quinta-feira, 24 de junho de 2021

Mudando as palavras antes de chegarem às nossas bocas

Baruch she-amar ve-haiá ha-olam”, “Abençoado é Deus, que falou e o mundo foi criado.” Esta frase, parte da liturgia de todas as manhãs, reflete a importância que a fala tem na tradição judaica. A fala tem a possibilidade de criar mundos e de transformar realidades. É o ato de falar a benção sobre as velas que estabelece o início do shabat para aquela família e é a afirmação (e aceitação) dos votos nupciais que formalizam a união do casamento; as assinaturas na ketubá simplesmente testemunham o ato estabelecido pela fala. Muitas vezes, negamos uma nova realidade até que tenhamos a coragem de verbalizá-la em voz alta e, desta forma, a reconhecemos e a aceitamos.

Ao mesmo tempo, a fala tem a capacidade de destruir mundos. No Talmud, os rabinos equiparam humilhar alguém em público a matar aquela pessoa. [1] Em Iom Kipur, entre a lista de ações pelas quais reconhecemos nossas transgressões, aquelas que cometemos através da fala têm lugar central: difamamos, acusamos falsamente, demos mau conselho, zombamos, provocamos, fizemos execração. [2]

Nas nossas vidas cotidianas, a capacidade das palavras construírem e destruírem é facilmente verificada. Não são raras as situações de crianças e jovens que são vítimas de bullying, especialmente as mais vulneráveis e que, por isso, precisam mais da nossa proteção. Em alguns destes casos, o desespero pelo assédio verbal faz com que as pessoas considerem terminar com suas vidas pois passam a duvidar do seu próprio valor. No mundo virtual, as vítimas de cyberbullying não se limitam a crianças e jovens. Aproveitando do anonimato que o espaço virtual possibilita, há quem faça da agressividade verbal sua marca registrada. Basta entrar na seção de comentários de qualquer notícia política para testemunhar que o desejo destrutivo não é monopólio de qualquer ponto do espectro político: há pessoas de todas as posições dispostas a desumanizar quem pensa diferente e somos todos culpados de legitimar comportamentos inaceitáveis de quem tem posições políticas parecidas com as nossas. Infelizmente, o mesmo acontece em muitos grupos no celular, mesmo quando conhecemos as pessoas envolvidas.

De outro lado, tampouco é raro encontrar exemplos de apoio e amor incondicional através das palavras nas postagens das redes sociais. Gente que, percebendo uma tragédia, se voluntaria para ajudar, traz palavras de carinho e de amparo, mesmo quando não conhecem pessoalmente a pessoa cuja dor tentam amenizar.

Na parashá desta semana, Balak, rei dos moabitas, contrata um feiticeiro, Bilam para amaldiçoar os israelitas. Quando ele abra a boca para dizer sua maldição, no entanto, Deus troca as palavras e ele profere bênçãos sobre os filhos de Israel. Em uma das ocasiões em que isso acontece, ele profere a bênção com a qual iniciamos nossos serviços religiosos na CIP: Ma tovu Ohalêcha, Iaacov, michkenotêcha, Israel?, “Como são boas tuas tendas, Iaacóv, tuas moradas, Israel?”. [3]

O que precisamos fazer para que as palavras destrutivas que proferimos com frequência e sem pensar: maldições, críticas destrutivas, piadas inadequadas, possam também ser substituídas por bênçãos, comentários construtivos e frases de apoio a quem mais precisa? Na história de Bilam e Balak, a transição aconteceu na boca do feiticeiro mas talvez precisemos abrir nossas mentes e nossos corações para garantir que essa mudança de conduta não seja, literalmente, “da boca para fora”. Quem sabe, ao mudar nossas palavras acabemos construir também uma nova realidade, um mundo mais acolhedor, mais plural, mais respeitoso das diferenças.

Shabat Shalom!

[1] Bava Metzia 58b
[2] Machzor Chatimá Tová, p. 39
[3] Num 24:5


terça-feira, 22 de junho de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 21: Educação Judaica: o que aprendemos

(originalmente publicado em: http://5ponto8.fireside.fm/21)

"Existo, não para ser amado e admirado, mas para amar e agir. Não é dever daqueles ao meu redor me amar, em vez disso, é meu dever preocupar-me com o mundo." Esta é uma frase de Janusz Korczak, pedagogo judeu emblemático e inovador, precursor das iniciativas em prol dos direitos da criança e do reconhecimento de sua autonomia.

Nesta última jornada do podcast 5.8, discutimos várias facetas da educação judaica: os desafios de se educar sobre a Shoá, os dilemas das escolas judaicas, a importância dos movimentos juvenis e a importância dos estudos acadêmicos para o judaísmo foram explorados aqui. Reflexão, questionamento, ação, transformação de si e do mundo. O que queremos e necessitamos da educação judaica para hoje e para o futuro?

Neste episódio, Laura Trachtemberg Houser e Rogério Cukierman conversam sobre o que aprenderam nas conversas da série sobre educação judaica.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Dvar Torá: Um manifesto contra o antissemitismo judaico (CIP)


Tem um telefilme da década de 80, que fez grande sucesso com meus amigos na minha adolescência, chamado “A Onda” ou “The Wave”. O filme foi baseado em um exercício desenvolvido pelo professor Ron Jones em 1967 com a sua turma de alunos no curso de história mundial em uma escola do Ensino Médio em Palo Alto, na California. Os alunos tinham 15 anos e Jones queria lhes demonstrar como pessoas comuns tinham sido seduzidas pela a se comportarem como fascistas. Na aula, ele desenvolveu uma saudação, um slogan para o grupo e uma polícia secreta [1]. Quem assiste o filme para a TV ou a versão alemã para o cinema, de 2008, fica impressionado como jovens absolutamente normais se convertem com facilidade em adeptos de um sistema hierárquico, totalitário e exclusivo. 

A ideia do professor era que esta atividade, polêmica e impactante como foi, ajudasse os alunos a compreender a realidade pela qual a sociedade alemã passou nos anos 30 do século passado. O exercício, no entanto, foi interrompido após reclamações de familiares e de outros professores, preocupados que os alunos não estivessem entendendo seu contexto e levando a ideologia totalitária do grupo longe demais.

Todo educador precisa considerar o risco de que a atividade auxiliar, que desenvolvemos para que nossos alunos entendam um conceito complexo, acabe marcando mais as suas mentes do que o conceito em si. Não são raras as situações em que as pessoas vêm falar comigo sobre as histórias pessoais que eu compartilho nas prédicas para ilustrar algum assunto sobre o qual eu queira falar, mas não se lembrem qual era o tema central da prédica.

De alguma forma, eu acredito que o mesmo é valido para a Torá como um todo. Assim como o exercício da Terceira Onda, desenvolvido pelo Professor Jones em Palo Alto, a Torá muitas vezes no convida a entender um texto com afirmações provocativas e polêmicas, que nos desafiam a sair da inércia intelectual e nos engajarmos com estes temas de forma verdadeira e profunda. O problema, no entanto, é que muitas vezes as provocações da Torá são confundidas com a sua mensagem. Alguns adotam esta perspectiva como absolutamente verdadeira, o “ponto de vista judaico” sobre algum tema e passam a defendê-lo sem qualquer questionamento, mesmo que sejam grandes absurdos. Outros, também consideram este o “ponto de vista judaico” sobre o tema mas, incapazes de defender o indefensável, abandonam o judaísmo e suas posturas inaceitáveis.

Esta semana, me emocionei com uma candidata à conversão ao judaísmo. No seu beit, o tribunal rabínico que lhe deu as boas vindas à comunidade judaica, ela falou do seu desconforto com algumas passagens da tradição — e emendou: o que desta vez foi diferente da experiência que eu tive em outras vivências religiosas é que o meu desconforto foi validado, eu não tive que me calar e aceitar em silêncio que assim era.

Entender a tradição judaica como um debate milenar e permanente entre Deus e o povo judeu nos ajuda a receber passagens da tradição que nos incomodam como provocações, uma das etapas deste diálogo, não a última palavra, não o ponto final.

המחדש בכלֹ יום תמיד מעשה בראשית
Deus é Quem renova a todo dia e sempre os atos da Criação

A frase, que dizemos todo dia como parte da liturgia matutina, se aplica a בריאת העולם, a Criação do Universo, tanto quanto se aplica a מעמד הר סיני, o recebimento da Torá no Monte Sinai.

A parashá desta semana, Korach, é uma destas passagens que pode gerar incômodos ou abrir diálogos, dependendo da NOSSA postura com relação ao texto.

Korach era um membro da tribo de Levi, que liderou uma rebelião contra seus primos, Moshé e Aharón. “Toda a comunidade é santa. Todos eles! E ה׳ está no meio deles. Por que vocês se estabelecem acima da comunidade de ה׳?”, ele questiona [2].

A resposta de Moshé traz duas linhas de argumentação: (1) vocês já são privilegiados por serem parte da tribo de Levi; e (2) não é contra mim que vocês estão se insurgindo, mas contra Deus.

Na Torá, a resposta de Deus foi ficar ao lado de Moshé, abrir o deserto e engolir todos os revoltosos.

Os rabinos do Talmud e do Midrash ficam tão incomodados com a conduta Divina neste episódio, que colocam inúmeros argumentos na boca de Korach, buscando demonstrar que se tratava de um aproveitador, manipulador das massas, um líder hipócrita que pensava apenas nos seus próprios interesses. Nada disso, no entanto, aparece no texto — Korach e Moshé parecem igualmente genuínos em suas preocupações ou manipuladores em seus argumentos. Justificar a solução Divina, de que o deserto engolisse os revoltosos, parece inaceitável para judeus contemporâneos, defensores da liberdade de expressão e de valores democráticos nas sociedades em que vivemos.

Nos resta, então, a possibilidade de entrar em diálogo com o texto que nos provoca e questionarmos como devemos lidar com líderes carismáticos e manipuladores, que escondem suas intenções pessoais atrás de argumentos aparentemente universais e inclusivos. Nas últimas semanas, pensando nesta conversa que teríamos hoje, li assustado longas seções de “Como as Democracias Morrem”, o best seller de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt que trata da crise pela qual democracias liberais em todo o mundo estão passando. Assustado por reconhecer muitos dos riscos apontados pelos autores na nossa realidade cotidiana.

Mas acontecimentos das últimas 24 horas me refizeram repensar a conversa  que a história de Korach pode nos ajudar a iniciar… como tratamos a discórdia, em particular o desacordo que mexe com a dimensão mais profunda das nossas identidades? Será que criamos o espaço para um debate respeitoso, no qual possamos divergir fundamentalmente do outro lado do debate sem desumanizar as pessoas de quem discordamos?

Infelizmente, segmentos cada vez maiores das nossas sociedades e da nossa comunidade judaica têm perdido a capacidade de discordar de forma respeitosa. Os debates com frequência se transformam em agressões, algumas vezes físicas. Vimos isso recentemente em um debate dentro da comunidade sobre o uso de termos como nazistas ou fascistas para descrever comportamentos contemporâneos, vimos isso em debates sobre o conflito entre Israel e os palestinos e, infelizmente, vimos a incapacidade de respeitar a diferença se manifestar nesta madrugada em atos inaceitáveis da mais absoluta agressividade.

Todos os meses, Nashot haKotel, o grupo “Mulheres do Muro”, se reúne para as rezas de Rosh Chodesh, o início do mês judaico, no Muro das Lamentações em Jerusalém. O grupo, composto por mulheres vinculadas a todos os movimentos judaicos: renewal, seculares, conservadoras, ortodoxas, reconstrucionistas e reformistas, exige o direito de rezar na ala reservada às mulheres na esplanada em frente ao Muro. Elas demandam serem tratadas como judias que são, direito reconhecido pela Suprema Corte de Israel, que disse que elas têm o direito de receber um rolo de Torá para ler durante seus serviços; direito que nunca foi reconhecido ou respeitado pelo rabinato ultra-ortodoxo. Todos os meses, elas são agredidas, ofendidas, humilhadas por manifestantes ultra-ortodoxos que rejeitam suas perspectivas religiosas e discordam do direito delas de rezas lá. 

Na madrugada de hoje, Rosh Chodesh Tamuz, os manifestantes foram além: arrancaram de uma das participantes de Nashot haKotel uma mala que continha os sidurim, a abriram, rasgaram suas páginas e as jogaram ao chão. Para quem conhece o cuidado que a tradição judaica dedica a folhas impressas com seus textos sagrados, que são enterrados em cemitérios quando não podem mais ser usados, não há outra expressão que חילול השם, a desecração do nome de Deus. Os policiais que lá estavam assistiram a cena, mas nada fizeram.

Pior que a dessecração do nome de Deus é a dessecração da imagem de Deus que estes episódios recorrentes representam — seres humanos, criados à imagem de Deus, tratados sem a mínima dignidade, simplesmente porque sua interpretação da tradição judaica é diferente daquela adotada pelo outro grupo.

É possível que o argumento de Korach tenha sido hipócrita, mas isso não o torna menos verdadeiro. 

כִּי כָל הָעֵדָה כֻּלָּם קְדֹשִׁים וּבְתוֹכָם ה׳
Por que toda a comunidade é sagrada e ה׳ está entre eles

Eu não sei a qual comunidade Korach se referia, mas somos todos — todos, em todos os grupos — criados à sagrada imagem Divina e merecedores da mesma dignidade. É hora de aprendermos as lições desta passagem e parar de torcer para que a abertura do deserto, a violência ou o silêncio policial, dêem conta do que nossos argumentos não conseguem.

Shabat Shalom


terça-feira, 8 de junho de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 20: Educação Judaica: Estudos Acadêmicos Judaicos

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/20)

Wissenschaft des Judentums é o termo em alemão para o estudo científico do judaísmo, uma abordagem de investigação na qual o rigor acadêmico, não os dogmas religiosos, pauta o estudo de textos, história, tradições e contradições do judaísmo e da comunidade judaica.

Em uma tradição que valoriza tanto o estudo, não demorou para que a comunidade judaica abraçasse esta abordagem acadêmica, orgulhosa de que suas tradições e história fossem o foco desta linha de estudos. E não tardou também para que os conflitos aparecessem, para que os desprendimento demandado da abordagem científica se chocasse com interesses políticos comunitários.

Qual o estado atual dos estudos judaicos acadêmicos no Brasil e como vai a parceria entre os principais centros de estudo do assunto no país e as instituições comunitárias? Este é o tema deste episódio.

Nossas convidadas são Suzana Chwarts, Diretora do Centro de Estudos Judaicos da USP, e Mônica Grin, Diretora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

terça-feira, 25 de maio de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 19: Educação Judaica: Movimentos Juvenis

(originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/19)

A luta mais difícil de todas é a que temos dentro de nós. Não vamos nos acostumar e adaptar a essas condições. Aquele que se adapta deixa de discriminar entre o bem e o mal. Ele se torna um escravo de corpo e alma. Aconteça o que acontecer com você, lembre-se sempre: não se adapte! Revolte-se contra a realidade!

Essas frases foram ditas por Mordechai Anilewicz, um dos líderes do levante do Gueto de Varsóvia e uma das liderancas do movimento juvenil sionista socialista judaico Hashomer Hatzair.

Sua personalidade é emblemática como exemplo da importância dos movimentos juvenis para a cultura e existência judaica tal como ela é hoje. 

E sua frase demonstra a relevância desses movimentos para uma educação judaica que tenha como premissa a ação por um mundo mais justo. Uma educação que não baixe sua cabeça frente a injustiças e que seja transformadora.

Hoje vamos discutir a importância dos movimentos juvenis judaicos atuais para a construção do judaísmo do futuro com nossos convidados, Camila Crespin, ex-mazkirá do Conselho Juvenil Judaico-Sionista e André Wajnberg, guia de turismo cultural em Israel e ex-sheliach na CIP. 

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Dvar Torá: Buscando e Sendo a Face de Deus (CIP)


Eu tenho uma aluna querida, que participa de vários programas que eu organizo aqui na CIP e que vive dizendo que eu faço jabá, aproveitando quando eu estou de plantão no shabat pra falar dos meus outros projetos aqui na CIP. Pensando em quem não conhece o termo técnico “jabá”, fui procurar em um dicionário informal online a explicação detalhada do termo. Confesso que esperava algo um tantinho mais carinhoso… Dizia lá no dicionário que “jabá” é: “Propaganda oportunista que se faz sobre algum produto ou serviço comercial de forma espontânea, mas em momento inadequado (o jabazeiro é sempre aquele ‘chato’). Há também o jabá pessoal, em que o indivíduo vende a própria imagem. Pessoas desesperadas por emprego ou simplesmente exibicionistas crônicas costumam valer-se desse tipo de jabá.” [1]

Desesperado por emprego, eu sei que não estou — muito feliz aqui na CIP, obrigado. Mas talvez eu seja mesmo “aquele ‘chato’” ou “simplesmente [um] exibicionista crônic[o]”. De qualquer jeito, vou aproveitar a chance pra mais um jabá, este retroativo… no Ticún da Virada, que aconteceu na noite de sábado para domingo passados, um pouquinho depois da meia noite, eu tive o prazer de conversar com duas boas amigas: a rabina Luciana Pajecki Lederman e a Laura Trachtenberg Houser, que apresenta o podcast 5.8 comigo. Falamos de como retomar a centralidade do texto na educação judaica e cada um de nós escolheu alguns textos para exemplificarmos a abordagem e o tipo de conversa que poderia ter origem ali. Eu trouxe uma das passagens que eu mais gosto de toda a Torá, uma que fala da intimidade entre Deus e Moshé. 

A passagem acontece um pouco depois do episódio do bezerro de ouro e da quebra das Tábuas, quase como uma oportunidade de reconciliação entre Deus e Moshé. O texto diz: “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, “E ה׳ falava com Moshé face-a-face, como uma pessoa conversa (ou deve conversar) ou a outra.” Eu gosto dessa passagem por vários motivos, ela fala da intimidade possível entre o Divino e o humano mas, mais do que isso, ela não deixa claro qual é a direção do exemplo, quem aprende com quem. Será que Deus está nos dando um exemplo de como devemos nos relacionar uns com os outros, face-a-face, ou será que Deus está aprendendo dos melhores exemplos que podemos dar, de quando nos relacionamos verdadeiramente com outras pessoas, olhando nos olhos, dedicando o tempo e a atenção para verdadeiramente escutarmos uns aos outros, vendo o Divino refletido na face do outro.

Na parashá desta semana, lemos sobre a Benção dos Cohanim [2], uma das bençãos mais famosas da tradição judaica, com que muitos abençoam seus filhos antes do jantar de shabat e com a qual muitas vezes encerramos o serviço de Cabalat Shabat aqui na CIP. Em português, a benção diz:  “Que Deus te abençoe e te proteja; Que Deus ilumine Sua face na tua direção e te traga graça; Que Deus vire Sua face na tua direção e te traga a mais completa Paz.” A intimidade com Deus, representada pelo contato com a Face Divina, antes restrita a Moshé, um profeta como nunca houve outro igual [3], agora se torna disponível para todos nós, até para o rabino chato ou exibicionista crônico…

Na conversa com a rabina Lú e com a Laura, eu trouxe alguns exemplos que mostravam como a literatura rabínica se incomodava com a corporalidade implícita na expressão face-a-face. Da forma indireta que caracteriza a literatura rabínica, na qual as mensagens mais importantes precisam ser, muitas vezes, vasculhadas nas entrelinhas, os rabinos procuravam tecnicalidades para explicar como a Torá, que nos apresenta um Deus onipresente e, por isso, sem um corpo definido, fala em um encontro face-a-face. Da mesma forma, poderíamos nos perguntar o que significa, na benção dos cohanim, propor que Deus vire Sua face na nossa direção e nos traga paz.

Emanuel Levinas, um filósofo judeu francês — sobre quem, por sinal, o rabino Ruben falou no shiur dele do Ticún da Virada — que escreveu sobre a ética do encontro com a face do outro, um encontro que, ao mesmo tempo, nos compele a reconhecer o outro como distinto e estabelece uma responsabilidade pelo outro em cada um. Para Levinas, a responsabilidade decorrente do encontro face-a-face independe de qualquer objetivo pragmático ou de interesses comuns. A face do outro grita “não me mate!” e demanda a atenção que a Torá atribui ao estrangeiro, ao órfão e à viúva. Exemplos dos segmentos oprimidos em qualquer sociedade, ironicamente eles representam as pessoas cujas faces nunca enxergamos, por quem andamos na rua fingindo que não os vemos.

Será que para as pessoas que fingimos que não vemos — e cada um sabe quem está nesta categoria pra vocês —, tudo o que resta é pedir para que Deus ilumine Sua face e lhes traga graça? Parece uma versão amarga do “Deus lhe pague”, que Deus tenha piedade de você e te traga um pouco de consolo na sua vida sofrida.

Eu já contei aqui da viagem que fiz a um vilarejo indígena no México com 18 outros alunos de rabinato em 2010. Naquela viagem, as bençãos da manhã passaram a me incomodar. Vivendo com pessoas que não tinham o que vestir nem forças para seguir, me parecia maldoso dizer מלביש ערומים, agradecer a Deus por vestir os desnudos; ou הנותן ליעף כח, que dá forças ao cansado. Pior ainda era dizer: שעשה לי כל צרכי, que fez para mim tudo do que eu necessito. Eu percebia um certo cinismo nestas afirmações.

Com o tempo, no entanto, eu fui fazendo as pazes com a liturgia e percebendo que muitas das rezas no nosso sidur, especialmente aquelas que agradecem a Deus por uma situação que ainda não foi criada, é uma convocação mais do que um agradecimento. Em particular, é uma convocação para as fagulhas divinas em nós mesmos para que nos movamos e arrumemos roupas para quem não tem, remédio para quem precisa. É uma convocação para que reconheçamos que Deus busca parceiros e que todo dia, ao acordarmos, a tradição judaica nos lembra do nosso papel para construirmos o mundo justo, acolhedor, fraterno, saudável e humano no qual queremos viver.

Hoje, ao nos lembrarmos do Ievarechechá, da Benção dos Cohanim, eu quero convidar cada um de vocês a pensar o que significa ser parceiro de Deus no processo de iluminar Sua face e iluminá-la na direção de quem é sempre ignorado, lhe trazendo graça; virar a face de Deus na direção de quem é sistematicamente humilhado e oprimido e garantir que essa pessoa tenha a mais completa Paz. Essa função é Divina; essa função é nossa!

Shabat Shalom!

[1] https://www.dicionarioinformal.com.br/jabá/
[2] Num. 6:24-26
[3] Deut. 34:10


quinta-feira, 13 de maio de 2021

Emoções intensas e conflitantes

Al hadvash ve’al haokets, ‘al hamar vehamatoc; “sobre o mel e o ferrão, sobre o amargo e o doce” -- assim começa uma famosa música israelense, composta por Naomi Shemer na década de 1980. Assim como o poema de Iehudá Amichai escreveu sobre sua discordância com Kohelet [1], essas palavras refletem a realidade das nossas vidas: as alegrias e as dores normalmente vêm juntas e temos que equilibrar os sentimentos para nos mantermos sãos.

Este é um final de semana festivo na CIP. No Cabalat Shabat, teremos a alegria de dar as boas vindas à rabina Tati Schagas [2], que chega para somar e para transformar nossa comunidade. No sábado à noite, a 14ª edição do Ticún da Virada [3], a comemoração da CIP para Shavuot, tratará do tema “Eu e Nós” noite adentro, com a participação de mais de 50 intelectuais, ativistas, educadores, rabinos, chazanim, coreógrafos e artistas. Será um festival de Cultura Judaica, revivendo a experiência que nosso povo teve ao receber a Torá no Monte Sinai. Ao longo dos dias seguintes, serviços religiosos especiais de Shavuot. Tanto a chegada da rabina Tati como as comemorações de Shavuot são motivos excelentes para nos alegrarmos!

No entanto, como podemos estar completamente felizes quando Israel enfrenta um novo conflito armado, quando mísseis caem em Tel Aviv, Jerusalém e Ashquelon? Como nossa felicidade pode ser perfeita quando em nosso país, milhares de vidas ainda são perdidas para a pandemia? Com certeza, nossa alegria é temperada pela dor e pela tristeza.

A parashá desta semana, baMidbar, inicia o livro de mesmo nome. Em hebraico, baMidbar, significa “no deserto.” Foi no deserto que nos constituímos como povo, que recebemos a Torá, que nossos antepassados reclamaram incessantemente pela falta de comida e água e por nunca chegarem à Terra Prometida. Foi lá que Moshé encontrou Deus face-a-face e que o povo hebreu começou a desenvolver um relacionamento cotidiano com o “viver na presença de Deus”. Foi no deserto que uma nova geração, sem a lembrança da escravidão, nasceu e no mesmo deserto que a geração que havia sido libertada morreu sem chegar à Terra Prometida. O deserto, um lugar de amplidão e das possibilidades quase infinitas é um dos muitos lugares em que os opostos coexistem, as noites muito frias e os dias muito quentes, da calma absoluta a da tempestade insuportável, de perguntas sem fim que podem nos levar a um princípio de resposta… E foi nesse lugar de extremos e de contrastes que recebemos a Torá e que demos início à longa jornada chamada judaísmo.

A beleza da tradição judaica é que ela tem sido capaz de se transformar e continuar enchendo nossas vidas de significado no doce do mel e no amargor do ferrão, quando damos as boas vindas com esperança e quando nos despedimos com o coração pesado, em tempos de paz e durante as guerras. A grande maioria dos eventos do Ticún serão transmitidos ao vivo, mas alguns tiveram que ser pré-gravados por questões técnicas -- em um destes, a rabina Tati conversou com dois membros de kibutsim. Um deles era a rabina Lila Veissid que, comentando um verso da parashá da semana passada [4] que trata de comer os grãos armazenados para fazer espaço para a nova safra, estabeleceu uma analogia com o processo permanente de transformação dos kibutsim, no qual inovações convivem em harmonia com estruturas antigas. O mesmo, é óbvio, pode ser dito sobre o processo permanente de transformação do judaísmo como um todo, garantindo que nossa tradição continue relevante em todas as situações, não se mantendo congelada e presa a apenas um conjunto de circunstâncias. Como lembrou Iri Kassel, que também participou da conversa sobre kibutsim, em uma frase do Rav Kuk: “o velho deve se renovar e o novo deve se santificar”. Este é o processo que celebramos em Shavuot e ao qual a rabina Tati se soma.

Neste final de semana, nós comemoramos com alegria as transformações do judaísmo ao mesmo tempo em que buscamos na tradição judaica renovada ferramentas para lidar com as dores do momento. 

Shabat Shalom