sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Dvar Torá: as muitas faces da realidade (CIP)

Nas últimas semanas, depois de muito ensaiarem e depois de terem assistido todos os filmes, meus filhos resolveram ler os livros do Harry Potter. Pra acompanhar essa leitura, cada vez que eles terminam um livro, a gente assiste o filme de novo e eles ficam me contando em cada cena como o livro é diferente do filme.

Apesar do seu caráter super-natural, das mágicas e das plataformas de trem escondidas dentro um pilar, a realidade de Harry Potter reflete uma certa ponto de vista também da nossa realidade. Dumbledore, o mago que é diretor da escola em que Harry estuda, é um sujeito acima de qualquer crítica, que parece sempre conseguir identificar o que é o bom e o que é ruim e que até aparenta saber o que os outros estão pensando ou tramando, o que sempre me deixou intrigado, me perguntando porque Dumbledore não impedia, desde o princípio, as armadilhas plantadas e tramas planejadas por seus oponentes. Voldermort, o grande vilão da série, por outro lado, representa tudo que há de ruim. É o mal absoluto que devemos, com a mais absoluta certeza, combater.

Bem diferente de Anakin Skywalker, um dos vilões de Guerra nas Estrelas, outra série de filmes que eu estou revendo, dessa vez sem os meus filhos. Anakin aparece nos primeiros filmes da série como uma criança fofa, esperta, cheia de vida, mas de alguma forma tentado pelo grande poder oferecido pelo lado negro da força; mais tarde, conforme os filmes foram avançando, esta atração pelo lado negro o leva a se transformar em Darth Vader, o principal vilão dos filmes 4, 5 e 6. Mas, no final, ainda é possível ver a humanidade e a bondade que se escondiam naquele corpo robótico.

De um lado, bem e mal absolutamente distintos, sem se misturar; de outro, uma realidade mais complicada, em que o bem vira mal, pra virar bem de novo mais tarde.

A Torá muitas vezes parece refletir um ponto de vista de absolutos: escolham entre, de um lado, o bem, a benção e a vida; e de outro lado, o mal, a maldição e a morte. No comecinho da parashá desta semana, esta perspectiva é formulada novamente: “רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃”, “vejam, hoje eu coloco na sua frente a benção e a maldição.” [1] Dadas estas opções, a decisão não parece tão complicada — quase como a piada que diz que alguém prefere ser lindo, rico e feliz a ser feio, pobre e triste. Em geral, no entanto, nossas escolhas não são entre possibilidades em que tudo o que queremos está em uma coluna e tudo o que rejeitamos está na outra.

Em muitas situações, talvez na maior parte delas, os cenários não são absolutos, com tudo bom ou com tudo ruim. Escolher implica avaliar cenários, considerar suas implicações, seus riscos e consequências. Ponderar o que cada escolha tem de bom e de ruim, qual é sua benção e sua maldição e entender que não dá para escolher uma sem receber a outra junto.

Um exemplo: esta semana eu li e escutei muita coisa sobre a reabertura das escolas. A esta altura, já deveria estar claro para todos nós que, diferentemente do que muitos disseram no seu início, a pandemia não atingiu todos os grupos sociais da mesma forma. As pesquisas indicam que nos bairros mais nobres, menos de 10% das pessoas já foram expostas ao coronavírus; enquanto nas comunidades de menor renda, são mais 20% os que apresentam o mesmo indicador [2]. Isso é reflexo de muitos fatores, incluindo o fato de que pessoas de menor renda têm menor possibilidade de trabalho remoto e de isolamento social. Além disso, há hospitais públicos na periferia nos quais mais de 90% dos pacientes com Covid encaminhados para a UTI faleceram [3]; a média geral no Brasil é de 34% dos pacientes encaminhados para UTI falecerem [4]. Por outro lado, são justamente as comunidades mais carentes nas quais as famílias mais dependem da merenda escolar como fonte regular de nutrição para as crianças, onde as crianças têm menos condição de acesso às plataformas de ensino a distância e por isso estão sendo muito mais impactadas na sua educação com a suspensão das aulas e cujos pais, sem reservas financeiras, precisam que seus filhos estejam na escola para que eles possam voltar a trabalhar e recuperar pelo menos parte da renda perdida durante a pandemia. Nesse cenário, a escolha entre manter os filhos em casa ou exigir do poder público o retorno das aulas com maior risco de contaminação parece ser entre duas maldições. Não há benção entre as escolhas….

Tratar essa questão como óbvia ou condenar categoricamente aqueles que defendem uma ou outra solução é menosprezar sua complexidade. Em várias instâncias a tradição rabínica soube reconhecer que algumas vezes temas apresentados pela Torá em termos absolutos merecem maior sofisticação de análise.

Na meio parashá desta semana encontramos o conceito do ano sabático, no qual todas as dívidas eram canceladas [5]. O objetivo desta norma é claro: impedir o ciclo no qual algumas pessoas vivem sempre com dívidas, sempre com a corda no pescoço, nunca se sentindo totalmente livres. Em algum momento, no entanto, as pessoas perceberam que, como consequência deste preceito, os empréstimos não eram mais concedidos e as pessoas em situação vulnerável, que precisavam de ajuda financeira, tinham sido prejudicadas por uma legislação cujo objetivo claro era protegê-las. Sob a liderança de Hilel, um sábio do séc 1 aEC, foi criado um mecanismo, chamado Prozbul, que suspendia o cancelamento das dívidas e que permitiu, assim, que as pessoas pudessem contrair empréstimos quando precisassem [6]. Nem só bom, nem só ruim — as realidades são complexas e suas soluções precisam endereçar esta complexidade.

Um outro exemplo da tradição judaica, desta vez mais simbólico. O Lechá Dodi, que cantamos há pouco, foi escrito no século 16 na cidade de Tsfat, que nessa época, tinha se tornado um centro da mística judaica. Suas estrofes contém muitas camadas de significados: o casamento do qual falamos é do povo judeu com o Shabat, mas também de Deus com o povo judeu ou do casamento da Shchiná, uma manifestação feminina de Deus, com haKadosh Baruch Hu, uma manifestação masculina do Divino. Tantas uniões que celebramos no Shabat e, no entanto, as chamas das duas velas que acendemos não se tocam. Por outro lado, na havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat no sábado à noite, fazemos uma reza em que abençoamos as distinções entre a luz e a escuridão, entre o sagrado e o comum, entre o shabat e os outros dias da semana, entre o povo judeu e o resto da humanidade. Tantas distinções, tantas separações; a vela que usamos, no entanto, precisa ter pelo menos dois pavios e suas chamas precisam se tocar. A união do cabalat Shabat não é absoluta, nem a separação da havdalá o é. Quando abençoamos a vela da havdalá, fazemos um movimento com as mãos para que consigamos enxergar áreas iluminadas e sombrias , luz e escuridão, nas palmas das nossas mãos.

Um ditado americano diz “be careful with what you hope for”, “tenha cuidado com aquilo que você deseja”. Algumas vezes, as bençãos pelas quais mais esperamos se tornam maldições; outras vezes, algo que sempre evitamos, a maldição que sempre tememos, acabam se tornando as maiores bençãos das nossas vidas.

Nessa realidade multifacetada, categorias estanques não dão conta de descrevê-la. Certamente, não nos ajuda acreditar em absolutos, grupos que são tudo de bom ou outros que são o mal absoluto. 

Que nesse shabat, consigamos sentir o amargo no mel e o doce no limão; a luz que se esconde na escuridão e o escuro que não vemos por causa da luz. Que abandonemos as frases prontas, as visões maniqueístas e que, com coragem, apreciemos toda a complexidade da realidade.

Shabat Shalom!


[1]  Deut. 11:26.
[2]  https://soundcloud.com/revistapiaui/luz-no-fim-da-quarentena-40-18
[3] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[4] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/08/10/com-a-pratica-medicos-aprendem-a-tratar-covid-e-salvam-mais-vidas-nas-utis.htm
[5] Deut. 15:1-3.
[6] Mishná Seviit 10:3-6


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