quinta-feira, 9 de junho de 2022

Por um Judaísmo sem castas

Em uma das passagens de que eu mais gosto na Mishná, o texto diz que o primeiro ser humano foi criado sozinho para que ninguém possa chegar a outra pessoa argumentando que seus antepassados são mais nobres que os do outro [1]. Afinal de contas, se formos realmente à raiz das nossas árvores genealógicas, perceberemos que todos descendemos da mesma pessoa! Este aspecto equalizador é bastante presente na tradição judaica e resultado direto de outro princípio da criação do ser humano: a ideia de que fomos criados à imagem de Deus. De acordo com o professor Nahum Sarna, em outras culturas era comum que os reis fossem vistos como criados à imagem Divina, mas o judaísmo inovou ao democratizar este aspecto, atribuindo-o não apenas aos reis, mas a toda a humanidade [2].

Em algumas passagens da Torá, por outro lado, não apenas a humanidade, mas também o povo de Israel é enxergado através de distinções de tribo, de origem e de status. Em particular, a tribo de Levi, à qual pertenciam Moshé, Aharón e Miriám, recebe um papel importante nas funções comunitárias. Enquanto o povo em geral passou por um censo para determinar quem eram os homens aptos a servir no exército, os Levitas passaram por um censo distinto e a eles foram atribuídas funções de proteção do Mishcán, o templo móvel que acompanhou os hebreus durante os 40 anos em que vagaram pelo deserto, e outras tarefas administrativas.

Entre os levitas, os descendentes de Aharón (os Cohanim) receberam funções sacerdotais hereditárias e ficaram responsáveis pela condução das funções religiosas. A dimensão religiosa de sua conduta fez com que também na condução de suas vidas privadas, os Cohanim fossem sujeitos a regras específicas: por exemplo, não poderiam casar-se com alguém que fosse divorciado nem poderiam entrar em contato com um cadáver. Na parashá desta semana, Deus instruiu Aharón e seus filhos a respeito de uma bênção especial ao povo, que ficou conhecida como “Bircat haCoahnim”, a "bênção sacerdotal” e que apenas os Cohanim poderiam pronunciar [3]. 

Há muitos séculos, desde a destruição do Segundo Templo e o desenvolvimento do Judaísmo Rabínico, a liderança religiosa do povo judeu não é mais atribuída aos Cohanim, nem é transmitida de forma hereditária. Há quase dois mil anos, nosso povo tem sido liderado por rabinos que se destacam pela sua erudição e espiritualidade, não necessariamente pela sua linhagem. Ao mesmo tempo em que perderam sua relevância sacerdotal, no entanto, os Cohanim mantiveram algumas regras no seu tratamento que, alguns (dentre os quais eu me incluo) acreditam, devem ser revistas.

Em uma tradição judaica que acredita que todos fomos criados à imagem Divina e somos dotados da mesma dignidade intrínseca, não há mais lugar para privilégios ou restrições baseadas apenas na família em que alguém nasceu. Por que os cohanim deveriam ser chamados antes que outros grupos para a leitura da Torá? E por que não poderiam acompanhar um grande amigo no enterro de seu pai? Não faz sentido, na minha opinião, que eles tenham suas oportunidades de união matrimonial limitadas apenas porque vêm de uma família com história sacerdotal.

Apesar de não ser Cohen, não me sinto constrangido quando canto Bircat haCohanim ao final de todo Cabalat Shabat e peço a Deus que abençoe e proteja toda a nossa comunidade. Pelo contrário, me sinto honrado pela possibilidade que recebo de participar com vocês nos momentos centrais de suas vidas, dos nascimentos aos enterros e de todos os dilemas contidos entre os dois e de transmitir, em cada um destes encontros, minha paixão por um judaísmo relevante para os tempos em que vivemos e em linha com nossos valores.

Shabat Shalom


sexta-feira, 3 de junho de 2022

Dvar Torá: Democracia dentro e fora de casa (CIP)


Quando eu faço reuniões com famílias de bnei-mitsvá em preparação às cerimônias deles, uma das perguntas que eu faço, na tentativa de conhecer melhor o jovem sentado à minha frente, é qual sua matéria favorita na escola. Depois de dizerem “o recreio”, com inesperada frequência os jovens me dizem que gostam mesmo é de matemática. Aí eu pergunto “por que?”. Alguns dizem que é fácil ou que vão bem sem muito esforço. Mas vários me dizem que gostam de matemática pela certeza das respostas a que chegam. É como se dissessem: “na matemática, o que é, é e o que não é, não é.”

Quando eu tinha a idade deles e por muito tempo depois disso, minha matéria favorita também era a matemática. A verdade é que eu não lembro de qual era a minha motivação — mas eu era bom com números e adorava passar horas tentando resolver problemas numéricos e de lógica. E acho que o fato de conseguir encontrar a resposta certa, em oposição às inúmeras interpretações possíveis em literatura, história e geografia, me dava algum conforto também.

Hoje, eu equilibro esta certeza absoluta na mensagem exata dos números com um conceito, quase uma piada, que me foi dito na época em que eu era consultor, especialista em construir business plans, os planos de negócios desenvolvidos para avaliar a viabilidade de projetos. A pessoa me disse: construir um business plan exige que você consiga torturar os números até que confessem o que quer que você queira que eles confessem. Não é verdade que os números só contem verdades — é possível contar muitas mentiras também através dos números. É só acompanhar os comentários gerados pela divulgação dos índices econômicos ou pelos resultados das pesquisas de intenção de voto e perceber que é possível adotar narrativas bastante distintas baseadas nos mesmos números.

Eu fiquei pensando bastante nestas questões, neste ano eleitoral pelo qual estamos passando. Como os números da economia, da pandemia, do eleitorado, das contas públicas vão sendo manipulados por um lado e pelo outro para garantir que eles saiam por cima no debate eleitoral.

Fiquei pensando bastante no significado da democracia, tanto na perspectiva judaica quanto no nosso mundo secular. Em uma das passagens do Talmud que nós, rabinos liberais mais gostamos de contar, um grupo de rabinos está discutindo se um forno é casher ou não. Um deles, ao não conseguir convencer os demais de que sua opinião é a correta, recorre a todo tipo de mágica, mas os demais rabinos não mudam de opinião. De repente, uma voz dos Céus pergunta: “Por que vocês discutem com Rabí Eliezer? Ele sempre tem razão no tocante à halachá!”. Os rabinos rejeitam a intervenção Divina. Rabí Yehoshua levantou e protestou: “A Torá não está nos céus! Ela já foi entregue no Monte Sinai e nós não prestamos atenção a vozes vindas do céu, pois Você já escreveu na na Torá no Montei Sinai: ‘Siga a opinião da maioria’”. [1]

Nós gostamos desta passagem porque ela parece validar a perspectiva judaica de que, no final das contas, compete à humanidade e não ao Divino regular sua vida religiosa. E, ao mesmo tempo, não questionamos com a frequência devida o que quer dizer seguir a vontade da maioria. 

Pra começar, quem entra na contagem? Nesta semana demos início à leitura do Livro de baMidbar, que significa “No Deserto”, mas cujo nome em português é “Números”. Logo no comecinho da parashá, Deus instrui Moshé a realizar um censo de toda a população. Bom… nem de toda a população… conforme a instrução vai sendo detalhada, descobrimos que só serão incluídos na contagem homens maiores de 20 anos [2] que não pertencessem à tribo de Levi [3]. Por esses critérios, foram contados 603.550 israelitas [4] — mas as estimativas comuns dão conta de que eram na verdade 2 milhões os israelitas que saíram do Egito. Só na definição de quem entra na conta, já criamos um imenso viés… e como será que o corrigimos, mesmo que seja com 3.500 anos de atraso. Como fazemos para que as mulheres e os menores de vinte anos e aqueles que se juntaram ao povo judeu se sintam tão valorizados quanto quem entrou na conta desde o começo?

E será que qualquer coisa decidida pela maioria vale? Será que quem tem a maioria naquele momento tem o direito de decidir o que quiser sem se preocupar com quem será impactado por suas decisões?

No século 16 um rabino em Tsfat reuniu reuniu um tribunal rabínico com 25 membros para re-estabelecer a ordenação rabínica na Terra de Israel. Quando a decisão foi enviada ao rabinato de Jerusalém, ela foi recusada sob o argumento de que a opinião dos jerusalmitas não tinha sido ouvida. Nas palavras do rabino-chefe de Jerusalém na época: “Quando a maioria decide sem se aconselhar com a minoria, esta decisão não tem validade sobre todos, pois pode ser que, se a maioria tivesse ouvido os argumentos da minoria, teriam mudado sua posição.” Naquela época, o rabino de Jerusalém já reconhecia que democracia não é apenas seguir a vontade da maioria; ela implica também respeitar os direitos das minorias, sejam elas minorias numéricas, sejam elas segmentos aleijados do poder. 

O que temos feito hoje para garantir que todos os segmentos comunitários tenham direito a expressar sua opinião? Será que existem tabús, críticas, posições que não podem ser defendidas dentro da comunidade judaica porque não condizem com a vontade da maioria? Como podemos criar um ambienta mais aberto ao debate sincero que, de fato, reflita toda a diversidade comunitária?

Neste ano conturbado, no qual há tanto por decidir e tanto depende das nossas decisões, é fundamental pensar sobre a nossa democracia e garantir a inclusão de todos — com respeito e com segurança, para quem faz parte da maioria e para quem faz parte da minoria.

Shabat Shalom


[1] Talmud da Babilônia, Bava Metzia 59b
[2] Num. 1:3
[3] Num. 1:47
[4] Num. 2:32

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Dvar Torá: O Judaísmo Fora da Caverna (CIP)


Pois, é…. quem diria?! Já estamos no dia 35 da contagem do Omer! Mas o que é, afinal de contas, a contagem do Omer???

Esta semana eu estava dando uma aula sobre a contagem do Omer e nós começamos a contar as camadas históricas que iam se acumulando na minha explicação, quase sem que eu me desse conta…

A contagem do Omer é um período de 49 dias que vai do 2º dia de Pessach até a véspera de Shavuot. Em tempos bíblicos, era um período agrícola que correspondia à colheita dos grãos. Por isso, em cada dia deste período era oferecido uma quantidade de cevada em sacrifício a Deus. Essa quantidade, um pouco mais de 3,5 litros [1], era chamada de Omer, daí o nome do período. Então, nesta época, o período do Omer estava associado à colheita dos grãos.

Mas a época em que a colheita acontecia: entre Pessach — a festa da libertação de Mitsrayim — e Shavuot — a festa que os rabinos associaram à entrega da Torá no Monte Sinai — deu um significado adicional a este período. Recém libertados da servidão mas sem terem ainda encontrado o Divino no Monte Sinai e recebido a Torá, os hebreus viviam um período de alegria, de expectativa, de incertezas, até de medo. Eu fiquei pensando bastante este ano no que seria o equivalente moderno deste período e o melhor que consegui chegar foi a gravidez — já sabendo que há um bebê caminho e torcendo para que tudo dê certo, mas sem ter certeza de como o processo irá se desenvolver, novos pais passam por muitas destas mesmas emoções: excitação, expectativa, ansiedade e medo.

Perto de 14 séculos depois da saída de Mistrayim, uma nova camada histórica adiciona contexto ao significado da contagem do Omer hoje em dia. Por volta do ano 135 E.C. e, de acordo com o Talmud, 24 mil alunos de Rabi Akiva faleceram por não se tratarem com respeito. A leitura tradicional deste episódio é que uma praga acometeu os discípulos de rabi Akiva mas desde o século 19 e, em particular a partir do Movimento Sionista, ganhou força o entendimento de que os discípulos de rabi Akiva estavam envolvidos na revolta de Bar Kochba contra os romanos e que a morte deles está associada à forma brutal como as tropas romanas responderam à revolta. De acordo com algumas versões, as mortes terminaram no 33º dia do Omer; de acordo com outras versões, elas foram interrompidas no 33º dia, mas recomeçaram na sequência e continuaram até o 49º dia da contagem. Por causa da perda de vidas e de tradições judaicas representas pela morte de 24.000 estudiosos da Torá, foi determinado que o Omer fosse um período de semi-luto, no qual não realizamos celebrações — exceto pelo 33º dia, que nós chamamos de LaG baOmer [2]. Se hoje acabamos de entrar no 35º dia da contagem, fica claro que 5ª feira foi LaG baOmer.

Uma outra camada histórica desta data chega depois de outros 14 séculos. No século 16, na cidade de Tsfat, o rabino Itschac Luria determinou que LaG baOmer era o aniversário do falecimento de Rabi Shim’on Bar Iochai, que é tradicionalmente entendido como o autor do Zohar, a obra fundamental da Cabalá, o misticismo judaico.

Aqui começam as brincadeiras com o hebraico e como elas levaram às principais tradições de LaG baOmer. Zohar, em hebraico, significa “brilho” e daí veio a tradição de comemorar a vida de Rashbi dançando ao redor da luz da fogueira. Além disso, conta a lenda que durante sua vida nunca houve um arco-íris no céu — arco íris em hebraico é keshet; o arco de arco e flecha também é keshet. Então, brinca-se com arco e flecha ao redor da fogueira.

Quando o período do Omer passou a ser associado à revolta de Bar Kochbá, a tradição de dançar com arco e flecha ao redor da fogueira ganhou ares de acampamento militar na luta contra a opressão romana, mas esta não é necessariamente a origem destes costumes.

Rabi Shim’on Bar Iochai pertencia à geração de discípulos de rabi Akiva que foram treinados após a morte dos 24.000 alunos. De acordo com o Talmud [3], Rashbi tinha ofendido as autoridades romanas e, por isso, ele e seu filho tiveram sua morte decretada. Primeiro, eles se esconderam no Beit Midrash, a Academia Rabínica. Depois, com medo de que as autoridades os descobrissem lá, encontraram uma caverna e lá se esconderam. Um milagre garantiu que uma árvore de alfarroba crescesse na entrada da caverna, garantindo sobra, comida e bebida para pai e filho. Depois de doze anos escondidos na caverna, estudando Torá e crescendo em conhecimento e espiritualidade, eles receberam o recado de que o imperador havia morrido e o decreto de morte contra eles cancelado.

Rashbi e seu filho saíram da caverna e viram uma pessoa semeando e plantando. O pai disse, em tom de reprovação: “estas pessoas abandonam a vida eterna e se engajam com a vida no seu momento.” De acordo com o Talmud [4], todo lugar ao qual eles direcionavam seu olhar pegava fogo. Uma voz Divina lhes disse: “vocês saíram da caverna para destruir o Meu mundo?!? Voltem para a caverna!” Eles voltaram e ficaram lá mais 12 meses até que foram novamente autorizados a sair.

Para Rabi Shimon bar Iochai e seu filho, rabi Elazar, tudo que importava era o conhecimento e o seu próprio crescimento espiritual. Eles tratavam com desdém as atividades concretas neste mundo: o plantar e semear e colher e preparar o solo, o construir pontes e trocar fraldas e preparar o jantar e distribuir comida e cobertores e abraços e sorrisos a moradores de rua. Para eles, nada disso importava porque eles não conseguiam perceber a profunda transformação espiritual que pode vir destes atos cotidianos; para eles não era claro como muitas destas ações despertam a chama divina que brilha em cada um de nós. 

Pessoalmente, eu sou um apaixonado pelos rituais judaicos — só para falar dos rituais de 6ª feira: eu me emociono com as melodias e adoro repartir com meus filhos a chalá de chocolate quentinha depois de tê-los abençoado, um ritual que eles adoram e no qual insistem em me abençoar também. Eu vejo muita gente na nossa comunidade encontrando abrigo e acolhimento nestes momentos rituais e, como rabino, eu procuro propiciar e encorajar que eles aconteçam.

E, ao mesmo tempo, para mim é claro que o judaísmo, seus rituais, valores e tradições, tem que servir como uma lente através da qual nos relacionamos com o mundo, como interagimos com ele, nunca como um muro que nos separe do mundo. Na história de Shimon Bar Iochai, o Divino reconheceu que um engrandecimento espiritual que venha através do desprezo pelo mundo não tem espaço, tem que voltar para a caverna. Ou nas palavras do rabino e ativista Abraham Joshua Heschel, “Você não pode adorar Deus e depois olhar para um ser humano, criado por Deus à Sua própria imagem, como se ele ou ela fosse um cavalo”. [5]

Neste ano, LaG baOmer caiu na noite historicamente mais fria de maio em todos os registros da cidade de São Paulo. Quem anda pelas ruas não consegue deixar de se impressionar com a crescente quantidade de pessoas vivendo nas calçadas. Famílias inteiras que vivem nas ruas desprotegidas, desidratando sob o calor do verão, encharcadas nos temporais que esta cidade conhece tão bem, desesperadas no frio quando é ele que chega. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo (SMADS), o número de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo aumentou 31% entre 2019 e 2021, chegando a cerca de  32.000 pessoas. [6]

Levar a tradição judaica a sério tem que, de alguma forma, implicar levar também esta situação a sério. É agir para transformá-la oferecendo soluções emergenciais frente à fome, ao frio e às doenças e também soluções estruturais que garantam que os cidadãos das nossas cidades possam viver com dignidade, com um teto sobre suas cabeças, comida nas suas mesas e um futuro para o qual almejar.

A CIP tem diversas iniciativas focadas neste universo. O Lar das Crianças atende quase 500 crianças e suas famílias em situação de vulnerabilidade social; grupos da área de jovens adultos, o MOV 20:35 têm projetos que lidam diretamente como a dignidade de moradores de rua e um cursinho popular que oferece oportunidades a jovens que não tiveram o privilégio de cursar escolas particulares de também sonharem e construírem seu futuro. Outras iniciativas da comunidade judaica tem ajudado os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. A Unibes está em campanha pelo Inverno Solidário; a FISESP sempre organiza a campanha do agasalho; o Ten Yad oferece refeições a pessoas de baixa renda.

Procure uma forma de participar você também. Se sensibilize, quando andar pelas ruas, não vire o olhar quando passar por alguém vivendo na calçada. Muitas vezes, um sorriso e o reconhecimento da dignidade daquela pessoa contam quase tanto quanto um prato de comida quente.

O judaísmo nos ensina a buscar nosso crescimento espiritual e também a plantar e semear. Esses são os dias em que o mundo grita pela nossa participação — e é nosso dever escutar seu chamado e não voltar para a caverna.

Shabat Shalom



[3] Talmud Bavli Shabat 33b -34a
[4] Talmud Bavli Shabat 33b
[5] https://voicesofdemocracy.umd.edu/heschel-religion-and-race-speech-text/
[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/populacao-de-rua-cresceu-31-em-dois-anos-indica-censo


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Transformando valores em ações

É interessante ver como, às vezes, conseguimos todos concordar com relação a alguns grandes ideais (ou algumas palavras vagas) apesar de apresentarmos profundas discordâncias com relação aos detalhes destes conceitos (ou, por outro lado, nunca termos parado para pensar que detalhes seriam estes). Há um incentivo perverso nestas situações a nos mantermos nestes lugares comuns sobre os quais concordamos e não detalharmos o que eles significam, “para não criar discórdia”

Há alguns anos, por exemplo, fui convidado a participar de um evento inter-religioso que seria centrado ao redor de três palavras: “vida”, “família” e “paz”. À primeira vista parecia uma excelente ideia, quem poderia ser contra estes três conceitos?! Quando começamos a conversar mais sobre cada um deles, no entanto, percebi que meu entendimento era diametralmente oposto àquele das pessoas que estavam me convidando. Mesmo ideias aparentemente bem definidas como vida, família e paz podem esconder interpretações subjetivas e nada consensuais. Delicadamente, declinei o convite mas nunca esqueci daquela situação.

“Vida”, “família” e “paz” são valores fundamentais da tradição judaica, quando eles têm significados específicos, não em qualquer definição possível. Da forma análoga, a questão da “Justiça” é também valor central e que, por isso, não fica restrito a afirmações genéricas do tipo “você deve buscar a mais absoluta forma de justiça” [1], mas estabelecendo abordagens concretas com relação ao estabelecimento de um sistema judicial honesto, que não favoreça nem os poderosos nem os oprimidos [2].

A discussão da responsabilidade social judaica, seja com relação ao meio-ambiente ou com outras pessoas, também pode levar a falsos consensos a menos que esteja baseada em políticas concretas. Na parashá desta semana (beHar), encontramos mecanismos concretos de tornar estas responsabilidades efetivas. A Torá não se limita a compromissos genéricos com a justiça ambiental: estabelece que a terra deve descansar completamente a cada sete anos, permitindo que se regenere antes de voltar a produzir. Da mesma forma, nossa parashá vai além do desejo de que uma sociedade justa e igualitária se estabelecesse entre os israelitas: cria a regra de que o acúmulo de terras seria cancelado a cada cinquenta anos, retornando à distribuição original, como definida quando o povo entrou na terra de Israel pela primeira vez. 

Quantos de nós podemos dizer que agimos de forma semelhante à prescrita pela Torá na passagem desta semana? Me parece que muitas vezes afirmamos nossa simpatia por conceitos abstratos exatamente porque sabemos que eles não terão qualquer impacto na vida que levamos, que não nos forçarão a mudar em nada o que já fazemos. Por exemplo, manifestamos nossa preocupação com o meio ambiente ao mesmo tempo em que não mudamos nossos hábitos de consumo; expressamos o sonho de uma sociedade menos injusta mas não nos mostramos dispostos a abrir mão dos privilégios de que desfrutamos. E, assim, em muitas outras situações nos manifestamos comprometidos com algumas causas sem fazermos qualquer esforço para avançá-las de fato.

Que a parashá desta semana nos ajude a alinhar nossas ações, nossos anseios e nossas palavras, dando concretude aos valores judaicos que dizemos defender.

Shabat Shalom, 


[1] Deut. 16:20

[2[ Por ex.:  Deut. 16:18-19; Ex. 23:1-3


sexta-feira, 29 de abril de 2022

Dvar Torá: Entre criatividade e arrogância (CIP)


Entre os muitos hábitos que eu tinha na juventude e que meus pais esperavam que eu abandonasse quando envelhecesse está o gosto musical — que, para desespero deles e dos meus filhos, inclui cantores e conjuntos fora do consenso musical. Por exemplo, eu adoro releituras de músicas bregas — Marisa Orth e a Banda Vexame faziam um trabalho lindo nesse sentido; mais recentemente, Nando Reis e Nila Branco também dedicaram álbuns a este tipo de trabalho. Outro tipo de música que eu gosto fora do mainstream é o que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista, um movimento musical que incluía nomes como os de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e o Língua de Trapo. Ainda hoje, tenho dificuldade para no Metrô, ver os nomes dos bairros de São Paulo refletidos nos nomes das estações não começar a cantarolar:

Chora Menino, Freguesia do Ó
Carandiru, Mandaqui, aqui
Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina
Vila Carrão, Morumbi, pare
Butantã, Utinga, Embu e Imirim
Brás, Brás, Belém
Bom Retiro
Barra Funda
Ermelino Matarazzo, Mooca, Penha, Lapa, Sé
Jabaquara
Pirituba
Tucuruvi, Tatuapé. [1]

Essas bandas eram conhecidas por um estilo musical MUITO eclético, que misturava muitos gêneros diferentes e sempre com grande dose de humor. No álbum mais famoso do Língua de Trapo, que tem o nome da própria banda, uma vinheta de humor no meio do álbum trazia o seguinte diálogo:

– Seu nome, por favor?
– Inês
– Inês, você conhece o grupo Língua de Trapo?
– Não.
– E o que você acha deles?
– Uma porcaria.

Parece piada e foi incluído no álbum, eu tenho certeza, como piada, mas a triste verdade é que esta vinheta descreve de forma bastante acurada o que estamos vivendo. Temos opinião sobre TUDO. Opinião sobre o que conhecemos e, especialmente, opinião sobre aquilo sobre o qual não temos o mínimo conhecimento. 

Nós últimos anos, este fenômeno tem se acentuado, com uma certa valorização da falta de conhecimento. Se um dispositivo eletrônico tiver sido desenvolvido por alguém que não tinha formação na área, ganha crédito; se um remédio tiver sido criado por alguém que não é médico nem farmacêutico, ainda melhor. Ao invés de valorizarmos o conhecimento e uma atitude de humildade frente a ele, chegamos a um estado de coisas em que a arrogância ignorante é que é valorizada.

Fiquei pensando nesta realidade quando li o comentário de Dena Weiss. coordenadora do Beit Midrash do Instituto Hadar, em Nova York, para a parashá desta semana [2].

Há mais ou menos um mês, em parashat Shmini, lemos sobre o fogo estranho, אש זרה, esh zará, que os filhos de Aharon, Nadav e Avihu, ofereceram a Deus na inauguração do Mishcán e como de forma pouco compreensível um fogo Divino os consumiu. [3]

Preciso confessar que tenho certa dificuldade com esta passagem. Em parte, ela parece justificar uma atitude hiper-conservadora com relação à prática religiosa, na qual apenas o que já tiver sido estabelecido é aceito. Qualquer inovação corre o risco de incitar a fúria Divina e nos ver consumidos pelo fogo. Qualquer espaço para a espontaneidade, ficaria desta forma, inviabilizado pelo texto bíblico. Para mim, no entanto, a prática religiosa floresce na manifestação genuína, naquilo que a tradição chama de “cavaná”, da ação motivada pela intenção dos nossos corações — ainda que em espaços delimitados por “keva” a formulação tradicional da prática religiosa. Por isso, o episódio de Nadav e Avihu consumidos pelo fogo sempre trouxe consigo bastante desconforto. 

Agora, nossa parashá literalmente retoma aquele episódio, nos contando o que aconteceu na sua sequência. Moshé recebe as instruções que deve passar a Aharón depois da morte de seus filhos:

A primeira instrução é que Aharón não pode entrar na parte mais sagrada do Mishcán quando quiser, mas apenas em Iom Kipur, seguindo instruções muito específicas. A segunda instrução é com relação ao ritual dos dois bodes a serem oferecidos em Iom Kipur: um quer será sacrificado para Deus e outro que será enviado ao deserto.

Dena Weiss buscou a ligação entre a morte de Nadav e Avihu e a proibição de entrar no קודש הקודשים, kodesh hakodashim, o lugar mais sagrado do Tabernáculo. Na sua leitura, a transgressão de Nadav e Avihu não estava na oferta que eles haviam trazido sem instrução prévia, mas no fato de que não tinham respeitado o espaço mais íntimo que o Divino tinha estabelecido no Santuário. Quantas vezes não sentimos nossos espaços pessoais ou profissionais invadidos; algumas vezes levando a sensações de termos sido profundamente desrespeitados? Se nos sentimos assim, podemos imaginar que o Divino, que inaugurava o espaço de sua morada entre os Hebreus, reagiria também com indignação frente à violação do seu espaço.

Dena Weiss também nos mostra que, de acordo com a literatura rabínica, esta era uma prática na qual Nadav e Avihu já tinham se engajado antes. Quando Deus convoca Moshé para subir ao Monte Sinai e receber as duas Tábuas do Pacto, o acompanharam Aharón, setenta anciãos, Nadav e Avihu. Naquela situação, de acordo com o midrash, eles já teriam agido de forma desrespeitosa com relação ao Divino, comendo sua refeição enquanto olhavam para a face de Deus. Dena Weiss continua: “A atitude de arrogância e privilégio de Nadav e Avihu não apenas se manifestou como grosseria para com Deus; também foi expresso em uma abordagem chocantemente superior que eles adotaram em relação a outras pessoas.”

Nadav e Avihu se comportavam como se seu status lhes conferisse direitos especiais sem que eles precisassem seguir regras, conhecer os parâmetros. Eles não precisariam adquirir conhecimento, nem construir pessoalmente sua relação com Deus. Seu pai era o Sumo Sacerdote; seu tio era Moshé. Como algo poderia lhes ser negado?!

Nas palavras de Dena Weiss: “(…) o pecado de Nadav e Avihu (…) corresponde à pior parte de nós mesmos. Eles não refletem apenas nosso desejo virtuoso de dar; também refletem nosso desejo egoísta de possuir o que não é nosso por direito. Um exame mais detalhado de seu pecado revela que Nadav e Avihu não estavam sendo atenciosos – exatamente o oposto: eles agiam sem consideração, eram descuidados e desrespeitosos. Sua ação demonstrou que eles pensavam que tudo era deles para dar, o que mal mascara sua compreensão de que tudo também é deles para receber. Em sua abordagem, o mundo e tudo nele pertence a eles.”

Quantas vezes não agimos como Nadav e Avihu, acreditando que nossos privilégios nos abrem todas as portas sem esforço? Que nossa cor, nosso pertencimento comunitário, nossa idade, nosso status sócio-econômico, nossa relação com pessoas em posição de poder , que todos estes fatores nos deveriam conferir um tratamento diferenciado, um reconhecimento da pessoa iluminada que imaginamos ser — mesmo que não tenhamos feito por merecer, mesmo que não tenhamos ainda conquistado estas distinções….

Que nesse shabat consigamos deixar a humildade nos conduzir, escutando antes de falar, estudando e considerando antes de emitir opiniões infundadas, considerando o contexto e a comunidade antes de definirmos nossas ações de forma isolada.

Shabat Shalom,



sexta-feira, 15 de abril de 2022

Dvar Torá: A Tradição que ganha vida hoje (CIP)


A primeira professora que eu tive no meu processo de formação rabínica foi Rachel Adler. De vez em quando, no meio de uma aula ou de outra, ela soltava comentários sobre sua jornada pessoal. Crescida em uma família judia reformista, ela adotou um estilo de vida ortodoxo quando se casou com um rabino ortodoxo aos 21 anos. [1] Neste período, ela se estabeleceu como uma influente líder do movimento feminista ortodoxo. Com o tempo, no entanto, sua militância feminista a levou por caminhos distantes da ortodoxia. Ela se divorciou, se re-aproximou do Judaísmo Reformista da sua juventude, completou um doutorado em Teologia Judaica e se formou rabina  aos 69 anos. Em um artigo comovente que ela escreveu nesta nova fase [2], ela reclama que artigos que ela escreveu quando pertencia à ortodoxia continuam influenciando novas gerações feministas ortodoxas, apesar de que ela mesma não acredita mais naquelas palavras. “Algumas vezes,” ela escreveu, “não podemos nos repetir. Podemos apenas nos transformar.”

Já aconteceu com vocês dizerem ou escreverem algo do qual se arrependem, mas as pessoas continuam te procurando porque concordam com a sua antiga posição?!  Comigo QUASE aconteceu….

Deve fazer uns trinta e cinco anos… estávamos no colegial e, junto com um grupo de amigos, organizamos um sêder de Pessach do Grêmio para os alunos da escola. Eu escrevi um texto de abertura para nossa comemoração que tomava como ponto de partida a ideia de 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

No texto que eu escrevi na minha adolescência, o tom que eu adotava me alinhava com a abordagem lacrimosa para a história judaica, enxergando-a como uma série de perseguições e desastres, que tinham transformado aquele conceito em uma maldição.

A verdade é que, diferentemente do que aconteceu com a Rachel Adler, provavelmente ninguém além de mim se lembra daquele sêder e muito menos do meu texto de abertura… mas minha visão da história judaica mudou desde aquela época.

O que não mudou foi o entendimento de que a parte paradoxalmente mais importante e mais difícil do sêder de Pessach é fazer com quem cada um de nós se sinta realmente sendo libertado hoje à noite. Em geral, cantaremos músicas que já conhecemos, leremos poemas e histórias que já sabemos de cor, desfrutaremos comidas que nos transportam para sedarim de outros tempos, com pessoas muito queridas que já não estão mais, — e tudo isso cria ritual, gera continuidade, leva a memórias afetivas que vão nos acompanhar pra sempre. Tudo muito bom — mas na contramão de nos percebermos, neste ano, neste momento, libertados.

O rabino Arthur Waskow conta que para ele tudo mudou no sêder de 1968, o ano em que Martin Luuther King Jr. foi assassinado uma semana antes de Pessach. Naquele sêder, em Washington, com tropas federais ocupando os bairros negros para evitar distúrbios, as coisas começaram a mudar para ele. Em suas próprias palavras:
Em algum lugar dentro de mim, mais profundo que meu cérebro ou respiração, meu sangue começou a cantar: "Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder” (…) Sim, nas ruas está o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder. De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.

Pois naquela noite, a própria Hagadá, a Contação da nossa escravidão e da nossa liberdade, tornou-se a verdadeira conversa sobre nossa vida real. Os alimentos rituais, a amargura da erva amarga, o pão pressionado pela opressão de todos, o vinho da alegria na luta, tornaram-se a verdadeira refeição.

Pela primeira vez, paramos no meio do próprio Maguid, para conectar as ruas com o sêder. Todo ano, desde que aprendi a ler, recitava a passagem que diz: "Em toda geração, todo ser humano é obrigado a dizer: 'Nós mesmos, não apenas nossos antepassados, saímos da escravidão para a liberdade’".

Incrível! - não "todo judeu", diz: "Todo ser humano!" [3]
O esforço do rabino Waskow tem sido o esforço de todo o povo judeu ao longo da nossa história de se perguntar como saída de Mitsrayim é a história que estamos vivendo hoje. Para os chassidim, Pêssach era a oportunidade de nos libertarmos das amarras de nossos egos hiper-inflados, o verdadeiro chamêts; sobreviventes da Shoá encontraram relevância no ritual imaginando os capatazes do faraó com insígnias nazistas; os chalutsim, os pioneiros sionistas que voltaram a Israel no começo do século XX para recolonizar a terra, imaginando o chachám, o filho sábio da hagadá, como um jovem do kibutz, pronto para largar os livros e sujar sua mão no solo; para vítimas de violência doméstica hoje em dia, Pessach é a chance de sonhar com dias diferentes; para meus avós, imigrantes da Europa Oriental, Pessach era a oportunidade de falar da sua condição, tendo fugido de uma situação terrível e, mesmo assim, muitas vezes sentido falta dos aromas, dos sabores, do idioma da terra que eles tinham abandonado.

O processo continua. Todos os anos, há novas hagadot sendo publicadas, com textos inovadores e tradicionais, sempre buscando relacionar a liberdade com a nossa situação pessoal. Há algumas semanas, recebi o texto que Bernardo Sorj, sociólogo e um dos mais interessantes intelectuais do judaísmo no Brasil, escreve todo ano para o sêder. Desta vez, ela relaciona a atitude arrogante do faraó com o conflito entre Rússia e Ucrânia e com o momento político que vivemos no Brasil. 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

E você?! O que vai fazer para que o ritual não fique apenas na repetição de velhas fórmulas, e para que sirva de inspiração para a tua libertação pessoal?

Shabat Shalom e Chag haCherut Sameach!


[2] “In Your Blood, Live: Re-visions of a Theology of Purity.” in Lifecycles 2, edited by Debra Orenstein and Jane Litman. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1997. ps197-206

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Dvar Torá: Vendo as doenças como parte da vida (CIP)


Esta semana, nós tivemos a 94ª edição do Oscar mas a verdade é que eu não sei mais como me preparar para o Oscar nem o que fazer com a lista dos filmes premiados na sequência. Na minha adolescência e na época de faculdade, tentávamos assistir todos os filmes indicados antes da premiação — e, se por acaso, um filme que não tínhamos assistido ganhasse algum prêmio importante, pegávamos fila no cinema para conseguir vê-lo.

Hoje, com pandemia e inúmeros serviços de streaming, tenho a impressão de que a experiência do Oscar perdeu a importância e que eu prefiro continuar maratonando a minha série bobinha a parar pra assistir um filme premiado. Mas talvez, seja só eu….

De qualquer forma, nesta 94ª edição, parece que ninguém falou sobre os filmes premiados no dia seguinte. Tudo que as pessoas comentavam era o tapa que o Will Smith tinha dado no Chris Rock. Se você não sabe o que aconteceu, Chris Rock estava apresentando a cerimônia e fez uma piada comparando Jada Pinkett Smith, esposa do Will Smith, com um papel de Demi Moore no filme G. I. Jane, no qual ela tinha a cabeça raspada. A questão é que Jada tem alopecia, uma condição que leva à queda de cabelo.

Durante toda esta semana, falou-se se Chris Rock teria sido insensível ao fazer piada de uma condição médica ou se Will Smith teria sido hipócrita ao defender a paz mas resolver os problemas através da violência. Qualquer que seja a sua opinião (ou a minha) nestas questões, elas abriram a possibilidade de pensarmos como conversamos sobre doenças, um tema com o qual nossa sociedade, em geral, não lida bem.
Muitas vezes, escondemos que estamos doentes mesmo das pessoas mais próximas, porque não queremos preocupá-los ou não queremos que eles passem a nos tratar de forma diferente. 

Em outras, há um sentimento de vergonha, como se tivesse sido por culpa nossa que tivéssemos adoecido. A linguagem coloquial também não ajuda — não são raras as situações em que nos referimos metaforicamente a doenças como aquilo que causa todo o mal do mundo. Imagina, por exemplo, como se sente uma pessoa que tem câncer quando nos referimos a uma fenômeno social terrível como um câncer da sociedade. Quem iria se identificar como tendo câncer em um contexto desses? Nós sofremos de doenças, lutamos contra elas, estávamos em guerra contra a Covid. Neste contexto cultural, não é difícil entender porque a parashá desta semana cause tanto estranhamento aos comentaristas e nos cause tanta dificuldade para comentá-la. Em parashat Tazria, a questão central do texto é uma condição dematológica chamada “tsaraat”, que é frequente e erroneamente traduzida como “lepra”. O texto da Torá instrui os sacerdotes em como investigar a questão e tratá-la, muitas vezes afastando a pessoa doente do convívio social.

O rabino Art Green escreveu a respeito da dificuldade e da importância de encontrarmos estes textos hoje em dia: 
Todos nós (…) somos sobreviventes. Vivemos juntos durante anos terríveis de peste. Muitos de nós perdemos pessoas que amávamos ou com quem nos preocupávamos. As pessoas mais velhas também tendem a se ver como sobreviventes de vários outros eventos ao longo de nossas vidas: câncer, acidentes de trânsito, vícios e muitos outros tipos de pragas. [1]
Em sua leitura metafórica, baseada no tipo de análise de texto comum entre os mestres chassídicos, ele propõe 5 ensinamentos a partir da forma como os sacerdotes abordavam a questão da tsaraat, que podem nos inspirar também na forma como nós tratamos das nossas próprias doenças ou daquelas das pessoas à nossa volta, em particular com questões de saúde mental ou da alma, como a depressão, o pânico e outras tantas condições:
  1. Enxergue, além da doença, também a pessoa que está doente a sua dor emocional. Quão profunda é ela? Será que você pode ajudá-la a evitar que esta dor se espalhe e acabe tomando conta de tudo que esta pessoa é?
  2. Se permita ser surpreendido de forma positiva e, se este for o caso, ajuda o enfermo a recuperar parte da alegria e da esperança;
  3. A dor pela re-ocorrência pode ser ainda maior que a dor por contrair uma doença pela primeira vez. Leve a sério os pedidos de ajuda, sem tratar a questão com desdém;
  4. Há situações, em particular, aquelas referentes a traumas psicológicos, nos quais se sentir reconhecido, enxergado e escutado já é um imenso primeiro passo para a recuperação;
  5. Não despreze a importância de rituais (religiosos ou não) para marcar a recuperação do corpo, da alma e do espírito. 
O rabino Art Green nos lembra que este rituais são ainda mais poderosos quando contém, dentro deles, elementos da antiguidade.

Na literatura talmúdica, alguns rabinos mantinham distância absoluta dos enfermos. Rabi Ami e Rabi Asi não entravam em uma rua em que alguém tivesse tsaraat, Reish Lakish, um dos maiores expoentes da sua geração, atirava pedra nas pessoas que tivessem esta doença. [2]

Outros sábios, no entanto, mantinham uma relação de proximidade com aqueles que mais precisavam do seu carinho e atenção. Em uma passagem [3], o Talmud nos conta como o rabino Iehoshua ben Levi se juntava a quem estava doente e estudava Torá junto com eles. Em outra passagem do Talmud [4], o mesmo rabino Iehoshua ben Levi encontra Eliahu haNavi, o profeta Eliahu, que a tradição acredita que serve como uma ponte entre o mundo celestial e o mundo terreno. O rabino Iehoshua ben Levi pergunta a Eliahu haNavi quando o Messias chegará. “Vá e pergunte a ele”, foi a resposta do profeta. “E onde o encontro?”, perguntou o rabino. “Na entrada de Roma.” “E como eu saberei quem ele é.” A resposta de Eliahu haNavi aponta para o carinho dispensado a quem está doente: “Ele se senta entre os pobres que sofrem de doenças. E todos eles desamarram suas ataduras e amarram todas de uma vez, mas o Messias desamarra uma atadura e amarra uma de cada vez. Ele diz: Talvez eu precise servir para trazer a redenção. Portanto, nunca vou fazer mais de um curativo, para não me atrasar.”.

Que neste shabat Tazria, de leituras tão difíceis e que remetem tantos de nós às situações difíceis pelas quais estamos passando, que tenhamos a capacidade de verdadeiramente acolher os enfermos e de enxergá-los completamente, sua verdade, sua dor, suas alegrias, sua esperança, seu cansaço.

Shabat Shalom,

[1] Art Green, Comentários da Parashá distribuídos por email.
[2] Avraham Burg, Very Near to You, p. 236.
[3] BT Ketubot 77b
[4] BT Sanhedrin 98a