terça-feira, 25 de maio de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 19: Educação Judaica: Movimentos Juvenis

(originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/19)

A luta mais difícil de todas é a que temos dentro de nós. Não vamos nos acostumar e adaptar a essas condições. Aquele que se adapta deixa de discriminar entre o bem e o mal. Ele se torna um escravo de corpo e alma. Aconteça o que acontecer com você, lembre-se sempre: não se adapte! Revolte-se contra a realidade!

Essas frases foram ditas por Mordechai Anilewicz, um dos líderes do levante do Gueto de Varsóvia e uma das liderancas do movimento juvenil sionista socialista judaico Hashomer Hatzair.

Sua personalidade é emblemática como exemplo da importância dos movimentos juvenis para a cultura e existência judaica tal como ela é hoje. 

E sua frase demonstra a relevância desses movimentos para uma educação judaica que tenha como premissa a ação por um mundo mais justo. Uma educação que não baixe sua cabeça frente a injustiças e que seja transformadora.

Hoje vamos discutir a importância dos movimentos juvenis judaicos atuais para a construção do judaísmo do futuro com nossos convidados, Camila Crespin, ex-mazkirá do Conselho Juvenil Judaico-Sionista e André Wajnberg, guia de turismo cultural em Israel e ex-sheliach na CIP. 

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Dvar Torá: Buscando e Sendo a Face de Deus (CIP)


Eu tenho uma aluna querida, que participa de vários programas que eu organizo aqui na CIP e que vive dizendo que eu faço jabá, aproveitando quando eu estou de plantão no shabat pra falar dos meus outros projetos aqui na CIP. Pensando em quem não conhece o termo técnico “jabá”, fui procurar em um dicionário informal online a explicação detalhada do termo. Confesso que esperava algo um tantinho mais carinhoso… Dizia lá no dicionário que “jabá” é: “Propaganda oportunista que se faz sobre algum produto ou serviço comercial de forma espontânea, mas em momento inadequado (o jabazeiro é sempre aquele ‘chato’). Há também o jabá pessoal, em que o indivíduo vende a própria imagem. Pessoas desesperadas por emprego ou simplesmente exibicionistas crônicas costumam valer-se desse tipo de jabá.” [1]

Desesperado por emprego, eu sei que não estou — muito feliz aqui na CIP, obrigado. Mas talvez eu seja mesmo “aquele ‘chato’” ou “simplesmente [um] exibicionista crônic[o]”. De qualquer jeito, vou aproveitar a chance pra mais um jabá, este retroativo… no Ticún da Virada, que aconteceu na noite de sábado para domingo passados, um pouquinho depois da meia noite, eu tive o prazer de conversar com duas boas amigas: a rabina Luciana Pajecki Lederman e a Laura Trachtenberg Houser, que apresenta o podcast 5.8 comigo. Falamos de como retomar a centralidade do texto na educação judaica e cada um de nós escolheu alguns textos para exemplificarmos a abordagem e o tipo de conversa que poderia ter origem ali. Eu trouxe uma das passagens que eu mais gosto de toda a Torá, uma que fala da intimidade entre Deus e Moshé. 

A passagem acontece um pouco depois do episódio do bezerro de ouro e da quebra das Tábuas, quase como uma oportunidade de reconciliação entre Deus e Moshé. O texto diz: “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, “E ה׳ falava com Moshé face-a-face, como uma pessoa conversa (ou deve conversar) ou a outra.” Eu gosto dessa passagem por vários motivos, ela fala da intimidade possível entre o Divino e o humano mas, mais do que isso, ela não deixa claro qual é a direção do exemplo, quem aprende com quem. Será que Deus está nos dando um exemplo de como devemos nos relacionar uns com os outros, face-a-face, ou será que Deus está aprendendo dos melhores exemplos que podemos dar, de quando nos relacionamos verdadeiramente com outras pessoas, olhando nos olhos, dedicando o tempo e a atenção para verdadeiramente escutarmos uns aos outros, vendo o Divino refletido na face do outro.

Na parashá desta semana, lemos sobre a Benção dos Cohanim [2], uma das bençãos mais famosas da tradição judaica, com que muitos abençoam seus filhos antes do jantar de shabat e com a qual muitas vezes encerramos o serviço de Cabalat Shabat aqui na CIP. Em português, a benção diz:  “Que Deus te abençoe e te proteja; Que Deus ilumine Sua face na tua direção e te traga graça; Que Deus vire Sua face na tua direção e te traga a mais completa Paz.” A intimidade com Deus, representada pelo contato com a Face Divina, antes restrita a Moshé, um profeta como nunca houve outro igual [3], agora se torna disponível para todos nós, até para o rabino chato ou exibicionista crônico…

Na conversa com a rabina Lú e com a Laura, eu trouxe alguns exemplos que mostravam como a literatura rabínica se incomodava com a corporalidade implícita na expressão face-a-face. Da forma indireta que caracteriza a literatura rabínica, na qual as mensagens mais importantes precisam ser, muitas vezes, vasculhadas nas entrelinhas, os rabinos procuravam tecnicalidades para explicar como a Torá, que nos apresenta um Deus onipresente e, por isso, sem um corpo definido, fala em um encontro face-a-face. Da mesma forma, poderíamos nos perguntar o que significa, na benção dos cohanim, propor que Deus vire Sua face na nossa direção e nos traga paz.

Emanuel Levinas, um filósofo judeu francês — sobre quem, por sinal, o rabino Ruben falou no shiur dele do Ticún da Virada — que escreveu sobre a ética do encontro com a face do outro, um encontro que, ao mesmo tempo, nos compele a reconhecer o outro como distinto e estabelece uma responsabilidade pelo outro em cada um. Para Levinas, a responsabilidade decorrente do encontro face-a-face independe de qualquer objetivo pragmático ou de interesses comuns. A face do outro grita “não me mate!” e demanda a atenção que a Torá atribui ao estrangeiro, ao órfão e à viúva. Exemplos dos segmentos oprimidos em qualquer sociedade, ironicamente eles representam as pessoas cujas faces nunca enxergamos, por quem andamos na rua fingindo que não os vemos.

Será que para as pessoas que fingimos que não vemos — e cada um sabe quem está nesta categoria pra vocês —, tudo o que resta é pedir para que Deus ilumine Sua face e lhes traga graça? Parece uma versão amarga do “Deus lhe pague”, que Deus tenha piedade de você e te traga um pouco de consolo na sua vida sofrida.

Eu já contei aqui da viagem que fiz a um vilarejo indígena no México com 18 outros alunos de rabinato em 2010. Naquela viagem, as bençãos da manhã passaram a me incomodar. Vivendo com pessoas que não tinham o que vestir nem forças para seguir, me parecia maldoso dizer מלביש ערומים, agradecer a Deus por vestir os desnudos; ou הנותן ליעף כח, que dá forças ao cansado. Pior ainda era dizer: שעשה לי כל צרכי, que fez para mim tudo do que eu necessito. Eu percebia um certo cinismo nestas afirmações.

Com o tempo, no entanto, eu fui fazendo as pazes com a liturgia e percebendo que muitas das rezas no nosso sidur, especialmente aquelas que agradecem a Deus por uma situação que ainda não foi criada, é uma convocação mais do que um agradecimento. Em particular, é uma convocação para as fagulhas divinas em nós mesmos para que nos movamos e arrumemos roupas para quem não tem, remédio para quem precisa. É uma convocação para que reconheçamos que Deus busca parceiros e que todo dia, ao acordarmos, a tradição judaica nos lembra do nosso papel para construirmos o mundo justo, acolhedor, fraterno, saudável e humano no qual queremos viver.

Hoje, ao nos lembrarmos do Ievarechechá, da Benção dos Cohanim, eu quero convidar cada um de vocês a pensar o que significa ser parceiro de Deus no processo de iluminar Sua face e iluminá-la na direção de quem é sempre ignorado, lhe trazendo graça; virar a face de Deus na direção de quem é sistematicamente humilhado e oprimido e garantir que essa pessoa tenha a mais completa Paz. Essa função é Divina; essa função é nossa!

Shabat Shalom!

[1] https://www.dicionarioinformal.com.br/jabá/
[2] Num. 6:24-26
[3] Deut. 34:10


quinta-feira, 13 de maio de 2021

Emoções intensas e conflitantes

Al hadvash ve’al haokets, ‘al hamar vehamatoc; “sobre o mel e o ferrão, sobre o amargo e o doce” -- assim começa uma famosa música israelense, composta por Naomi Shemer na década de 1980. Assim como o poema de Iehudá Amichai escreveu sobre sua discordância com Kohelet [1], essas palavras refletem a realidade das nossas vidas: as alegrias e as dores normalmente vêm juntas e temos que equilibrar os sentimentos para nos mantermos sãos.

Este é um final de semana festivo na CIP. No Cabalat Shabat, teremos a alegria de dar as boas vindas à rabina Tati Schagas [2], que chega para somar e para transformar nossa comunidade. No sábado à noite, a 14ª edição do Ticún da Virada [3], a comemoração da CIP para Shavuot, tratará do tema “Eu e Nós” noite adentro, com a participação de mais de 50 intelectuais, ativistas, educadores, rabinos, chazanim, coreógrafos e artistas. Será um festival de Cultura Judaica, revivendo a experiência que nosso povo teve ao receber a Torá no Monte Sinai. Ao longo dos dias seguintes, serviços religiosos especiais de Shavuot. Tanto a chegada da rabina Tati como as comemorações de Shavuot são motivos excelentes para nos alegrarmos!

No entanto, como podemos estar completamente felizes quando Israel enfrenta um novo conflito armado, quando mísseis caem em Tel Aviv, Jerusalém e Ashquelon? Como nossa felicidade pode ser perfeita quando em nosso país, milhares de vidas ainda são perdidas para a pandemia? Com certeza, nossa alegria é temperada pela dor e pela tristeza.

A parashá desta semana, baMidbar, inicia o livro de mesmo nome. Em hebraico, baMidbar, significa “no deserto.” Foi no deserto que nos constituímos como povo, que recebemos a Torá, que nossos antepassados reclamaram incessantemente pela falta de comida e água e por nunca chegarem à Terra Prometida. Foi lá que Moshé encontrou Deus face-a-face e que o povo hebreu começou a desenvolver um relacionamento cotidiano com o “viver na presença de Deus”. Foi no deserto que uma nova geração, sem a lembrança da escravidão, nasceu e no mesmo deserto que a geração que havia sido libertada morreu sem chegar à Terra Prometida. O deserto, um lugar de amplidão e das possibilidades quase infinitas é um dos muitos lugares em que os opostos coexistem, as noites muito frias e os dias muito quentes, da calma absoluta a da tempestade insuportável, de perguntas sem fim que podem nos levar a um princípio de resposta… E foi nesse lugar de extremos e de contrastes que recebemos a Torá e que demos início à longa jornada chamada judaísmo.

A beleza da tradição judaica é que ela tem sido capaz de se transformar e continuar enchendo nossas vidas de significado no doce do mel e no amargor do ferrão, quando damos as boas vindas com esperança e quando nos despedimos com o coração pesado, em tempos de paz e durante as guerras. A grande maioria dos eventos do Ticún serão transmitidos ao vivo, mas alguns tiveram que ser pré-gravados por questões técnicas -- em um destes, a rabina Tati conversou com dois membros de kibutsim. Um deles era a rabina Lila Veissid que, comentando um verso da parashá da semana passada [4] que trata de comer os grãos armazenados para fazer espaço para a nova safra, estabeleceu uma analogia com o processo permanente de transformação dos kibutsim, no qual inovações convivem em harmonia com estruturas antigas. O mesmo, é óbvio, pode ser dito sobre o processo permanente de transformação do judaísmo como um todo, garantindo que nossa tradição continue relevante em todas as situações, não se mantendo congelada e presa a apenas um conjunto de circunstâncias. Como lembrou Iri Kassel, que também participou da conversa sobre kibutsim, em uma frase do Rav Kuk: “o velho deve se renovar e o novo deve se santificar”. Este é o processo que celebramos em Shavuot e ao qual a rabina Tati se soma.

Neste final de semana, nós comemoramos com alegria as transformações do judaísmo ao mesmo tempo em que buscamos na tradição judaica renovada ferramentas para lidar com as dores do momento. 

Shabat Shalom

terça-feira, 11 de maio de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 18: Educação Judaica: Escolas Judaicas

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/18)

Há mais de cem anos, as escolas judaicas ocupam um lugar de destaque no cenário da educação judaica no Brasil. Longe do seu apogeu em número de alunos há décadas atrás, hoje as escolas judaicas se questionam sua razão de ser: seriam escolas como todas as outras com foco na comunidade judaica ou seriam escolas únicas, nas quais a cultura judaica tem papel central? Frente a famílias cada vez mais exigentes, com demandas conflitantes entre si, e fortes pressões orçamentárias, qual o papel das escolas judaicas no Judaísmo do Futuro? Este é o tema que exploraremos neste episódio.

Nossos convidados são o Jacques Grifel, presidente do Conselho Deliberativo do Colégio Renascença e Diretor do Vaad haChinuch da Fisesp, e a Lilian Starobinas, doutora e educação e ex-professora do Colégio Oswaldo Aranha.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dvar Torá: A volta pra caverna e a busca por um judaísmo contemporâneo (CIP)


Sabe aquela história do “faço o que eu digo mas não faça o que eu faço”?! Quem nunca?! Quem nunca cometeu uma pequena hipocrisia dessas, de dar um conselho de acordo com o que acredita que seja a atitude correta mas se permitiu desviar deste caminho na sua conduta pessoal? Eu sei que eu faço isso com alguma frequência, mas desde que não venha de um lugar de julgamento e maldade, também não acho que seja a pior coisa do mundo…

Um destes meus pecados, de dizer uma coisa e fazer outra, é o jurar não gostar das mídias sociais e viver encontrando assuntos para as prédicas de postagens de facebook. Desta vez, foi em um grupo de educadores judaicos, em que um rabino ortodoxo postou o seguinte comentário na semana passada: 

Amigos - revirei os olhos enquanto ouvi um aluno [meu] descrever Ticún Olam como uma mitzvá. Revirei os olhos porque estou muito ciente e muito preocupado de que a educação judaica tenha sido, essencialmente, enrolada na vaga plataforma liberal americana sob a bandeira mitzvah de "Ticún olam". Preocupado porque, sério… É isso? Será que nossa tradição de 4.000 anos pode realmente ser tão vigorosamente resumida pelas nossas ações em defesa do meio ambiente, na resposta a George Floyd? Isso é tudo?
Então desvirei meus olhos e vi claramente que, para nossa juventude, a crise climática, o racismo (…) e as questões de justiça são 1000% mais reais e mais urgentes do que questões sobre se uma mulher deve contar no minián ou nas nuances da akedá, o episódio da Torá que descreve o quase-sacrifício de Itscahk . E é claro que as pessoas vão se importar com o que é real para elas. E todo esse aperto de pérolas sobre como todas as 613 [mitsvot] foram substituídos por Ticún Olam são, na verdade, apenas os gemidos de um representante de um sistema e abordagem que estão ameaçados de irrelevância ou extinção. "Seu velho mundo está envelhecendo rapidamente. Portanto, saia do novo se não puder dar uma mão."

E eu quero saber: as coisas antigas são realmente relevantes? Por quê? Exatamente por quê? Como? E como as escolas podem tirar a poeira de seu antigo judaísmo e realmente focalizá-lo nas coisas que realmente importam para os alunos reais? Ou pelo menos torná-lo relevante?

Como um pequeno exemplo disso, existe uma maneira de ensinar a tefilá, a reza, não como um momento incômodo e irritante [em que alguém tenha que se certificar os meninos estão de kipá] e que ninguém está usando o celular [escondido], mas na verdade como uma força poderosa para mudar o mundo que [vemos] caindo aos pedaços? Pelo menos mudando a nós mesmos? E se não, podemos parar de fazer nossos alunos rezarem para, [no lugar,] talvez ir recolher algum lixo? Ou a reza é importante no processo de ajudar as crianças a ver seu mundo e ver seu papel nele, ou ela é um dinossauro do velho mundo, reforçando continuamente a narrativa de que o judaísmo é irrelevante e que não [podemos] nos preocupar com o clima e a justiça porque temos assuntos mais importantes? Como o mundo vindouro?

Nossa, gente. Socorro!!!!
Este não é um novo desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel escreveu algo semelhante há mais de 60 anos e que, desde que eu li pela primeira vez, tem me inspirado na busca por um judaísmo de significado:
“Quando a fé é completamente substituída pelo credo
a adoração pela doutrina, 
o amor pelo hábito; 
quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; 
quando a fé se torna uma herança em vez de uma fonte viva; 
quando a religião fala apenas em nome da autoridade e não em nome da compaixão 
então, sua mensagem se torna sem sentido. ” [1]
Podemos voltar ainda mais no tempo e perceber que a busca por um judaísmo de significado nas nossas vidas, que possa de fato ser uma tradição viva, que dialogue com os dilemas que vivemos em 2021 e não negue o encontro com o desconforto da nossa realidade na busca de uma espiritualidade pura, aparece também em uma das histórias mais famosas de LaG baOmer.

Em LaG baOmer, acredita-se faleceu o rabino Shimon bar Yochai, uma figura especialmente iluminada que, de acordo com um mito, foi o redator do Zohar, uma das obras centrais da Kabalá, uma expressão mística judaica.

Diz a lenda no Talmud [2] que Shimon bar Yochai foi condenado à morte pelas autoridades romanas por tê-las criticado. Ele e seu filho, Elazar, após buscarem refúgio no Beit Midrash por algum tempo, foram se esconder em uma caverna. Por milagre, uma árvore de alfarroba nasceu sobre a caverna e lhes dava comida; e uma fonte de água apareceu e lhes dava água. Todo dia, eles tiravam sua roupa e se enterravam até o pescoço na areia e, assim, eles passavam todo o dia estudando. Quando chegava a hora, eles saíam da areia, se vestiam, e rezavam para, logo em seguida, voltar a se enterrar, nús, na areia. Assim, eles garantiam que suas roupas não se gastassem… Assim eles viveram por 12 anos. O profeta Eliahu se colocou na entrada da caverna e disse “que informará Shimon bar Iochai que o imperador morreu e seu decreto foi revogado?!”. Shimon e Elazar saíram da caverna e viram pessoas semeando e arando a terra. Shimon bar Iochai disse: “como estas pessoas podem abandonar uma vida de eterno estudo da Torá e desperdiçá-la com questões terrenas?!” Todo lugar para o qual Shimon bar Iochai direcionava sua vista queimava imediatamente. Uma voz Divina apareceu e lhe disse: “Você saiu da caverna para destruir o Meu mundo?! Volte para a caverna!”

Como disse Heschel, quando o Judaísmo fecha seus olhos para as dores do presente para se dedicar exclusivamente a guardar as jóias do passado, perdemos nossa função no mundo. Quando o desempenhar funções religiosas fala mais alto que a necessidade de preservação da vida, perdemos nossa mensagem e o sentido destas funções. Quando, em troca de manter vivo o judaísmo, estamos dispostos a abrir mão da nossa humanidade, não reconheço mais esse judaísmo.

A observância judaica e o comprometimento com o mundo não precisam ser mutuamente excludentes. A textura que o calendário judaico dá à nossa experiência do tempo, a forma como as práticas religiosas judaicas permitem que abramos nossos olhos para questões que nem sabíamos que existiam, a abordagem crítica que o estudo de textos judaicos desenvolve em cada de nós, a força que a comunidade judaica tem quando se une em torno de um objetivo comum — todos estes fatores devem nos levar a estarmos mais conectados com o mundo que nos cerca.

Deus mandou Shimon bar Iochai de volta para a caverna estudar um pouco mais porque, seu desdém pelo cuidado com o mundo e com a humanidade revelados nas ações do agricultor demonstravam que, apesar dos 12 anos que ele tinha passado estudando na caverna, ele não tinha aprendido os pilares centrais do judaísmo.

Que cada um de nós consiga encontrar seu próprio equilíbrio — valorizando a tradição judaica e lhe dando um papel de destaque nas suas práticas cotidianas e que, através delas, estejamos cada vez mais comprometidos com a construção de um mundo mais justo, mais igual, mais saudável para todos.

Shabat Shalom

[1] Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man, p. 3.
[2] Talmud Bavli Shabat 33b


terça-feira, 27 de abril de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 17: Educação Judaica: Educação & Shoá

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/17)

Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas. (Texto encontrado após a Segunda Guerra Mundial, num campo de concentração nazista.)

Nesse mês relembramos, dia 7 de Abril, os judeus mortos no Holocausto, durante o Iom haShoá. Em 19 de abril nos lembramos do Levante do Gueto de Varsóvia, que teve início nesta data, em 1943. 

Tão importante quanto relembrar, é aprender. Para que nunca mais uma barbárie assim aconteça. Mas também para saber reconhecer discursos e políticas que possuem bases similares no presente. E, assim, combatê-las. O que aconteceu nos marcou como judeus que somos. Mas seu ensino pode ajudar a nos transformar nos judeus que queremos ser. Hoje essa será nossa discussão.

Nossos convidados são Celso Zilbovicius, Diretor Educacional do projeto Marcha da Vida dos Universitários, e Menashe Zugman, educador e guia de turismo há mais de 35 anos, dedicado ao tema da Shoá.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A morte é parte da vida

O nome da primeira parte da parashá dupla desta semana, Acharei Mot, nos remete de volta ao episódio da morte dos dois filhos de Aharón, Nadav e Avihu, sobre o qual lemos há algumas semanas [1]. Naquele episódio, os dois filhos ofereceram um “fogo estranho” a Deus e foram consumidos pelo fogo. Moshé orienta seu irmão e sobrinhos a não demonstrarem sinais de luto pela morte de Nadav e Avihu e Aharón parece aceitar a instrução sem questionamentos. 

De volta à leitura desta semana, em sua tradução literal, Acharei Mot (o título da parashá) significa “depois da morte de...” porque, nela, Deus ordena instruções que Moshé deve passar a Aharón na sequência da morte de Nadav e de Avihu. 

Vivemos em uma época de comportamentos ambíguos com relação à morte. De um lado, os avanços científicos dos últimos séculos ampliaram de forma significativa nossa expectativa de vida, desenvolvendo remédios para doenças tratáveis, melhorando as condições sanitárias de parte considerável da população (ainda que muito trabalho ainda siga a ser feito nessa área), criando vacinas que possibilitaram a prevenção e até a erradicação de algumas doenças. A mortalidade infantil no estado de São Paulo, por exemplo, caiu de 188,9 por 1.000 nascidos vivos em 1900 para 10,7 por 1.000 nascidos vivos em 2018, uma redução de 94%! [2] Com esses ganhos, não causa surpresa que a morte tenha se tornado um tabu entre nós. No passado, convivia-se mais com a morte, especialmente com a morte jovem, e, por isso, o assunto era tratado com maior naturalidade. Hoje, vivemos como se nossas vidas fossem durar para sempre e não nos preparamos para nos despedirmos de nossos entes queridos quando eles se vão. Vivemos como se sempre fôssemos ter uma chance a mais para perseguir um sonho ou para ter uma conversa importante; quando a morte chega, na grande maioria das vezes, nos pega despreparados…

O outro lado da ambiguidade, no entanto, é que a grande disponibilidade de estatísticas faz com que fiquemos atordoados entre tantos números das nossas vidas. Perdemos a sensibilidade para a singularidade de cada vida humana, para a dor imensa que a morte de uma única pessoa pode causar. A tradição judaica ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] mas é difícil verdadeiramente assimilar este conceito quando as mortes são contabilizadas aos milhares. Por exemplo, a média móvel dos mortos por Covid no Brasil quase quintuplicou desde o começo do ano [4] e, após nos chocarmos por algumas semanas com o aumento, logo nos acostumamos e voltamos a nos comportar como se a doença não trouxesse risco algum.

Tudo muda, é claro, quando perdemos alguém muito próximo. O silêncio, como o de Aharón, pode ser a resposta de alguns à morte de uma pessoa da família, mas há também quem chore, quem grite, quem fique com raiva, quem queira aproveitar a sua vida ao máximo antes que ela também termine ou quem perca totalmente a vontade de viver. Para alguns, a perda lhes ajuda a ganhar perspectiva sobre o que é realmente importante na vida, enquanto, para outros, tudo perde a perspectiva e o significado. A dor pela perda é absolutamente subjetiva e não segue padrões pré-definidos. Há quem chegue ao final da shivá tendo-a processado completamente, mas há também quem só se dê conta da dimensão da sua perda meses depois de terminado o período de shloshim. Parte do processo de luto inclui aceitar que não há fórmulas prontas e sermos generosos com nós mesmos e com aqueles à nossa volta.  O sábio Hilel nos ensinou que não devemos julgar outra pessoa até que estejamos no mesmo lugar que ela [5] e o lidar com a perda pela morte é uma das situações em que este princípio deve ser aplicado com especial afinco.

Na parashá desta semana, após a perda dos seus filhos, e sem ter tido a oportunidade de processar seu luto, Aharón começa a receber as instruções e se ocupar das funções especiais do sacerdócio. Que seu exemplo dolorido nos sirva de lição para que a morte não seja tratada como tabu nem tampouco ignorada. A morte de cada pessoa é um evento natural, parte da vida, e, mesmo assim, um momento no qual um mundo inteiro é destruído.

Que neste shabat, cada vida que nos tocou e que partiu deste mundo possa ser lembrada e que sua luz possa continuar iluminando o nosso caminho.

Shabat Shalom,


[1] Lev. 10:1-7

[2] https://bit.ly/3gs1CBB

[3] Mishná Sanhedrin 4:5

[4] https://bit.ly/3dDGG91

[5] Pirkei Avot 2:4