eram convidados indesejados apenas por serem quem eles eram. 

Por muito tempo, por tempo demais, aqui em São Paulo, aqui nesta CIP, membros LGBTQIA+ da comunidade judaica se sentiram também convidados indesejados. Eles se sentaram ao nosso lado e escutaram nossas piadas homofóbicas, fingindo rir delas para não colocar em risco sua aceitação na comunidade. Parece absurdo, mas com uma frequência imensa lashon ha-rá assume o formato de piada — piada de mal gosto, piada cheia de preconceito, mas que continuamos contando ser perceber o efeito corrosivo que elas têm.

Em um documento escrito há alguns anos por um grupo de judeus LGBT no facebook, ao falarem de como se sentiam na intersecção de suas múltiplas identidades, os autores escreveram: “Nosso Judaísmo foi duplamente – triplamente – exílico. Nós fomos primeiramente forçados para fora de nossa identidade sexual e, a seguir, fomos forçados para fora do Judaísmo. E a única alternativa era esconder uma das duas identidades, para poder preservar a outra.” 

Hoje, um grupo de membros do Hineni, o grupo LGBTQIA+ da Fisesp, veio participar conosco do Cabalat Shabat. Ao lhes dar as boas vindas, eu queria tentar quebrar pelo menos duas dimensões deste exílio triplo do qual o documento falava. Saibam que vocês não são hóspedes indesejados. Primeiro, porque esta casa é sua e ninguém pode ser hóspede na sua própria casa. Segundo, porque nós queremos muito que vocês participem e venham e estejam sempre por aqui. O Judaísmo é inegavelmente a sua casa e a CIP é uma das muitas casas de portas abertas para vocês dentro da comunidade judaica.

Que neste shabat possamos engajar somente em lashon hatov, a língua do bem — e que esta prática de shabat nos sirva de incentivo para podermos sempre usar as palavras só para construir, encantar, unir e acolher.

Shabat Shalom.


[1] My People’s Prayer Book, vol. 2, p. 187
[2] Talmud Bavli 17a
[3] My People’s Prayer Book, vol. 1
[4] Comentário de Rashi para Gen. 2:7:4
[5] Lev. 19:16
[6] Bereshit Rabá 67:3
[7] Prov. 18:21
 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Por um Judaísmo sem castas

Em uma das passagens de que eu mais gosto na Mishná, o texto diz que o primeiro ser humano foi criado sozinho para que ninguém possa chegar a outra pessoa argumentando que seus antepassados são mais nobres que os do outro [1]. Afinal de contas, se formos realmente à raiz das nossas árvores genealógicas, perceberemos que todos descendemos da mesma pessoa! Este aspecto equalizador é bastante presente na tradição judaica e resultado direto de outro princípio da criação do ser humano: a ideia de que fomos criados à imagem de Deus. De acordo com o professor Nahum Sarna, em outras culturas era comum que os reis fossem vistos como criados à imagem Divina, mas o judaísmo inovou ao democratizar este aspecto, atribuindo-o não apenas aos reis, mas a toda a humanidade [2].

Em algumas passagens da Torá, por outro lado, não apenas a humanidade, mas também o povo de Israel é enxergado através de distinções de tribo, de origem e de status. Em particular, a tribo de Levi, à qual pertenciam Moshé, Aharón e Miriám, recebe um papel importante nas funções comunitárias. Enquanto o povo em geral passou por um censo para determinar quem eram os homens aptos a servir no exército, os Levitas passaram por um censo distinto e a eles foram atribuídas funções de proteção do Mishcán, o templo móvel que acompanhou os hebreus durante os 40 anos em que vagaram pelo deserto, e outras tarefas administrativas.

Entre os levitas, os descendentes de Aharón (os Cohanim) receberam funções sacerdotais hereditárias e ficaram responsáveis pela condução das funções religiosas. A dimensão religiosa de sua conduta fez com que também na condução de suas vidas privadas, os Cohanim fossem sujeitos a regras específicas: por exemplo, não poderiam casar-se com alguém que fosse divorciado nem poderiam entrar em contato com um cadáver. Na parashá desta semana, Deus instruiu Aharón e seus filhos a respeito de uma bênção especial ao povo, que ficou conhecida como “Bircat haCoahnim”, a "bênção sacerdotal” e que apenas os Cohanim poderiam pronunciar [3]. 

Há muitos séculos, desde a destruição do Segundo Templo e o desenvolvimento do Judaísmo Rabínico, a liderança religiosa do povo judeu não é mais atribuída aos Cohanim, nem é transmitida de forma hereditária. Há quase dois mil anos, nosso povo tem sido liderado por rabinos que se destacam pela sua erudição e espiritualidade, não necessariamente pela sua linhagem. Ao mesmo tempo em que perderam sua relevância sacerdotal, no entanto, os Cohanim mantiveram algumas regras no seu tratamento que, alguns (dentre os quais eu me incluo) acreditam, devem ser revistas.

Em uma tradição judaica que acredita que todos fomos criados à imagem Divina e somos dotados da mesma dignidade intrínseca, não há mais lugar para privilégios ou restrições baseadas apenas na família em que alguém nasceu. Por que os cohanim deveriam ser chamados antes que outros grupos para a leitura da Torá? E por que não poderiam acompanhar um grande amigo no enterro de seu pai? Não faz sentido, na minha opinião, que eles tenham suas oportunidades de união matrimonial limitadas apenas porque vêm de uma família com história sacerdotal.

Apesar de não ser Cohen, não me sinto constrangido quando canto Bircat haCohanim ao final de todo Cabalat Shabat e peço a Deus que abençoe e proteja toda a nossa comunidade. Pelo contrário, me sinto honrado pela possibilidade que recebo de participar com vocês nos momentos centrais de suas vidas, dos nascimentos aos enterros e de todos os dilemas contidos entre os dois e de transmitir, em cada um destes encontros, minha paixão por um judaísmo relevante para os tempos em que vivemos e em linha com nossos valores.

Shabat Shalom