sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Quando a escolha pela vida é mais do que uma frase bonita

“Escolham a vida, para que você viva junto com a sua descendência” [1]. Poucas vezes um verso da Torá foi tão relevante para experiência de toda a humanidade. Há praticamente seis meses, temos adotado práticas de distanciamento social, limitado nossas interações físicas com as pessoas mais próximas; nos acostumado a conduzir aulas, reuniões e serviços religiosos pela tela do computador, com todos os desafios envolvidos. A verdade é que ninguém aguenta mais! Ansiamos pela volta do contato humano, pela possibilidade de darmos abraços apertados em nossos amigos, de sairmos para beber uma cerveja sem medo ou de ir tomar um sorvete na esquina sem receio de quem mais estará na fila.

Nessa época do ano judaico, esses anseios se tornam ainda mais intensos. Na próxima sexta-feira à noite, comemoraremos Rosh haShaná, o Ano Novo Judaico. Em geral, além das rezas e do toque do shofar que nos ajudam a aprofundar o processo de reflexão e introspecção, as Grandes Festas são também oportunidades para vermos amigos com quem não estamos sempre em contato, de nos sentirmos parte de uma grande comunidade. Neste ano, as coisas serão muito diferentes: não teremos o toque do shofar no primeiro dia de Rosh haShaná (que cai no Shabat) e os serviços serão a distância, vivenciados pela tela do celular, do computador ou da televisão. Grandes e significativas mudanças para as quais muitos de nós não estávamos prontos. Em um ano de tantas situações inusitadas com as quais nunca imaginamos, torcíamos para que as Grandes Festas nos trouxessem um pouco do conforto dos espaços conhecidos -- e é com frustração que nos demos conta de que não seria assim. 

Poucas linhas antes da frase com que abri este comentário, encontramos este outro verso da nossa parashá: “certamente, esta instrução que eu te ordeno hoje não está além da tua capacidade ou distante. Ela não está no céu, que você pudesse dizer ‘quem vai subir lá no céu e buscá-la para que a escutemos e sigamos?’” [2] O judaísmo se destaca pela forma como valoriza a ação; seu objetivo não é que apenas filosofemos sobre seus ensinamentos, mas que exerçamos na prática seus valores nas nossas decisões cotidianas. De que valeria falarmos nas nossas prédicas sobre a importância de escolhermos a vida ao mesmo tempo em que arriscássemos nossa comunidade, reunindo centenas de pessoas em um mesmo espaço enquanto a pandemia ainda não está controlada? A incoerência entre nossa fala e nossa conduta seria óbvia e negaria tudo que sempre ensinamos. Acreditamos de fato na importância de valorizarmos e escolhermos a vida e que nossas ações devem refletir esta crença.

Por tudo isso, e apesar de também já estarmos cansados do distanciamento físico e saudosos de cada membro da nossa comunidade, de querermos repetir a prática de anos anteriores e nos despedirmos calorosamente de cada um de vocês na saída dos serviços religiosos, decidimos que os serviços seriam apenas a distância. Ao longo dos últimos meses, nos dedicamos para repensar a liturgia que utilizaremos, o formato de cada um dos serviços, a linguagem mais adequada para rezas mediadas pelas telas, tudo pensado para que cada um de nós consiga atingir a mesma espiritualidade que conseguia nos serviços presenciais. 

A tradição judaica nos ensina a reviver nossos momentos históricos, apesar do tempo e da distância. Em Pêssach, não apenas nos lembramos da saída de Mitsrayim, mas saímos dos nossos lugares estreitos junto com nossos antepassados; em Shavuot, voltamos a receber a Torá todo ano, juntamente com Moshé. Neste ano, também em Rosh haShaná e em Iom Kipur venceremos o tempo e a distância e verdadeiramente nos veremos frente ao Dia do Julgamento e da Expiação, analisaremos nosso ano com Deus e refletiremos sobre nossos sucessos e nossas falhas, onde estamos orgulhosos de 5780 e quais aspectos preferíamos que nunca tivessem acontecido. 

Em uma terceira passagem da parashá desta semana, Deus anuncia que o pacto contido na Torá foi firmado com todo o povo, tanto com quem estava presente quanto com quem não estava lá [3]. Com responsabilidade e escolhendo a vida, este será o nosso desafio este ano: estarmos todos conectados, todos presentes, todos nos sentindo parte do mesmo pacto, ainda que estejamos cada um nas nossas casas.

Se você ainda não fez sua inscrição para Rosh haShaná e Iom Kipur com a CIP, corra e faz agora! O link é https://cip.org.br/grandesfestas/

Shabat Shalom!

[1] Deut. 30:19b
[2] Deut 30:11-12
[3] Deut. 29:9-14

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 1: Por que perguntar?


(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/1)

Em uma das passagens mais surpreendentes de todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, o patriarca Avraham, que tinha abandonado sua terra natal para seguir um Deus que ele nunca tinha visto, não consegue esconder seu inconformismo com esse mesmo Deus, que lhe conta que pretende destruir as cidades de Sodoma e Gomorra, onde imperava o mal. “O Juiz de toda a terra não julgará com justiça?!” inquiriu Avraham, um desafio retórico em forma de pergunta que convenceu Deus a estabelecer condições para a salvação das cidades. Várias lendas que a tradição judaica conta sobre Avraham, os chamados midrashim, relatam como ele era um iconoclasta, que revirava cada pedra e não aceitava respostas prontas, que se tornou o primeiro monoteísta questionando as crenças religiosas de seu pai e que se orgulhava de não se obrigar a estar do mesmo lado da questão que a maioria. 

É possível que o exemplo de Avraham tenha fortemente influenciado a paixão do povo judeu por perguntas. Uma paixão que se manifesta especialmente por perguntas difíceis, as chamadas “kushiot” em hebraico ou “kashes” em ídiche, que nos fazem reconsiderar nossas premissas e abordar o assunto por uma nova perspectiva. Alguns milênios depois, o povo judeu continuou esse processo de valorização das perguntas, como diz um ditado em ídiche “para toda resposta você pode encontrar uma nova pergunta”; um processo infinito no qual a busca vale mais do que encontrar a resposta perfeita. 

De um tempo pra cá, no entanto, parece que a comunidade judaica foi perdendo essa paixão. Deixamos de fazer as perguntas difíceis, talvez com medo de onde a busca nos levaria. Continuamos falando sobre a tradição judaica do debate registrada nas páginas do Talmud, a obra central do judaísmo rabínico, mas deixamos de ler o Talmud como ferramenta que nos encoraje ao debate sincero, às perguntas corajosas, até mesmo sobre a nossa tradição religiosa, sobre as nossas práticas ou sobre a nossa relação com o mundo. Pelo contrário, muitas vezes as instituições judaicas, incluindo as escolas judaicas, agiram para silenciar as vozes dissidentes, para garantir que só escutássemos as respostas oficiais.

Perguntas difíceis passaram a receber respostas enlatadas, abordagens chapa-branca que expressam desdém pela pergunta e não reconhecem a legitimidade da dúvida. Continuamos falando sobre o judaísmo como uma religião sem dogmas, mas passamos a considerar alguns assuntos como intocáveis, verdadeiros bezerros de ouro tratados como semi-deuses, em clara oposição às muitas proibições judaicas contra a idolatria.

Como saímos deste estado de coisas? Como voltamos a valorizar as perguntas e honrar as experiências que lhes dão origem? Este é o assunto deste episódio do 5.8 e, de alguma forma, de todo o projeto.

Para saber mais:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música: Clarinete: Alexandre F. Travassos / Piano: Tânia F. Travassos.
Produção Executiva e Edição: Marie Naudascher
Divulgação: Melina Sternberg e Depto. de Comunicação da CIP
Realização: Congregação Israelita Paulista

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Podcast "E Eu com Isso?" - Ep.80: O que o judaísmo diz sobre o aborto?

(texto originalmente publicado em https://open.spotify.com/episode/7F5m3JDv5y0y58GcoiZZAR)

Nos últimos dias, a discussão sobre o aborto tomou conta do país depois que uma menina de apenas 10 anos passou pelo procedimento, em Recife. Ela foi abusada sexualmente por um tio desde os 6 anos de idade e acabou engravidando. Semana passada, protestos tomaram conta das ruas em Israel, após o estupro coletivo de uma adolescente vir à tona. O crime no Brasil é mais comum do que se pensa, o que leva 6 meninas entre 10 e 14 anos de idade a abortar todos os dias. Em Israel, as leis sobre aborto são mais flexíveis se comparadas à legislação brasileira. Aqui o procedimento só é permitido em casos de estupro, anencefalia do feto e quando existe risco à vida da gestante. Mesmo assim, não é raro que nesses casos o Estado e até mesmo a Igreja tente intervir para que a interrupção da gravidez não aconteça, como vimos ser noticiado. Mas como o Judaísmo enxerga a questão do aborto? Como a discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é vista a partir de uma perspectiva judaica e feminista? Nossos convidados são Rogério Cukierman, que é rabino na Congregação Israelita Paulista, e Bruna Zolfan, feminista e ativista pelos direitos das mulheres. Apresentação: Anita Efraim e Ana Clara 'Malka' Buchmann O que diz a lei israelense sobre o aborto: http://institutobrasilisrael.org/noticias/comportamento/o-que-diz-a-legislacao-israelense-sobre-o-aborto

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Prepare-se para as Grandes Festas 5781: Shofarot

A busca pela mais absoluta justiça

Nesses dias, a discussão sobre o “abuso de poder religioso” no Supremo Tribunal Federal trouxe de volta à ordem do dia a questão sobre a relação entre religião e política ou, colocado de outra forma, qual participação critérios religiosos devem ter na vida pública. De um lado, o Brasil é um país laico, onde vigora (ou deveria vigorar) a separação entre religião e estado; de outro, as religiões acabam definindo valores e posições políticas de seus integrantes. Religiões não se ocupam apenas do metafísico, da relação do ser humano com o Divino, mas também da relação entre as pessoas, das formas como nos tratamos e como organizamos nossas sociedades. O judaísmo coloca especial atenção à forma como tratamos os segmentos mais vulneráveis e oprimidos das nossas comunidades e coloca a proteção deles na categoria de obrigação religiosa. O rabino Abraham Joshua Heschel expressou esse conceito de forma bastante clara quando, ao terminar uma marcha pelos direitos civis dos afro-americanos ao lado do Reverendo Martin Luther King Jr. em 1965, afirmou “para muitos de nós, a marcha de Selma a Montgomery foi sobre protesto e oração. Pernas não são lábios e andar não é se ajoelhar. E, no entanto, nossas pernas entoaram canções. Mesmo sem palavras, nossa marcha era reza. Senti que minhas pernas estavam rezando.” [1]

A parashá desta semana, Shoftim, está entre aquelas que coloca as questões de organização social no centro das preocupações judaicas. Entre os temas que aborda estão a organização do sistema judicial, critérios para a escolha de monarcas e normas para sua conduta, alertas para falsos profetas que abusem do nome de Deus para avançar seus objetivos pessoais e regulação para conduta ética em situações de guerra. Entre suas frases icônicas, está “Tsedek, tsedek tirdof”, “a mais absoluta forma de justiça você deve buscar”. [2]

A busca por justiça continua nos nossos dias, assim como a discussão sobre qual seria “a mais absoluta forma de justiça” que devemos buscar. Para alguns, trata-se de estabelecer as estruturas de um sistema judicial que trate a todos de forma idêntica, sem considerar as condições subjetivas; para outros, a definição vai na direção contrária e a justiça verdadeira só pode ser estabelecida quando compreendemos os contextos que levam cada um dos agentes a agir de determinada forma. Paradoxalmente, encontramos no judaísmo elementos que dão sustentação a essas duas abordagens.

Qualquer que seja nossa visão para um cenário no qual a justiça reine, estamos muito longe dele e temo que estejamos caminhando no sentido contrário, aprofundando as injustiças na sociedade brasileira. Nesse contexto, é fundamental que não normalizemos esta conjuntura e continuemos buscando “a mais absoluta forma de justiça.”

Elie Wiesel nos conta que uma pessoa justa que vivia na cidade de Sdom, onde esta qualidade era rara, e que andava pelas ruas da cidade protestando pelos atos de injustiça que testemunhava. A cidade ria dele e do seu protesto. Finalmente, uma pessoa jovem lhe perguntou por que continuava protestando mesmo quando era claro que ninguém prestava atenção. A resposta da pessoa justa deve servir de alerta para a situação em que vivemos hoje: “no começo, eu achava que podia mudar as pessoas. Hoje, eu reconheço que não posso. Mesmo assim, se eu continuar a protestar, eu terei prevenido que os outros me mudem.” [3]

Que a busca pela justiça e a preocupação com aqueles que sofrem os maiores impactos do ambiente injusto em que nos encontramos continuem determinando nossos atos e que consigamos encontrar parceiros e aliados que nos ajudem nesse processo.


Shabat Shalom!


[1] Michael Shire, “The Jewish Prophet: Visionary Words from Moses and Miriam to Henrietta Szold and A.J. Heschel”, p. 121.
[2] Deut. 16:20
[3] Harvey J. Fields, “A Torah Commentary for Our Times: volume three, Numbers and Deuteronomy”, p. 141.




sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Dvar Torá: as muitas faces da realidade (CIP)

Nas últimas semanas, depois de muito ensaiarem e depois de terem assistido todos os filmes, meus filhos resolveram ler os livros do Harry Potter. Pra acompanhar essa leitura, cada vez que eles terminam um livro, a gente assiste o filme de novo e eles ficam me contando em cada cena como o livro é diferente do filme.

Apesar do seu caráter super-natural, das mágicas e das plataformas de trem escondidas dentro um pilar, a realidade de Harry Potter reflete uma certa ponto de vista também da nossa realidade. Dumbledore, o mago que é diretor da escola em que Harry estuda, é um sujeito acima de qualquer crítica, que parece sempre conseguir identificar o que é o bom e o que é ruim e que até aparenta saber o que os outros estão pensando ou tramando, o que sempre me deixou intrigado, me perguntando porque Dumbledore não impedia, desde o princípio, as armadilhas plantadas e tramas planejadas por seus oponentes. Voldermort, o grande vilão da série, por outro lado, representa tudo que há de ruim. É o mal absoluto que devemos, com a mais absoluta certeza, combater.

Bem diferente de Anakin Skywalker, um dos vilões de Guerra nas Estrelas, outra série de filmes que eu estou revendo, dessa vez sem os meus filhos. Anakin aparece nos primeiros filmes da série como uma criança fofa, esperta, cheia de vida, mas de alguma forma tentado pelo grande poder oferecido pelo lado negro da força; mais tarde, conforme os filmes foram avançando, esta atração pelo lado negro o leva a se transformar em Darth Vader, o principal vilão dos filmes 4, 5 e 6. Mas, no final, ainda é possível ver a humanidade e a bondade que se escondiam naquele corpo robótico.

De um lado, bem e mal absolutamente distintos, sem se misturar; de outro, uma realidade mais complicada, em que o bem vira mal, pra virar bem de novo mais tarde.

A Torá muitas vezes parece refletir um ponto de vista de absolutos: escolham entre, de um lado, o bem, a benção e a vida; e de outro lado, o mal, a maldição e a morte. No comecinho da parashá desta semana, esta perspectiva é formulada novamente: “רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃”, “vejam, hoje eu coloco na sua frente a benção e a maldição.” [1] Dadas estas opções, a decisão não parece tão complicada — quase como a piada que diz que alguém prefere ser lindo, rico e feliz a ser feio, pobre e triste. Em geral, no entanto, nossas escolhas não são entre possibilidades em que tudo o que queremos está em uma coluna e tudo o que rejeitamos está na outra.

Em muitas situações, talvez na maior parte delas, os cenários não são absolutos, com tudo bom ou com tudo ruim. Escolher implica avaliar cenários, considerar suas implicações, seus riscos e consequências. Ponderar o que cada escolha tem de bom e de ruim, qual é sua benção e sua maldição e entender que não dá para escolher uma sem receber a outra junto.

Um exemplo: esta semana eu li e escutei muita coisa sobre a reabertura das escolas. A esta altura, já deveria estar claro para todos nós que, diferentemente do que muitos disseram no seu início, a pandemia não atingiu todos os grupos sociais da mesma forma. As pesquisas indicam que nos bairros mais nobres, menos de 10% das pessoas já foram expostas ao coronavírus; enquanto nas comunidades de menor renda, são mais 20% os que apresentam o mesmo indicador [2]. Isso é reflexo de muitos fatores, incluindo o fato de que pessoas de menor renda têm menor possibilidade de trabalho remoto e de isolamento social. Além disso, há hospitais públicos na periferia nos quais mais de 90% dos pacientes com Covid encaminhados para a UTI faleceram [3]; a média geral no Brasil é de 34% dos pacientes encaminhados para UTI falecerem [4]. Por outro lado, são justamente as comunidades mais carentes nas quais as famílias mais dependem da merenda escolar como fonte regular de nutrição para as crianças, onde as crianças têm menos condição de acesso às plataformas de ensino a distância e por isso estão sendo muito mais impactadas na sua educação com a suspensão das aulas e cujos pais, sem reservas financeiras, precisam que seus filhos estejam na escola para que eles possam voltar a trabalhar e recuperar pelo menos parte da renda perdida durante a pandemia. Nesse cenário, a escolha entre manter os filhos em casa ou exigir do poder público o retorno das aulas com maior risco de contaminação parece ser entre duas maldições. Não há benção entre as escolhas….

Tratar essa questão como óbvia ou condenar categoricamente aqueles que defendem uma ou outra solução é menosprezar sua complexidade. Em várias instâncias a tradição rabínica soube reconhecer que algumas vezes temas apresentados pela Torá em termos absolutos merecem maior sofisticação de análise.

Na meio parashá desta semana encontramos o conceito do ano sabático, no qual todas as dívidas eram canceladas [5]. O objetivo desta norma é claro: impedir o ciclo no qual algumas pessoas vivem sempre com dívidas, sempre com a corda no pescoço, nunca se sentindo totalmente livres. Em algum momento, no entanto, as pessoas perceberam que, como consequência deste preceito, os empréstimos não eram mais concedidos e as pessoas em situação vulnerável, que precisavam de ajuda financeira, tinham sido prejudicadas por uma legislação cujo objetivo claro era protegê-las. Sob a liderança de Hilel, um sábio do séc 1 aEC, foi criado um mecanismo, chamado Prozbul, que suspendia o cancelamento das dívidas e que permitiu, assim, que as pessoas pudessem contrair empréstimos quando precisassem [6]. Nem só bom, nem só ruim — as realidades são complexas e suas soluções precisam endereçar esta complexidade.

Um outro exemplo da tradição judaica, desta vez mais simbólico. O Lechá Dodi, que cantamos há pouco, foi escrito no século 16 na cidade de Tsfat, que nessa época, tinha se tornado um centro da mística judaica. Suas estrofes contém muitas camadas de significados: o casamento do qual falamos é do povo judeu com o Shabat, mas também de Deus com o povo judeu ou do casamento da Shchiná, uma manifestação feminina de Deus, com haKadosh Baruch Hu, uma manifestação masculina do Divino. Tantas uniões que celebramos no Shabat e, no entanto, as chamas das duas velas que acendemos não se tocam. Por outro lado, na havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat no sábado à noite, fazemos uma reza em que abençoamos as distinções entre a luz e a escuridão, entre o sagrado e o comum, entre o shabat e os outros dias da semana, entre o povo judeu e o resto da humanidade. Tantas distinções, tantas separações; a vela que usamos, no entanto, precisa ter pelo menos dois pavios e suas chamas precisam se tocar. A união do cabalat Shabat não é absoluta, nem a separação da havdalá o é. Quando abençoamos a vela da havdalá, fazemos um movimento com as mãos para que consigamos enxergar áreas iluminadas e sombrias , luz e escuridão, nas palmas das nossas mãos.

Um ditado americano diz “be careful with what you hope for”, “tenha cuidado com aquilo que você deseja”. Algumas vezes, as bençãos pelas quais mais esperamos se tornam maldições; outras vezes, algo que sempre evitamos, a maldição que sempre tememos, acabam se tornando as maiores bençãos das nossas vidas.

Nessa realidade multifacetada, categorias estanques não dão conta de descrevê-la. Certamente, não nos ajuda acreditar em absolutos, grupos que são tudo de bom ou outros que são o mal absoluto. 

Que nesse shabat, consigamos sentir o amargo no mel e o doce no limão; a luz que se esconde na escuridão e o escuro que não vemos por causa da luz. Que abandonemos as frases prontas, as visões maniqueístas e que, com coragem, apreciemos toda a complexidade da realidade.

Shabat Shalom!


[1]  Deut. 11:26.
[2]  https://soundcloud.com/revistapiaui/luz-no-fim-da-quarentena-40-18
[3] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[4] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/08/10/com-a-pratica-medicos-aprendem-a-tratar-covid-e-salvam-mais-vidas-nas-utis.htm
[5] Deut. 15:1-3.
[6] Mishná Seviit 10:3-6