sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Dvar Torá: Desnaturalizando a violência (CIP)


Ontem no almoço, eu estava conversando com meu filho de 10 anos sobre a escola quando eu decidi dar um passo arriscado e perguntar se ele tinha alguma ideia de que profissão ele gostaria de ter. “Como assim, pai?” Ele me perguntou. “Há alguns anos, você queria ser jogador profissional de futebol”, eu respondi. “Esse ainda é o teu sonho? Quem sabe, você queira ser engenheiro, arquiteto, talvez até rabino.” “Rabino, não, né pai?!” ele disparou de cara e continuou “mas você não vai gostar se eu te contar o que eu quero ser quando eu crescer.” Nem precisava… eu já tinha entendido que meu filho quer ser gamer, um jogador profissional de video-games, uma das inúmeras profissões que não só não faziam parte dos meus sonhos, mas nem existiam quando eu tinha a idade dele.

Outra dessas profissões é youtuber, aquela pessoa que ganha dinheiro fazendo vídeos pro YouTube sobre os mais variados assuntos. Pois foi assistindo uma youtuber bem famosa, a JoutJout  do canal JoutJout Prazer, que eu aprendi um pouco mais sobre um livro no qual estava interessado [1]. Casa das Estrelas [2] foi compilado pelo educador colombiano Javier Naranjo a partir de definições que crianças davam para as palavras — definições que, algumas vezes eram fofas ou engraçadas, mas que muitas vezes nos faziam pensar sobre o real significado de palavras e de situações para as quais tínhamos parado de dar atenção. Andrés, um menino de 8 anos, por exemplo, definiu “adulto” como “uma pessoa que, em tudo daquilo que fale, primeiro vem ela.” 

Quando a JoutJout estava fazendo sua resenha do livro, contou que primeiro ficou pensando em como podia ser que uma criança tão nova tivesse escrito aquilo. Em seguida, ela teria pensado “por que uma pessoa de 4 anos não pode pensar em uma coisa interessante? Porque a gente pensa que as pessoas interessantes, que pensam coisas interessantes são adultos já.” Ela contou de uma conversa na qual sua interlocutora dizia que há um ponto de vista que trata “crianças como mini-pessoas, tipo pessoas que ainda não são pessoas, pessoas ainda em formação mas que ainda não chegaram lá no status de pessoas. Uma pessoinha, uma pessoa que ainda não se formou completamente. Mas uma pessoa de 4 anos já é uma pessoa… de 4 anos. E ela tem opiniões… maravilhosas.”

Esta tem sido a perspectiva de Ktanim, o programa de educação judaica desenvolvido pela área de educação infantil da Escola Lafer. Hoje celebramos com seis famílias por alunos que completam neste final de ano um ciclo e se preparam para novos passos no seu contato com o judaísmo. Em Ktanim, as crianças sempre são vistas como pessoas integrais, cujas opiniões e pontos de vista precisam ser escutados e respeitados e com quem aprendemos continuamente. Nossa abordagem é profundamente influenciada pela pedagogia de Janusz Korczak, o pediatra e pedagogo judeu que determinou alguns dos pilares da educação democrática, como a ideia de que crianças não são adultos em miniatura, mas seres-humanos integrais, que assim devem ser reconhecidos e tratados.

Mas a verdade é que muitas vezes conseguimos manter acesa a chama da inocência, da curiosidade e da descoberta que muitas vezes caracterizam a conduta das crianças e abandonamos para sermos reconhecidos como adultos responsáveis, que não fazem perguntas inapropriadas e sabem se comportar como a situação exige. Em Pirkei Avot, um dos primeiros documentos escritos do Judaísmo Rabínico, do começo do 3º século da Era Comum, por exemplo, os rabinos se permitiram fazer um exercício parecido com o do professor Naranjo e redefiniram 4 termos que todo mundo sabe o que quer dizer. Será?!

Para os Rabinos de 1800 anos atrás, “rico” não é quem tem muito, mas quem está feliz com o que tem; “sábio” não é quem tem muito a ensinar, mas quem consegue aprender com todo mundo; “respeitado” não é quem quem recebe honrarias, mas quem respeita a todos; e “herói” não é quem consegue conquistar os outros, mas quem conquista a si mesmo.

Quero parar um pouco na definição de “herói” e pensar com vocês como isso dialoga com os modelos de heróis com os quais vivemos hoje em dia. Por algum tempo, eu não deixei que meu filho, aquele que quer ser gamer quando crescer, assistisse filmes de super-heróis. Apesar de muitas vezes defenderem valores positivos, parece que o recurso a que os super-heróis mais recorrem é a própria violência que eles alegam combater. Eu queria que meu filho entendesse que esse não era o caminho no qual acreditamos, que a violência, quase nunca, leva a uma solução sustentável de qualquer problema. Eu deixei de achar que, sozinho, pudesse ter todo este papel na educação dos meus filhos quando fui buscá-lo na escola e o encontrei brincando de espada usando um balão. Entendi que, em uma cultura na qual a violência é glamourizada e cultuada, o impacto que um pai sozinho poderia ter é bastante limitado.

O que não falta na parashá desta semana é violência. A história começa com Iaacov voltando à terra de seus pais, de onde tinha saído 20 anos antes, morrendo de medo de com qual violência seu irmão, Essav, o receberia. Mas o primeiro embate verdadeiro é entre Iaacóv e o “ish”, a figura que não sabemos bem se é homem ou anjo, com que ele trava um duelo por toda a noite, até o raiar do Sol e da qual sai com a perna machucada. É por essa história que Iaacov e nosso povo receberam o nome de Israel, “aquele que duela com Deus.” Na sequência da parashá, temos a violência sexual contra Diná, a filha de Iaacov e Leá, e a resposta igualmente violenta de Shim’on e Levi, seus irmãos, que mataram todos os homens da cidade.

Lemos estas histórias todos os anos, as contamos sem nos darmos conta da violência que elas contêm e da forma como, ao naturalizá-la, acabamos naturalizando comportamentos violentos em nossas próprias vidas.

Ao comemorarmos cerimônias de bar-mitsvá aqui na sinagoga, não é incomum que os jovens tenham como o principal objetivo de sua presença a oportunidade de arremessar balas com a maior violência possível contra o jovem que comemora sua chegada à maioridade, muitas vezes sob encorajamento dos pais. Antes da pandemia, fui a uma festa com alguns amigos de infância, todos como eu na faixa dos 50 anos, na qual a violência física entre eles era uma forma de expressar camaradagem entre velhos amigos. Chegamos ao caso em que até o carinho expressamos com violência.

Além da violência física, vivenciamos cotidianamente episódios de violência verbal, moral, emocional, seja como perpetrador, como vítima ou como testemunha. Relações de trabalho que se convertem em tóxicas, relações na escola que geram bullying, exclusão, a perpetuação modos tóxicos de relacionamento. Como saímos deste ciclo?

Em Casa das Estrelas, o livro de Javier Naranjo, uma criança de 11 anos define a palavra “criança” como “danificado pela violência” mas outra, de 10 anos, define “amor” como aquilo que “cada coração reúne para dar a alguém.”

Quem sabe, precisemos escutar mais as nossas crianças, entender melhor como nossos atos cotidianos, os filmes que assistimos, as músicas que ouvimos e até as histórias da Torá que contamos sem crítica, ajudam a manter em vigor uma lógica que nos machuca e que machuca a quem mais amamos e que juramos proteger. Que aprendamos com elas como reunir e dar amor em todos os momentos das nossas vidas.
Que este seja um shabat cheio de carinho, de escuta, de atenção e de amor!

Shabat Shalom!


[2] Javier Naranjo, "Casa das estrelas: O universo pelo olhar das crianças", editora Planeta, 2019.


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