sexta-feira, 18 de março de 2022

Dvar Torá: Sacrifícios e sacerdotes continuam relevantes? (CIP)


Na semana passada, trazendo meu filho da escola para casa, eu comecei a puxar conversa no carro sobre a prova que ele teria no dia seguinte. “Qual a matéria da prova?”, eu perguntei. “Pois é…” começou a resposta. “A prova é de português e tem uma parte da matéria que eu não entendi ainda”, e ele continuou: “Eu não consegui entender qual a diferença entre fonemas e dígrafos.”

Confesso que eu não me lembro de ter estudado fonemas e dígrafos quando tinha a idade dele mas, de qualquer forma, eu tampouco sabia o que estes conceitos eram. Nada como uma busca no Google para elucidá-los e poder explicar para a pobre criança desesperada.

Mas logo na sequência veio a pergunta que todo pai de filhos em idade escolar escuta, no mínimo, um milhão de vezes: “pai, pra que eu preciso aprender isso?!?! Que diferença isso vai fazer na minha vida?!?!”
Implícito nesta pergunta está a crença de que os conceitos que aprendemos na escola precisam ter utilidade neles mesmos, alguma aplicação prática que justifique gastarmos horas de aula, noites de sono e litros de café tentando entendê-los.

Um dia, eu também pensei assim, talvez fosse até um ativista por uma reforma curricular ampla que eliminasse os conceitos inúteis e focasse mais naquilo que realmente precisávamos saber. Na época, eu era representante dos alunos no Conselho do Departamento de Ciência da Computação da USP e protestava pela substituição de várias disciplinas teóricas por outras mais práticas e aplicáveis ao mercado de trabalho. Quem me mostrou como eu estava errado foi o professor Valdemar Setzer, que argumentava que a função da universidade era abrir nossas mentes, nos ajudar a pensar de distintas maneiras, conceber abordagens inusitadas para problemas que nem tinham sido formulados ainda. Esta era a verdadeira função das disciplinas teóricas que precisávamos cursar: desenvolver nosso raciocínio para que pudéssemos resolver novos problemas quando chegasse a hora. Para nos ensinar uma nova linguagem de programação, nossos futuros empregadores seriam bem melhores do que a universidade.

A parashá desta semana é uma daquelas sobre as quais meu filho perguntaria: “pai, por que precisamos aprender isso?!” A maior parte da parashá trata da oferta de sacrifícios animais, uma prática que o judaísmo rabínico abandonou há quase dois mil anos, especialmente pela classe dos kohanim, os sacerdotes no Templo, uma espécie de casta hereditária judaica que o mundo judaico liberal também, em grande parte, rejeitou.

E, mesmo assim, como eu aprendi com o professor Valdemar Setzer, é nessas passagens sem aplicação prática direta que, muitas vezes, encontramos os significados mais relevantes para nossa situação.

A ideia de sacrifício se, por um lado parece anacrônica, de outro, nunca foi tão relevante. Vivemos na época das liberdades, tema sobre o qual vamos conversar, por sinal, com o Dan Stuhlbach e o Eduardo Gianneti. Em particular, vivemos na época das liberdades individuais. Outro dia, o debate era se tínhamos liberdade para expressar ideais antissemitas ou preconceituosos contra outro grupos. Há o debate sobre o direito de portar armas em qualquer espaço. Há o debate sobre a liberdade de quem adota comportamentos arriscados, mesmo que isso coloque outros em risco ou que imponha ao coletivo arcar com as consequências destes comportamentos. Em tempos de direitos individuais, quais seriam os direitos do coletivo? Quem sacrifícios — este conceito tão presente no livro de Vaicrá e tão estranho aos nossos ouvidos contemporâneos — que sacrifícios estaríamos dispostos a fazer para o bem comum? De que forma, precisamos equilibrar  o conceito de liberdade com a noção de responsabilidade?!

Na Torá, oferecer um sacrifício não era algo fácil. Eram escolhidos os melhores animais, produtos agrícolas e alimentos. Em uma época em que a escassez era a norma, levar estes melhores produtos para que fossem oferecidos em sacrifício, implicava abrir mão de produtos valiosos, que fariam falta — mas a recompensa comunitária justificava estes atos. E, hoje, de que parte cara das nossas liberdades estaríamos dispostos a sacrificar por um benefício maior do coletivo?

Um outro aspecto que dá relevância aos sacrifícios dos cohanim, dos sacerdotes, é a própria ideia do sacerdócio. Em tempos bíblicos, eles eram — juntos com os levitas — os exemplos paradigmáticos de pessoas que dedicavam a vida a servir a comunidade e parte das ofertas em sacrifício eram destinadas ao usufruto deles. A discussão sobre o comportamento ético de nossos líderes em cargo de liderança também se aplica a realidade contemporânea. De acordo com Avraham Burg:
Qualquer um que não fizesse parte do establishment do Templo em Jerusalém compreendia que os sacrifícios equivaliam a um imposto com comissões para os que faziam parte do esquema, os sacerdotes e os burocratas do santuário, que freqüentemente tinham muito pouco a ver com santidade. A crítica profética e a crítica posterior dos sábios, surgiram contra a tendência de fazer do sacrifício um fim em si mesmo, a uma tecnologia de fé que vem no lugar de um genuíno sentimento religioso de obrigação espiritual e ética. [1]
Vivemos tempos turbulentos com relação às lideranças da nossa sociedade. A busca do poder pelo poder, por motivos escusos e  para o engrandecimento do próprio nome caracteriza muito mais líderes do que conseguimos contar. Há uma guerra — talvez mais de uma, na verdade — em curso no qual o único objetivo parece ser estabelecer o nome do líder agressor no panteão de grandes líderes do seu país. Uma lista que inclui outros opressores cujos nomes ficaram marcados para sempre na infame lista dos piores ditadores da história. 

Por aqui, no Brasil de 2022, a discussão das necessidades públicas parece ser sempre suplantada pelos interesses políticos imediatistas e pela pergunta “o que eu ganho com isso?!” Desapontados, muitas vezes abandonamos nossos próprios ideais e partimos também para uma defesa dos nossos próprios interesses, sem generosidade pela necessidade dos outros e sem a disposição de fazer sacrifícios.

Os rabinos Dov Ber ben Avraham de Mezeritch e Menachem Nachum Twersky, dois dos primeiros mestres do movimento chassídico, escreveram a respeito do verso inicial da parashá, que diz: “Adonai falou a Moshé, dizendo: ordene isto a Aharón e a seus filhos, esta é a Torá da Elevação.” Em seus comentários, eles trouxeram passagens rabínicas que comparam o estudo da Torá à oferta de todos os sacrifícios [2]. Que neste shabat possamos nos encontrar verdadeiramente com nossos textos e buscar neles relevância para os dilemas que enfrentamos hoje e agora.

Shabat Shalom!


[1] Avraham Burg, “Very Near to You”, p. 221.
[2] B Menachot 110a


quinta-feira, 10 de março de 2022

O pequeno alef e os sacrifícios a que somos chamados

“Chamou a Moshé e Adonai lhe falou da Tenda do Encontro, dizendo…”. Com este verso começa a parashá desta semana e o livro de Vaicrá, Levítico, o terceiro dos cinco livros da Torá. Quem chamou a Moshé não fica claro e tem sido o objeto de grande debate e especulação entre os comentaristas ao longo dos séculos.

Como componente adicional do mistério, a última letra da primeira palavra deste verso é um alef, que neste caso é escrito em um tamanho menor que as demais letras da página. Quem poderia ter chamado a Moshé para que Deus o instruísse nas regras dos sacrifícios, tema de grande parte deste terceiro livro?

Há comentaristas para quem o alef em tamanho pequeno é sinal de que é o “eu” (“aní”, em hebraico) de Moshé quem o chama e interpretam que cada um deve escutar a sua voz mais profunda, a sua consciência mais verdadeira, para definir quais são nossos interesses que nos levariam a um envolvimento verdadeiro e que sacrifícios estamos dispostos a fazer, de que estamos dispostos a abrir mão.

Uma outra interpretação para o pequeno alef vai na direção contrária e o associa à Shechiná, ao aspecto do Divino que está mais próximo do mundo em que vivemos e presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Nesta leitura, escutar o chamado do pequeno alef é prestar atenção ao mundo que nos rodeia para decidir os sacrifícios que precisamos fazer. Se na primeira interpretação, perguntávamos ao nosso eu mais profundo em que deveríamos nos envolver, desta vez, paramos para escutar o que o mundo grita que suas necessidades mais prementes são. Olhamos ao redor, enxergamos o Divino na face das pessoas que nos são próximas e também nas de quem nos é mais distante. Quais são as causas e projetos cuja urgência clama pelo nosso envolvimento, mesmo que não seja o assunto que mais nos interessa?

Em qualquer destas duas abordagens, a questão do sacrifício pessoal tem valor central. Vivemos em um tempo de fartura material como, provavelmente, a humanidade jamais tenha visto. Temos, em geral, muito mais “coisas” do que conseguiríamos aproveitar nas nossas vidas, geramos uma quantidade imensa de lixo a cada dia, e, mesmo assim, temos enorme dificuldade em desapegar, em abrir mão de coisas que nos são caras. Quando fazemos uma doação, é é dinheiro que não nos faltará ou um sapato que já não usamos mais; quando damos algo nosso de presente, é, via de regra, algo do qual enjoamos. 

Várias situações anedóticas, no entanto, relatam que pessoas que têm muito menos apresentam maior propensão a dividir o pouco que têm, mesmo que depois lhes falte, mesmo que o feijão fique aguado como consequência do convidado adicional à mesa. O Livro de Vaicrá aponta para este comportamento como desejável: Deus nos instrui a abrir mão das melhores frutas, dos melhores animais, de doarmos aquilo do qual, na verdade, sentiremos falta. E, então, o pequeno alef ao final da primeira palavra do livro nos convida a perguntarmos de que nossa verdade mais íntima nos instrui a abrirmos mão? Em quais causas acreditamos mais profundamente e com a qual queremos contribuir, que realidades gostaríamos de transformar, em que projetos sentimos que precisamos estar envolvidos, mesmo que tenhamos que abrir mão de outros interesses?

Um midrash famoso fala que Avraham chegou à percepção da existência de um Deus único ao perceber que, assim como um farol não se consumia pelo fogo porque havia um faroleiro que cuidava dele, que se o mundo não era consumido pelo caos, o Divino precisava existir para garantir a continuidade do mundo. Vários teólogos dizem que vivemos em uma época de Hester Panim, na qual Deus esconde Sua face. É nossa vez de escutarmos nossa voz interna e de enxergarmos a realidade externa e de fazermos os sacrifícios que conseguirmos para garantir que o caos não engula completamente o nosso mundo. 

Qual é a causa que verdadeiramente te interessa? Qual a necessidade sobre a qual você enxerga o mundo gritando e pedindo ajuda? O que você está disposto a sacrificar para garantir que vivamos todos em uma realidade mais justa, mais equilibrada, mais inclusiva e mais acolhedora?

Shabat Shalom!


quinta-feira, 3 de março de 2022

O que vem depois da saída de Mitsrayim?

Duas conversas que eu tive esta semana apontaram em direções opostas. Em uma delas, a pessoa me disse: “o que é, é; o que não é, não é”, com uma convicção evidente de quem acredita na clara distinção entre as categorias das quais falava. Na outra conversa, a pessoa mencionou a Caixa de Schrödinger, o experimento teórico da Física Quântica na qual um gato é mantido em uma caixa de metal fechada, com um dispositivo atômico e um vidro de veneno. Passada uma hora, sem sabermos se o dispositivo atômico havia sido ativado, o experimento considera que o gato está paradoxal e simultaneamente vivo e morto. A menção a este conceito abstrato foi para exemplificar que, às vezes, as categorias se misturam e as coisas estão em várias delas ao mesmo tempo.

Fiquei pensando nisso ao ler a passagem da Torá deste shabat. Nela, alguns conceitos centrais do comprometimento judaico com a Justiça Social, que já tinham sido mencionados em outras partes da Torá, são relembrados. Um trecho se destaca: “Não haverá necessitados em teu meio – pois Adonai te abençoará na terra que Adonai, teu Deus, te dá como posse hereditária na condição de que você escute a voz de Adonai, teu Deus, mantendo e cumprindo toda esta mitsvá que Eu te ordeno hoje. (...) Se, no entanto, houver uma pessoa necessitada em teu meio, um de teus parentes em qualquer um dos teus assentamentos na terra que Adonai, teu Deus, te dá, não endureça teu coração nem feche a tua mão para o teu necessitado.” [1]

Assim, Deus deixa claro que a garantia do bem estar do povo de Israel depende de que nós mesmos sigamos os valores judaicos de ajuda ao próximo. A tradição judaica já nos dá as ferramentas para garantir uma situação de bem estar social, sem a necessidade de milagres ou de intervenção Divina direta. De alguma forma, o sistema que estabelece estes valores e regras já é a intervenção Divina. E, considerando a forma integrada como a comunidade judaica vive em muitas partes (incluindo o Brasil), nosso comprometimento não deve ser apenas com outros judeus, mas com todos aqueles com quem compartilhamos esta terra, em suas maravilhas e em seus desafios.

Mas por que esta é a passagem escolhida pela tradição para ser lida em Pessach? Haverá, certamente, quem argumente que é pela menção ao sacrifício de Pessach, à contagem do Omer e à comemoração das três Festas de Peregrinação (Pessach, Shavuot e Sucot) no final da passagem [2] e eles estão, provavelmente, certos. Eu gostaria de propor um motivo adicional para que esta seja a leitura neste momento do ano. A saída de Mistrayim e a conquista da liberdade pelos hebreus são a narrativa fundacional mais importante da tradição judaica, cara em particular aos conceitos relacionados ao nosso compromisso com a Justiça Social. Em inúmeras passagens da Torá, a proteção aos vulneráveis é explicitamente vinculada ao conceito de que “vocês foram estrangeiros na terra de Mitrayim.” No seder de Pessach revivemos a dor da opressão e a alegria da redenção – por isso, renovamos nosso compromisso com a criação de um mundo no qual possamos viver todos em liberdade e com dignidade. O texto da Torá desta semana reafirma que este compromisso não pode existir apenas de forma abstrata - ele  tem implicações concretas sobre nossa conduta, determinando ações que devemos ter e outras nas quais não podemos nos engajar.

Da mesma forma que o Shabat nos permite viver um “gostinho do mundo vindouro” e renova nosso compromisso com construir esta realidade já a partir da Havdalá, Pessach deve renovar nosso comprometimento com um mundo mais justo, onde Liberdade não seja privilégio de alguns, mas possa ser a realidade de todos. Esse é o lembrete que a leitura da Torá deste 8º dia de Pessach nos deixa.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 15:4-5,7. 

[2] Deut. 16:1-17.

[3] Veja, por exemplo, Ex. 22:20, Lev. 19:34, Deut. 10:19.


 


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Atenção: Comunidade em Construção

Confesso que nunca gostei muito de praticar esportes, tampouco de assisti-los pela TV. Hoje em dia, quando meu filho passa horas assistindo outras pessoas jogando seus videogames favoritos, eu lhe pergunto se jogar não é mais divertido que assistir, parece que ele não entende a pergunta, como se não existisse, de fato, diferença para ele. o único período em que eu acompanhei esportes pela TV foi na década de 80, quando o Brasil tinha grandes pilotos de corrida. Naquela época, seguíamos duas competições: a Fórmula-1, que era transmitida pela Globo, e a Fórmula Indy, que passava na Bandeirantes. Esta última mesclava circuitos tradicionais, com curvas para os dois lados com circuitos ovais, em geral com curvas apenas para a esquerda, como a famosa 500 Milhas de Indianápolis. Nos dois tipos de circuito, muitas aconteciam a cada volta mas, a menos que um carro se acidentasse ou desistisse no meio, todos retornavam ao mesmo ponto e iniciavam uma nova volta.

Fiquei pensando nas repetições, volta após volta, das corridas de carro ao considerar o que temos vivido nos últimos anos com a pandemia e como a parashá desta semana tem se relacionado com os ciclos (ou as voltas) que temos vivido. Foi nesta parashá, Vaiakhel, que tivemos em 2020 o primeiro Cabalat Shabat a portas fechadas, com medo do que estava por vir. Quando lemos esta parashá em março de 2021, estávamos no começo da segunda onda, assustados (com razão) com a piora do quadro de saúde pública. Neste ano, depois de termos atravessado mais uma piora na saúde pública, estamos com a impressão de que deixamos para trás o pior da crise trazida pela variante Ômicron, começamos a nos preparar para o retorno a atividades presenciais na CIP, tanto para a equipe profissional quanto para nossa comunidade.

A palavra “Vaiakhel”, o nome da parashá, vem da mesma raíz que “kehilá”, “comunidade” ou “congregação”, e se refere ao momento em que Moshé “congrega” todo o povo para transmitir as instruções de Deus com relação à construção do Mishcán. Ao longo dos últimos dois anos, fomos desafiados a repensar o que significa estar em comunidade. Não são raras as situações em que, ao encontrar alguém pela primeira vez, me dizem “eu já te conheço, mas você ainda não sabe quem eu sou.” Frente à minha cara de espanto (pelo menos nas primeiras vezes que me disseram isso), a pessoa continua: “acompanho os serviços da CIP online, então já acostumei a rezar com você na sala da minha casa, só você que não consegue ver que estamos lá, juntos.” Quem já participou destes serviços religiosos online sabe que há uma comunidade que “se encontra” no mundo virtual, manda saudações de Shabat Shalom, reage uns aos comentários dos outros. Será que é esse o novo formato de comunidade com o qual precisamos nos acostumar, em que não nos vemos mas reconhecemos que estamos participando da mesma experiência?

Uma outra vivência online é o minián diário da CIP. Nos encontramos por Zoom, o que permite que sejamos vistos e também vejamos os participantes. Pessoas de todo o país, que antes não tinham a oportunidade de rezar juntas, passaram a se encontrar diariamente. Ao longo dos últimos dois anos, tivemos vários casos de famílias enlutadas que, graças à tecnologia, puderam congregar membros que viviam em continentes distintos. Antes do serviço e ao seu final, conversam um pouco, conhecem mais da vida de cada um. Será esta a nova forma de interatividade das nossas comunidades, em que nos reunimos virtualmente para um propósito, cada no seu canto?

Nossas aulas passaram a ser online também. Aos alunos de São Paulo, passamos a reunir alunos de Brasília, de Manaus, de Recife, até de Portugal. Em pequenas salas virtuais, estes alunos discutiram textos judaicos antigos e o usaram de ponto de partida para falar de suas vidas. Se conheceram e se estabeleceram como grupo (contando também, é claro com o apoio de um grupo de whatsapp) e passaram a se encontrar também fora das telas (quem está na mesma cidade…). Será que na nossa nova comunidade a tecnologia servirá de catalisador para encontros presenciais?

O sentido, o formato, o significado das nossas comunidades nunca foi tão fluido. Ao planejarmos a volta ao mundo presencial, consideramos de que aspectos de vida comunitária sentimos falta e que gostaríamos de recuperar e o que ganhamos com a incorporação de novas estratégias de construção comunitária, que gostaríamos de manter. Na elaboração destes planos, a pergunta básica que fica é qual será a cara da comunidade no século XXI pós-Covid. Há quem fale em metaversos e outras modalidades de interação virtual para argumentar que precisamos nos acostumar a relacionamentos que se estabelecem principalmente através das telas, sem a necessidade de estarmos todos no mesmo espaço. Particularmente, apesar de reconhecer que a tecnologia veio para ficar e não faz sentido pensar em descartá-la, sinto falta do contato interpessoal, da conversa ao redor da mesa de kidush ou do cafezinho, do abraço e do aperto de mão na chegada e na despedida.

Nesta parashá, Moshé transmite ao povo de Israel, reunido em comunidade, o pedido de doações para a construção do Mishcán, o projeto comunitário da época. A resposta de todo o povo é tão intensa que os artesãos lhe pedem para orientar o povo a parar de trazer novos donativos. Qualquer que seja o formato da nova comunidade que estamos construindo, que possamos sempre estar dispostos a entregar um pouco de nós mesmos para este projeto coletivo e que a CIP continue sendo um ponto de encontro de pessoas, de ideias e de valores que mantém o judaísmo relevante para muito mais voltas no circuito da vida.

Shabat Shalom.


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Valorizando a incerteza (CIP)


Em algum momento da minha adolescência nos anos 80, o Hotel Transamérica no Morumbi começou a organizar festivais gastronômicos para os quais ele convidava chefs de restaurantes internacionais famosos. Em um deles, em 1986, organizou um jantar do restaurante em Roma no qual nasceu o famosos fetuccini Alfredo. Meu irmão, fã do prato e curioso por experimentá-lo na versão original, convenceu meus pais a levá-lo. Minha mãe, então, me fez a seguinte proposta: como o jantar era caro e eu não ligava tanto para o tal fetuccini, ela me daria outro presente do mesmo valor. Com quinze anos e a absoluta certeza da carreira que gostaria de seguir na vida, aceitei a oferta e pedi um livro de computação gráfica.

A computação gráfica, que hoje faz parte do nosso cotidiano, ainda não era tão popular naquele tempo. A Bela e a Fera, no qual a cena da dança foi parcialmente desenvolvida com computação gráfica, só saiu em 1991. Toy Story, o primeiro longa-metragem inteiramente desenvolvido por computação gráfica, é de 1996. Na época, minha paixão eram as curtas e interessantes vinhetas da TV Globo, obras do gênio criador de Hans Donner.

O que me interessava no livro que eu ganhei no lugar do jantar eram as lindas imagens, mas por trás daqueles modelos super realistas criados em computador estavam fórmulas matemáticas complexas. Computação Gráfica é a área da Ciência da Computação que transforma números, fórmulas e algoritmos em imagens que, com o tempo, foram ficando praticamente idênticas ao mundo real.

Como seria possível que números pudessem descrever a realidade física? Max Tegmark, um físico suéco, autor do livro Our Mathematical Universe, argumenta que o mundo físico é um “gigantesco objeto matemático.” [1] Na mesma linha de argumentação, Galileo dizia que “a Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo.” [2]

Mark Schaefer, autor de “A Certeza de Incerteza”, afirma que uma das vantagens da matemática como linguagem é o fato de que ela está sujeita a muito menos ambiguidade do que outros campos do conhecimento. “Não há uma tradição alternativa de matemáticos que discute se 2+2=4, nem há matemáticos dissidentes que mantém que 2+2=5 e consideram o resto hereges desesperadamente equivocados.” [3] Por isso, matemática poderia ser um sistema no qual a certeza poderia existir. O rabino David Curiel, por outro lado, argumenta que a certeza de que cada problema matemático tem uma resposta desaparece quando consideramos a Matemática Avançada [4]. Na mesma linha de demonstrar como a realidade dos estudos mais avançados de matemática diferem da nossa experiência de um campo do conhecimento no qual a certeza é possível, “O (…) físico Erwin Schrodinger disse que um modelo de representação da realidade quântica completamente satisfatório ‘não era apenas praticamente inacessível, mas até mesmo impensável.’ E ele adicionou: ‘Para ser preciso, podemos, claro, pensá-lo, mas está errado.” [5]

Pensando na prédica desta semana, eu me detive bastante nas nossas certezas e dúvidas, no espaço que damos para ambiguidades e quando exigimos respostas únicas.

É na parashá desta semana que, depois da libertação de Mitsrayim, da abertura do mar, do encontro com o Divino no Monte Sinai. Moshé demora 40 dias para voltar com as Tábuas e o povo constrói um bezerro de ouro e começa a adorá-lo. Apesar de terem vivido interações com o Divino com as quais nossa geração pode apenas sonhar, os hebreus precisavam de algo mais concreto, precisavam de certezas mais absolutas, e as encontraram na forma de uma estátua de ouro.

Em vários trechos da nossa tradição, a construção do bezerro de ouro é associada a busca de certezas absolutas e inquestionáveis. Esta pessoa é boa e aquela é má; uma cultura valoriza a vida enquanto a outra só cultua a morte; esta ideologia é certamente muito superior àquela outra. Em troca destas verdades, abrimos mão do nosso senso crítico e da nossa capacidade de questionar com sinceridade. O mestre chassídico Mordechai Yosef Leiner, mais conhecido como o Ishbitzer e pela sua obra mais famosa, o Mei haShiloach, escreveu que “a ansiedade das pessoas é que elas têm tanto medo de entrar no reino da dúvida, e por isso, há quem afirme que teria sido mais confortável se o humano não tivesse sido criado”. [6] De acordo com o rabino Leiner, Deus plantou אילנא דספיקא, ilna desfeica, "a árvore da dúvida", neste mundo, e esta é a fonte da nossa ansiedade.

De alguma forma, Moshé descia do Monte Sinai carregando uma outra forma de certeza: as Tábuas do Pacto, uma outra forma de dar concretude à relação abstrata entre Deus e o povo de Israel. Ao se deparar com a adoração ao Bezerro de Ouro, ele atirou as Tábuas ao pé da montanha, destruindo-as. Aquelas eram as Tábuas da certeza, esculpidas por Deus e inscritas por Deus. Naquele ato, Moshé pôs fim a qualquer expectativa que pudéssemos ter de que nossa tradição seria construída sobre respostas absolutas.

Quem me conhece sabe que eu adoro o papel de advogado do diabo, de nos questionarmos sobre quase tudo, de revirarmos nossas certezas até não termos bezerros de ouro para nos apegarmos. Por isso, a história de adorarmos nossas certezas me traz um incômodo particular.

No entanto, vivemos em tempos estranhos…. tem gente por aí argumentando que as vacinas incluem chips para nos controlar; há quem fale que a Terra é chata; há quem negue a ciência do aquecimento global. Semear a dúvida para colher o conflito se tornou um negócio através do qual algumas das maiores empresas do planeta ganham muito dinheiro. Ao invés de ser usada para acolher, a dúvida tem sido usada para excluir; ao invés de ser usada para salvar, ela tem servido a quem quer te colocar em risco. 

Eu adoraria oferecer aqui uma fórmula matemática que nos permitisse identificar as dúvidas construtivas, que nos levam a aprimorar nossas respostas das dúvidas destrutivas, que apenas criam discórdia sem aprimorar nada. Infelizmente, abri mão há muito tempo da certeza que eu um dia tive de que era na computação gráfica que encontraria meu futuro profissional e, com ela, a crença em respostas automatizadas para problemas complexos. Não existe resposta mágica e cada um precisa usar seu discernimento e senso crítico.

No finalzinho da parashá, Deus instrui Moshé a esculpir um novo par de Tábuas. Desta vez, elas não seriam o produto exclusivo do Divino, mas o resultado da parceria entre Deus e a humanidade. Por desenho, a dúvida foi incluída no segundo jogo de Tábuas [7]. As tábuas seriam o resultado do esforço humano e a inscrição seria Divina.

Além disso, Rashi nos conta que os fragmentos das Tábuas quebradas foram colocados na Arca Sagrada junto com o novo jogo de Tábuas. Assim, nos lembraríamos constantemente do risco de certezas absolutas, representado tanto pelos fragmentos quanto pelo Bezerro de Ouro.

Como se ainda precisássemos de mais lembretes, a parashá desta semana nos presenteia com mais um episódio que questiona as regras absolutas.  Moshé pede para ver a face de Deus, que lhe responde: “Farei com que toda a Minha bondade passe diante de você e proclamarei diante de você o nome ה׳ e o favor que concederei e a compaixão que demonstrarei, mas você não poderá ver Minha face pois um ser humano não pode ver Minha face e viver.” Ora…. 9 versos antes desta afirmação, a Torá afirma “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, "vediber Adonai el Moshé panim el panim, caasher idabêr ish el-reeêhu", “Moshé falava com ה׳ face-a-face, como uma pessoa fala com a outra.” [8]

Há momentos em que temos praticamente certeza de termos estado em contato com o que há de mais verdadeiro no mundo, de termos encontrado face-a-face a verdade mais verdadeira que existe. E, apesar de relatar os momentos em que isso acontecia na relação entre Moshé e Deus, a Torá também reconhece que isso é impossível. O mais alto a que podemos almejar é ver o Divino, a verdade, a certeza, pelas costas, com um certo tempero de dúvida, como Deus ofereceu para Moshé.

Que o objetivo de toda dúvida seja sempre avançar, acolher, melhorar, aperfeiçoar. Que neste ano, no qual tendemos a fecharmo-nos cada um na sua verdade, consigamos permanecer abertos para escutar e para enxergar, para considerar, para duvidar, para conversar. Que dessa forma, em comunidade e nos apoiando mutuamente, consigamos lidar com a ansiedade de vivermos em um mundo de dúvidas.

Shabat Shalom,



[1] Max Tegmark, Our Mathematical Universe, p. 246, de acordo com citação em The Certainty of Uncertainty p. 108
[2] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[3] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[5] Martland, Religion as Art, p. 166 citado em The Certainty of Uncertainty, p. 112
[6] Mei HaShiloach, Mei HaShiloach Anthology, Talmud, Eruvin 13b:1
[7] Rashi comentando Deut. 10:2
[8] Ex. 33:11

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Criando na comunidade o espaço do Divino (CIP)


O nome da parashá desta semana é Trumá, que literalmente quer dizer “doação”, e eu fiz a piada algumas vezes que esta prédica devia ser patrocinada pela Associação Judaica dos Captadores de Recursos porque o tema de doações é central para essa passagem bíblica. Na pesquisa para pensar no que eu diria para vocês encontrei uma piada um pouquinho melhor sobre o tema….
Um rabino, tocado pela pobreza em sua cidade, resolve dedicar a prédica à necessidade de que a comunidade aumentasse as doações para os mais necessitados. No dia seguinte, seus alunos lhe abordaram, curiosos em saber se a prédica já tinha dado algum efeito. “Consegui um resultado de 50%”, disse o rabino. “quem precisa, já está interessado em receber; resta apenas convencer quem pode a aumentar suas doações.” [1]
Piadas à parte, a verdade é que vale a pena dedicarmos alguns minutos para pensarmos sobre como decidimos que causas apoiamos e como desenvolvemos este apoio.

Muitas vezes, repetimos um certo mantra que diferencia entre a abordagem geral às doações — representada pela palavra “caridade” — e a abordagem judaica — representada pela palavra “tsedacá” [2]. Neste discurso, dizemos que a raiz da palavra “caridade” vem do latim “caritas”, que está associado a uma forma de amor. Desta forma, dar caridade é expressar amor, um ato voluntário de generosidade por alguém a quem se quer bem. “Tsedacá” por outro lado, vem do hebraico “tsedek”, que quer dizer justiça. Assim, dar tsedacá é uma obrigação de agir no mundo para reestabelecer o equilíbrio e a justiça nas nossas sociedades.

Eu preciso confessar que não gosto deste discurso, por pelos menos dois motivos: Tsedacá não é só uma obrigação e preocupação com um estado geral de justiça no mundo; é também uma forma de demonstrar que nos importamos, que temos empatia com quem mais precisa. Além disso, vejo muita gente fora da comunidade judaica fazendo doações para reestabelecer a justiça e muita gente dentro da comunidade fazendo doações como demonstração de amor. Como é o caso tantas vezes, esta tentativa de qualificar o “nosso” e o “deles” em termos absolutos deixa muito a desejar.

Isso dito, é verdade que a Torá enfatiza a questão da Justiça Social com grande afico, nos orientando, entre outros preceitos, a ajudar nossos irmãos em dificuldades, sendo eles cidadãos ou estrangeiros [3]; a não endurecermos nossos coraçõea e ajudarmos quem mais precisa [4]; a não pressionarmos pelo pagamento de dívidas [5]; a protegermos o órfão, a viúva e o estrangeiro [6]. Em linhas gerais, estas orientações estão alinhadas de צדק, צדק תרדוף, "nós devemos buscar a mais elevada forma de justiça" [7].

A nossa parashá, no entanto, me deixou pensando que novas abordagens podem ser úteis ao pensarmos de forma estratégica sobre filantropia (outra palavra para falarmos sobre essa questão, que tem origem grega e quer dizer “amor pela humanidade”). O texto da parashá começa assim:

וַיְדַבֵּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה לֵּאמֹר׃ דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי יִשְׂרָאֵל וְיִקְחוּ־לִי תְּרוּמָה
 מֵאֵת כׇּל־אִישׁ אֲשֶׁר יִדְּבֶנּוּ לִבּוֹ תִּקְחוּ אֶת־תְּרוּמָתִי׃  
ה׳ disse a Moshé: fale aos israelitas, que eles peguem para Mim doações;
busquem Minha doação de toda pessoa que seu coração se mostrar generoso. [8]

e depois de listar vários tipos de doação, metais e pedras preciosas, tecidos e óleos, Deus continua a instrução:

וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם׃  
E façam para Mim um santuário e eu viverei dentro deles. [9]

Diferentemente da ideia de que doações judaicas sempre enfatizam a ideia de obrigação e Justiça, esta passagem fala de atos voluntários e de generosidade do coração. A resposta a este pedido de Deus, sobre a qual leremos daqui a algumas semanas em parashat Vaiakhel é que o povo traz tantas doações que os artesão pedem a Moshé que suspenda o pedido, já tinham recebido mais que o necessário! [10]

A preocupação do pedido de doações na nossa parashá não foi tsedacá, não foi o reequilíbrio de uma situação de injustiça. De alguma forma, a questão aqui era a construção comunitária: quando o Mishcán, o Templo móvel que os hebreus construírem e utilizaram nos seus 40 anos vagando pelo deserto, ficou pronto, o povo pode apontar para várias partes do projeto e enxergar de que forma tinha contribuído para sua realização. Alguns tinham doado brincos ou outras joias, outros tinham doado tecidos, fios coloridos, couro de animais. Um midrash conta de como as pessoas organizaram mutirões de trabalho para responder ao pedido de doações.

Frente a este esforço comunitário, Deus anunciou “façam para mim um santuário e eu viverei entre eles”. Muitos comentaristas destacaram o fato de que o esperado seria que os hebreus construíssem um santuário e que Deus anunciasse que viveria NELE, mas que o anúncio é que Deus viveria entre o povo. O rabino Jonathan Sacks destaca que, enquanto para as primeiras gerações do povo judeu era fácil sentir a presença de Deus o tempo todo, para as gerações subsequentes, Deus praticou tsimtsum, contraiu Sua presença, diminuiu Sua luminosidade e suavizou Seu tom de voz. A presença de Deus no mundo deixou de ser tão óbvia [11]. Para mim, a presença comunitária muitas vezes ocupa este vácuo e cria o espaço no qual a presença Divina pode residir. De acordo com o Talmud, a Shechiná, a presença Divina, está presente sempre que dez pessoas, pelo menos, se reúnem. [12]

Tratando desta mesma passagem, o mestre chassídico Yehudah Aryeh Leib Alter, o Sfat Emet, nota que as diversas doações para a construção do Tabernáculo permitiram que, dentro da sua diversidade, cada membro do povo de Israel fizesse parte deste projeto e que fossem todos unidos através deste propósito comum. Refletindo sobre o comentário do Sefat Emet, o meu professor, o rabino Art Green escreveu em 1998:
Apelos à unidade judaica, ao que parece, eram tão comuns no tempo do Sfat Emet quanto no nosso. Lembrando uma Varsóvia dividida entre chassidim e socialistas, sionistas e assimilacionistas, esse ensinamento era tão necessário no início de 1900, quando foi dito, como é hoje. Mas sua mensagem é mais definida do que isso: o caminho para alcançar a unidade é através de cada um mantendo seu próprio ponto de vista distinto enquanto compartilha com todos os outros em um contexto que aceita plenamente a infinita variedade de mentes e opiniões, todas elas um Todo Divino único. Aqui nenhum ponto de vista deve ser descartado ou rejeitado, pois isso apenas diminuiria o todo, desfigurando o nome de Deus. Tal modelo verdadeiramente pluralista de vida judaica ainda precisa ser testado. [13]
Estes parecem ser, ainda em 2022, imensos desafios para a construção comunitária: como aceitar as contribuições de todos sem obrigar que se submetam à opinião majoritária? Como garantir que a comunidade toda se sinta retratada na construção comunitária, qualquer que seja o tamanho da contribuição que consigam aportar? Como sensibilizar a comunidade toda para a importância deste projeto e garantir que não faltem recursos para o seu desenvolvimento?

Aqui na CIP, seguimos buscando incansavelmente respostas para estes desafios e convidamos cada um de vocês a serem nossos parceiros nesta jornada. A nossos parceiros, pessoas que contribuem com seus recursos financeiros, com seu tempo, com sua sua expertise, nosso imenso agradecimento. A toda a comunidade, fica o convite para se juntarem também vocês a este esforço de compor o lindo mosaico da vida judaica, diversa, rica e onde, certamente, encontramos a Shechiná vivendo.

Shabat Shalom,



[3] Lev. 25:35
[4] Deut. 15:7
[5] Ex. 22:25
[6] Ex. 22:20-23.
[7] Deut. 16:20.
[8] Ex. 25:1-2
[9] Ex. 25:8
[10] Ex. 35:1-7
[12] Bavli Sanhedrin 39a.
[13] Art Gren,  "The Language of Truth: The Torah Commentary of the Sefat Emet", p. 122.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Inovação e Tradição também nos nossos Símbolos

Imagine que alguém te lance um desafio: você precisa desenhar o logo para uma nova iniciativa, um projeto inovador e enraizado na tradição judaica. Pare alguns minutos para pensar quais seriam os elementos básicos que você usaria para desenhar esta marca.

Sem ver o que você preparou, as chances são grandes que tenha ido por um de dois caminhos: algo baseado em uma estrela de David ou em uma menorá. Se olharmos para as grandes entidades judaicas, estes sãos os caminhos que a maioria delas trilha: só para identificar algumas, a CIP, a Bnai Brith, a Hebraica e as três grandes escolas judaicas da minha adolescência (Peretz, Renascença e Bialik) foram pelo caminho da menorá; já a Fisesp, a Conib, o Hospital Albert Einstein e o Macabi buscaram releituras da estrela de David.

De onde vieram estes dois ícones tão associados à comunidade judaica contemporânea. As primeiras estrelas de David que encontramos associadas ao mundo judaico datam do séc. IV EC, em decorações de sinagogas na região da Galileia, em Israel. Na mesma época, no entanto, o símbolo também aparecia em igrejas cristãs naquela região. Na idade média, tanto místicos judeus quanto muçulmanos adotavam a estrela de seis pontas (que chamavam de “Selo de Salomão”) como talismã em suas práticas. Foi apenas nos últimos séculos que o símbolo, já com o nome de estrela de David, se estabeleceu como referência exclusivamente judaica, tendência que ganhou força quando foi escolhida como símbolo pelo movimento sionista no século XIX.

A menorá, por outro lado, tem origem muito mais antiga: vem da Torá e aparece no texto da parashá desta semana [1]. A instrução bíblica para sua construção remete a diversas referências botânicas: copos em formas de flor de amendoeira, cálices, pétalas e hastes que saem de um tronco central. Ao ler o texto, se não identificarmos imediatamente que o texto está falando de uma menorá, poderíamos imaginar que trata-se da descrição de uma árvore. De fato, vários estudiosos apontam que o desenho da menorá, com suas hastes saindo de um eixo central e com bulbos sob cada cada haste, é, de fato, baseado em um arbusto presente no Oriente Médio [2], um tipo de sálvia silvestre.

Há quem veja a origem para a menorá em árvores presentes na mitologia judaica (como a árvore do conhecimento do bem e do mal, na história do Jardim do Eden). No total, há 535 referências a árvores ou a madeira no Tanach, um montante que excede qualquer outro ser vivo, exceto pelos seres humanos. 

Outros acadêmicos apontam para o fato de que a cultura e religião israelitas substituíram práticas religiosas canaanitas, nas quais árvores eram, muitas vezes, objeto de adoração. Uma dessas árvores em particular, a Asherá, era considerada a mãe de todas as outras divindades e encontramos na Torá e na literatura rabínica forte polêmicas com relação a ela [4]. Para quem aponta na Asherá (ou em outras árvores que serviam de objeto de adoração pagã) a origem da Menorá, a Torá teria feito o que a tradição judaica fez tantas vezes: incorporou elementos de outras culturas, judaizando-as, ou seja: mantendo alguns elementos, mas removendo os aspectos que estavam em contradição com os valores judaicos. Da mesma forma. a estrela de David não nasceu necessariamente judaica mas se tornou um símbolo “nosso” pelos usos que lhe atribuímos. Quem imagina que as comunidades judaicas ao longo da história viveram isoladas das sociedades mais amplas, sem contato com suas culturas, pode ficar chocado com este tipo de argumentação, mas ele aponta para o caminho que, também olhando para o futuro, possibilita a contínua criatividade judaica em diálogo com outros segmentos sociais e culturais.

A verdade é que minha pesquisa de logos judaicos mais recentes revelou novas tendências que, nem sempre, se baseiam só na Menorá ou na Estrela de David. Entidades judaicas mais recentes têm se permitido maior criatividade em sua linguagem visual (veja, por exemplo, os logos da Moishe House, dos Jovens Sem Fronteiras, do Cursinho Romã ou da Academia Judaica) – um sinal de seu desejo de poder definir em seus próprios termos quais aspectos de identidade judaica desejam incorporar em sua atuação. Mais seguros em nossas identidades e integração social, temos nos permitido também maior arrojo gráfico e visual.

Que neste Shabat possamos encontrar novas formas de sermos inovadores e de termos a tradição presentes em nossas vidas,

Shabat Shalom!


[1] Ex. 25:31-40

[2] https://bit.ly/3rnwZSM

[3] https://bit.ly/3rqyeR2 

[4] Veja, por exemplo, Deut. 16:21 e Talmud Bavli Avodá Zará 48a