sexta-feira, 3 de dezembro de 2021
Dvar Torá: Com o que você sonha? (CIP)
quinta-feira, 25 de novembro de 2021
Conta-me com quem casas?!?!
Daniel Boyarin, professor de Cultura Tamúdica na Universidade de Berkeley, fala bastante da intertextualidade dentro do Tanach, termo através do qual aponta para três características do texto bíblico: (1) há citações frequentes, explícitas ou não, de passagens escritas em períodos anteriores, (2) existe a possibilidade de enxergarmos o texto em si como uma situação em que acontece o diálogo entre passagens distintas, e (3) códigos culturais (conscientes ou não) podem encorajar ou reprimir a produção de novos textos. [1]
Em palavras mais simples, passagens do Tanach podem ser vistas em diálogo com outras passagens e devemos ter isso em consideração quando as consideramos. Nas parashiot das últimas semanas, vimos uma ênfase na rejeição de casamentos entre homens hebreus e mulheres canaanitas. Foi assim que Avraham pediu a seu servo que fosse buscar uma esposa para Itschác na terra de seus antepassados e que Rivcá e Itschác pediram a Iaacóv que fosse à casa de seu tio buscar uma esposa.
Na parashá desta semana, por outro lado, temos o primeiro caso de um hebreu se casando com uma mulher de família local: Iehudá se casa com a filha de Shuá, sem que o nome dela seja mencionado na Torá. Por um caminho tortuoso (que vale muito a leitura, mas que não acrescentaria nada aqui), Iehudá acaba também tendo filhos gêmeos com Tamar: Peretz e Zarach. Além de ter dado nome ao povo judeu, Iehudá, através de Peretz, se tornou ancestral do Rei David, o rei paradigmático das histórias do Tanach.
Seguindo as orientações do professor Boyarin, podemos ler estas passagens em diálogo umas com as outras -- algumas argumentando fortemente que o casamento com não judeus levaria à extinção do judaísmo e outros dizendo que, pelo contrário, é até bom incorporar pessoas e ideias novas à nossa tradição. Há algumas décadas, em muitas famílias quando um filho ou uma filha tinham um relacionamento amoroso fora da comunidade judaica, era motivo de grande consternação (como foi para Rivcá a mera possibilidade de que Iaacóv se casasse com uma mulher de Cnaán [2]), com medo de que aquele ramo familiar se afastasse permanentemente da tradição e da cultura judaicas. Hoje, no entanto, a realidade é, em muitos casos, bastante diferente. Encontro muitas famílias nas quais a parte não judia é até mais interessada na educação judaica dos filhos do que os parceiros judeus; em outros casos, mesmo que o pai e a mãe sejam os dois judeus, não expressam nenhuma intenção de ir além do mero superficial na vivência judaica da família. A vitalidade da vida judaica das famílias não é necessariamente determinada pela porcentagem judaica de cada casal - mas pela relevância que cada um encontra no judaísmo que conhece.
Será que conseguiríamos conceber uma conversa imaginária entre Rivcá e seu neto, Iehudá sobre estes temas? Ela falaria de suas angústias e medos, ele falaria da necessidade de ter liberdade para encontrar quem realmente ama. Ambos teriam razão, ambos falariam das suas verdades e, quem sabe, depois de chorarem um pouco, conseguiriam vislumbrar um futuro de criatividade judaica, em diálogo com a realidade onde viviam, no qual famílias se constituem por vários motivos e escolhem rumos que não são predestinados. Esta conversa pode nos ajudar também a pensar como nos relacionamos com as sociedade primordialmente não-judaicas nas quais vivemos.
Neste domingo acenderemos a primeira vela de Chanucá, uma festa que, desde a sua narrativa de origem, está associada ao diálogo com outras culturas (ou à falta dele): que costumes incorporamos, que roupagem judaica lhes damos, que histórias contamos a seu respeito. Que na sociedade multicultural em que vivemos, consigamos encontrar caminhos para nos relacionarmos com gente de todas as culturas e construir cada vez mais pontes, ao mesmo tempo em que nos preparamos para um futuro judaico intenso, vibrante, criativo e relevante.
Shabat Shalom!
[1] https://doi.org/10.2307/1455327
[2] Gen. 27:46
sexta-feira, 19 de novembro de 2021
Dvar Torá: Desnaturalizando a violência (CIP)
quinta-feira, 4 de novembro de 2021
Percebendo as bençãos ao nosso redor
Quando eu ainda era aluno de rabinato, fiz um estágio como capelão hospitalar. O programa era bastante intensivo e passávamos os dias visitando pacientes e discutindo com nossos colegas e supervisores como cada visita tinha sido. A cada duas semanas, um de nós ficava de plantão e passava a noite no hospital, dando apoio espiritual a qualquer emergência que pudesse ocorrer.
Em um dos meus plantões, fui acordado no meio da noite. Um sujeito esperava há algum tempo por um transplante de pulmão e, finalmente, tinham encontrado um doador! Cercado de amigos e parentes, ele me pedia uma benção antes da operação. Antes de lhe dar a benção, eu lhe pedi que reconhecesse as bençãos que literalmente flutuavam ao seu redor… ele tinha recebido uma segunda chance na vida e, cercado das pessoas que mais o amavam no mundo, se preparava para este recomeço. “Lindo, rabino”, ele me respondeu, “agora, por favor, você pode dar a minha benção?!”
Nossa relação com as bençãos varia muito — para alguns de nós, o que realmente vale é o que acontece no mundo físico, no qual as bençãos talvez não impactem muito. Para outros, no entanto, as bençãos representam pontes entre o espiritual e o material e, ainda que seus efeitos não sejam imediatos, abrem nossos olhos e corações para as bençãos reais que nos cercam.
Na parashá desta semana Iaacov e Rivcá tramam para enganar Itschác, para que ele dê a Iaacov a benção da primogenitura que planejava dar a Essáv. O rabino Gunther Plaut pergunta a respeito desta história: “mas como uma benção dada à pessoa errada pode ter qualquer efeito?” E ele adicionou à pergunta: “para começar, uma benção não é um contrato legal mas uma reza. Ainda assim, quando emitida por um pai, acredita-se que ela tenha um poder especial pois Deus está envolvido quando um pai dá sua benção a seu filho. Uma benção não é como uma mercadoria que pode ser tomada de volta quando se percebe que ela é falha. Uma vez dada, está nas mãos de Deus.” [1]
Ao final da enganação de Iaacov e Rivcá, Essáv procura seu pai, esperando receber a benção prometida, trazendo o cozido que Itschác havia pedido. Quando ele escuta que a benção já havia sido dada a Iaacóv, sua decepção é evidente. “Você não guardou uma benção para mim?!”, ele pergunta ao pai. “Abençoe-me também, pai”, ele pede aos prantos. Há momentos nos quais nos sentimos como Essáv, como se todas as bençãos tivessem sido dadas e nenhuma sobrado para nós… E ainda assim, durante toda a nossa vida, recebemos bençãos sem nos darmos conta. Infelizmente, muitas vezes prestamos mais atenção aos tropeços que damos na vida do que às coisas maravilhosas que nos acontecem diariamente.
As bençãos da tradição judaica, assim como aquelas que formulamos em momentos especiais, se não têm a capacidade de transformar a realidade objetiva, pelo menos conseguem transformar como enxergamos a vida e perceber as maravilhas das quais desfrutamos. Ao abrirem os nossos olhos, acabam de fato impactando a realidade de forma direta.
Que este seja um shabat especialmente abençoado, cheio de paz, de encontros e de olhos abertos para as bençãos que nos rodeiam.
Shabat shalom,
[1] W. Gunther Plaut, “What did Isaac Know?”, Learn Torah With…. 5755: a Collection of the Year’s Best Torah, Alef Design Group, 1996, p. 43.
sexta-feira, 29 de outubro de 2021
Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)
E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
quinta-feira, 21 de outubro de 2021
A busca permanente pela santidade e por valores, até na comida!
Nos meus estudos rabínicos, tive um professor um pouco sui-generis: era o rabino Stephen M. Passamaneck z”l, que os alunos chamavam carinhosamente de “Dr. P”. Capelão da Polícia de Los Angeles, ele muitas vezes começava a aula colocando seu revólver sobre a mesa da sala, se deliciando com a expressão de choque no rosto de muitos alunos (o meu entre eles). Foi com o “Dr P” que eu aprendi o princípio segundo o qual “a Torá quer dizer o que os Rabinos disseram que a Torá quer dizer.” Do ponto de vista racional, eu sei que ele estava completamente correto e não faltam exemplos de afirmações bíblicas que o Rabinos interpretaram de forma criativa, determinando a leitura que temos delas até hoje. Um dos melhores exemplos dessas prática é com relação ao verso “olho por olho, dente por dente” [1], prática que, os rabinos perceberam, se levada à risca, causaria toda a humanidade a ficar cega e banguela. Em uma longa discussão no Talmud [2], os Rabinos concluíram que o preceito bíblico obviamente fala de uma compensação financeira a ser recebida pela vítima de uma agressão física! De forma semelhante, o preceito de que “não cozinhe o bezerro no leite de sua mãe” [3] foi interpretado pelos Rabinos como a proibição de preparar, comer ou obter benefícios de alimentos preparados com carne e leite (ou seus derivados). Hoje, é até difícil encontrar alguém que, tendo aprendido esta interpretação, consiga ler os versos bíblicos no seu sentido literal.
A parashá desta semana apresenta um desafio para esta leitura com relação à mistura de carne e leite. Três pessoas se aproximam da tenda de Avraham, que corre para pedir que eles parem e sejam recebidos pelo nosso primeiro patriarca. Os visitantes param, lavam seus pés, tomam água, comem pão e encontram uma sombra onde descansar da viagem. Avraham não ficou satisfeito e lhes trouxe um prato à base de carne, além de manteiga e leite [4]. Não seria difícil explicar a clara oposição entre as comidas que Avraham oferece aos seus visitantes e as regras alimentares da Cashrut, visto que essas instruções ainda não haviam sido formuladas. Nossos Rabinos, no entanto, se sentiram profundamente incomodados vendo o primeiro patriarca misturando carne e leite e buscaram formas de interpretar o texto que eliminassem esta possibilidade: Maimônides (1135-1204) entendeu que toda esta passagem não passou de um sonho profético de Avraham e que, portanto, não houve qualquer tipo de consumo de comidas não casher; um midrash sugere que Avraham trouxe opções de carne e de leite para que seus convidados tivessem escolha, mas que ele ficou observando para garantir que ninguém misturasse a carne e o leite; outros comentaristas afirmam que os visitantes tomaram o leite primeiro e lavaram suas bocas antes de consumir a carne, assim como prescreve a lei judaica.
Me parece que mais razoável do que estes malabarismos interpretativos, seria reconhecer que as práticas judaicas, incluindo as leis de Cashrut, são construções históricas que refletem uma busca constante e progressiva pela kedushá, a santidade com a qual procuramos encher as nossas vidas. A forma como a busca pela kedushá na alimentação se dava na época de Avraham não era a mesma da época dos profetas, muito menos no período do Segundo Templo ou nos nossos dias.
Hoje, esta busca pela santidade é expressa em uma conduta guiada por valores, que não são necessariamente os mesmos para todas as pessoas. Para muita gente, ligar suas práticas alimentares à tradição judaica e ao que faziam seus antepassados lhes confere um profundo senso de conexão; para outras pessoas, faz mais sentido buscar práticas contemporâneas como o vegetarianismo, seguir uma dieta vegana ou consumir exclusivamente produtos orgânicos. Práticas distintas, mas todas buscando refletir valores (ou santidade!) através da alimentação.
Que cada um da sua forma, consigamos todos encher nossas vidas de santidade, nas práticas cotidianas e na forma como escolhemos nos alimentar!
Shabat Shalom
[1] Ex. 21:24, Lev. 24:20
[2] Talmud Bavli Bava Kama 83b-84a
[3] Ex. 23:19, Ex. 34:26, Deut. 14:21
[4] Gen. 18:1-8
sexta-feira, 15 de outubro de 2021
Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]