sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dvar Torá: Muito além dos Números (CIP)

Há uns dois meses, eu li com os meus filhos “A Revolução dos Bichos”, o clássico de George Orwell sobre uma fazenda na qual os animais tomam o poder com a promessa de criar uma nova sociedade igualitária mas que rapidamente reproduz as mesmas injustiças que existiam quando eram os humanos que tomavam conta. O livro é claramente uma crítica ao regime totalitário da União Soviética mas o tempo decorrido desde a sua primeira publicação em 1945 nos permite enxergar reflexos da situação descrita lá em muitos regimes fora da órbita socialista. Bola de Neve, por exemplo, é um dos líderes da revolução dos bichos e um dos porcos do gabinete que comanda a fazenda no novo regime. Em algum momento, no entanto, ele é expurgado, some da fazenda e passa a ser associado a tudo de ruim que acontece com a comunidade. O que era uma referência no texto original ao expurgo de Trotsky parece descrever cenários da realidade que vivemos hoje.

Entusiasmado pela forma como meus filhos gostaram do livro, resolvi também resgatar uma leitura antiga de George Orwell. Há uns 25 anos, eu tinha lido “1984” e o livro tinha me deixado profundamente marcado com a realidade distópica, também em um regime totalitário, baseado não apenas na realidade soviética mas também na Alemanha nazista. Uma frase tinha ficado gravada nestes anos todos desde a primeira leitura e a re-encontrei agora nesta segunda leitura. “A Liberdade é a liberdade de afirmar que dois mais dois é igual a quatro.” A frase é usada em referência à possibilidade de que o Estado totalitário do livro afirmasse que “dois mais dois é cinco” e que as pessoas, cegas pela crença no líder, se convencessem de que essa é a verdade.

Minha primeira escolha de carreira universitária foi Ciência da Computação - que basicamente é um curso em Matemática Aplicada. Os número tem grande importância pra mim, um valor quase sentimental. Talvez por isso, naquela época a frase de Orwell tenha me impactado tanto. Se perdermos a capacidade de identificar o que é verdadeiro e o que é falso, em que acreditaremos? Se alguém for efetivamente capaz de nos convencer que a mentira mais absurda, como que dois mais dois é cinco, é verdade, perdemos parte do juízo que caracteriza o que quer dizer ser humano.

George Orwell em um artigo publicado ainda durante a Segunda Guerra Mundial e seis anos antes da publicação de 1984, tinha escrito:
A teoria nazista de fato nega especificamente que tal coisa como “a verdade" exista. (…) O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo em que o líder, ou alguma classe dominante, controla não só o futuro, mas também o passado. Se o Líder disser sobre tal e tal evento, "Isso nunca aconteceu" - bem, isso nunca aconteceu. Se ele disser que dois e dois são cinco - bem, dois e dois são cinco. Essa perspectiva me assusta muito mais do que as bombas. [1]
Essa perspectiva, que me assustava na primeira leitura, ainda me assusta, provavelmente muito mais hoje do que há 25 anos.

Mas tem um outro lado meu que reconhece que as nossas vidas não podem ser descritas só em números. Depois de largar a Ciência da Computação, eu acabei me formando em Administração de Empresas e fiz mestrado em Economia, duas áreas do conhecimento que nos últimos anos têm se pautado por “decisões baseadas em dados” ou, em outras palavras, a análise dos números antes de tomarmos qualquer decisão.

Eu não discordo fundamentalmente dessa abordagem, mas acho que às vezes corremos riscos quando achamos que tudo é mensurável, que dá pra estabelecer o valor de tudo em números. Especialmente nesses dias de isolamento físico, é importante lembrar do que está muito além dos números.

Ontem quebramos a barreira de 20.000 mortes pela Covid-19 no Brasil. Claramente se trata, não apenas de uma crise da saúde pública da mais alta gravidade, mas principalmente de uma desgraça pra esse país. São mais de 20.000 famílias que perderam um pai, uma mãe, um avô, uma filha, um melhor amigo. São 20.000 futuros que a gente não vai mais conhecer. É uma daquela situações nas quais a tradição judaica diz que vamos encontrar Deus sentado no chão, com cinzas sobre a cabeça, chorando e lamentando o que está acontecendo.

Mas essa análise toma como óbvio um fator que eu não acho que seja tão evidente, que é o valor da vida humana. Para quem acha que o valor da vida humana é zero, essa crise não tem importância nenhuma, afinal de contas 20.000 vezes zero é zero! Perceber a dimensão dessa tragédia implica reconhecer que teria sido trágico mesmo se apenas uma vida tivesse sido perdida por nossa apatia, pelo nosso descaso ou pela nossa negligência.

Os jornais tem publicado pequenas histórias sobre as pessoas que têm morrido de Covid-19. Ao conhecermos um pouquinho de quem elas eram, a estatística, o número, vira indivíduos, vira relacionamentos, vira uma questão pessoal. Aí, a gente reconhece que na frase “mais de 20.000 pessoas já morreram por Covid-19 no Brasil”, a parte mais importante tem que ser “pessoas” e não “20.000”.

Um outro jeito de ver isso é olhar pra quando uma única morte nos impacta de forma profunda, mesmo quando não conhecíamos a pessoa diretamente. Pode ser um artista, como o Aldir Blanc, cujas músicas me lembram o som que eu escutava no banco de trás do Passat branco do meu pai. Suas músicas são como uma máquina do tempo e perdê-lo significa, de alguma forma simbólica, perder também essas doces memórias da minha infância. 

Olhando para fora da Covid, quem não se lembra de Alan Kurdi, o menino Sírio de 3 anos cujo corpo afogado foi encontrado em uma praia na Turquia em 2015 e cuja foto estampou jornais do mundo todo? Uma foto, uma criança, capazes de mudar a opinião de muita gente com relação à crise dos refugiados. 

Ou de Evaldo Rosa, o músico morto com oitenta tiros na frente de um quartel do exército no Rio de Janeiro há pouco mais de um ano e cuja morte escancarou a violência da intervenção militar no Rio? De novo, uma só morte e um impacto gigante.

É provavelmente por reconhecer o impacto que cada perda nos traz que a tradição judaica nos ensina que “salvar uma vida é como salvar o mundo todo.” Vinte mil mundos que perdemos até agora.

A parashá desta semana é a primeira do 4o livro da Torá, que em português se chama “Números”. O nome vem de um pedido de Deus para que Moshé faça um censo dos hebreus — o que curioso, porque tem uma proibição religiosa contra contarmos as pessoas. Há uma discussão se essa proibição vem da Torá ou se é posterior, mas é isso que leva algumas pessoas, quando querem contar um minián, a dizerem a seguinte frase, que tem dez palavras: “הוֹשִׁיעָה אֶת־עַמֶּךָ וּבָרֵךְ אֶת־נַחֲלָתֶךָ וּרְעֵם וְנַשְּׂאֵם עַד־הָעוֹלָם”, “Redima teu povo e abençoe tua possessão, cuide e sustente-os para sempre” [2]. Tem gente também que conta “não 1”, “não 2”, “não 3” e assim por diante -- desse jeito eles "não" contam.

Há muitas interpretações para o motivo desta proibição, mas eu gosto de pensar que há um tanto de desumanização cada vez que transformamos alguém em estatística. Os nazistas entenderam isso, tiravam o nome das pessoas e as transformavam em um número tatuado no braço. Não eram mais pessoas, não tinham mais valor, eram só um número. Por isso, somos proibidos de contar pessoas — uma forma impedir que tiremos qualquer parte da dignidade inalienável de todo ser humano. Toda vida conta, tem nome, sobrenome e uma história pessoal. Ninguém é só número.

Em hebraico, este livro se chama “baMidbar”, “no deserto”. Foi na vastidão do deserto que nosso povo abandonou as limitações e a idolatria de Mitsrayim, “a terra das águas estreitas” e construiu sua liberdade através do relacionamento com o Deus que criou a humanidade, cada um de nós à Sua imagem e semelhança. 

Foi no deserto que escutamos pela primeira vez o Sh’má: “escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um.” Eu gosto especialmente de uma interpretação chassídica do Sh’má, segundo a qual “Um” não deve ser entendido como um numeral, mas como representado o Todo. “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Tudo.” A cada vida que perdemos, este Tudo se subtrai, eu você, todos nós perdemos. Não pelo número, mas pela vida, pela história, pelas possibilidades que nunca mais vão acontecer.

Que na nossa viagem literária pela amplidão do Deserto do livro de baMidbar encontremos, também nós, a liberdade. A liberdade de reconhecer a verdade, a liberdade de desejar e lutar pela vida, a liberdade de continuarmos humanos e afirmarmos que dois mais dois é igual a quatro.

Shabat Shalom

[1] https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 citado em https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 

[2] Salmos 28:9

sexta-feira, 8 de maio de 2020

As muitas formas de justiça: ontem, hoje e amanhã

Nas últimas semanas, foram inúmeras as reuniões a distância com famílias e jovens se preparando para o B-Mitsvá, todos frustrados com o adiamento de cerimônias que tinham sido agendadas para este primeiro semestre e para as quais os jovens vinham se preparando há meses. Muitas vezes, eu ouvi deles a expressão “não é justo!”. Não culpavam ninguém, reconheciam que na conjuntura atual o adiamento da cerimônia era a decisão correta mas, ainda assim, reclamavam da injustiça da situação.

“O que é justiça?” A pergunta abstrata, sobre a qual filósofos têm se debruçado desde o princípio, ganha ares de concretude quando enfrentamos situações em nossas vidas nas quais precisamos responder a situações em que nos parece que nosso conceito de “justiça” foi violado.

Na tradição judaica, a preocupação com a Justiça é permanente -- somos instruídos, por exemplo, a “buscar a mais absoluta justiça” [1] e Deus é frequentemente identificado como Justo [2]. Mas qual o conceito de justiça do qual estamos falando?  Será da abordagem punitiva, na qual quem comete um erro precisa ser punido para desencorajar outras pessoas de cometerem o mesmo ato, ou da visão restaurativa, que busca restabelecer o equilíbrio abalado pelo erro cometido?

Na parashá desta semana, a lógica da justiça segue a perspectiva da Lei de Talião: “fratura por fratura, olho por olho, dente por dente” [3]. Assim, quando um dano é causado a alguém, o texto parece nos instruir a buscar a justiça causando dano similar ao perpetrador: se alguém machuca outra pessoa, deve ser machucada da mesma forma; se uma pessoa mata outra, também deve ser morto.

Já na época da Mishná (220 EC), esta perspectiva deixava os rabinos muito desconfortáveis. “Não pode passar pela sua cabeça que o texto da Torå seja lido literalmente”, eles afirmam no Talmud [4]. Muitos séculos antes de Mahatma Gandhi, os rabinos já reconheceram o conceito de que “olho por olho e o mundo terminará cego.” Em um sistema no qual apenas a justiça punitiva impera, a ordem se institui pelo medo, mas não se desenvolve um sistema de solidariedade social no qual a comunidade busca, conjuntamente, reparar o dano causado.

A solução para o desconforto sentido pelos rabinos ocupa várias páginas do Talmud da Babilônia e determinou que uma compensação financeira deveria reparar o dano causado. É claro que isso não é possível em todas as situações: dinheiro nenhum poderá trazer de volta uma vida perdida e, mesmo em casos de outras ofensas, há traumas muito difíceis de serem superados. Mas a ideia de que a busca por justiça deve buscar reparar o equilíbrio estava firmada.

A re-leitura radical dos rabinos para esta difícil passagem criou precedentes importantes para a forma como a tradição judaica evoluiu: de um lado, permitiu que discordássemos de regras determinadas pela Torá e que tivéssemos, nós mesmos, estratégias de leituras alternativas; de outro lado, reconheceu a multiplicidade dos conceitos de “justiça” e permitiu que vislumbrássemos a forma como estabeleceríamos um mundo mais justo.

Como será a justiça que construiremos quando sairmos deste longo túnel de isolamento no qual nos vemos hoje? A pandemia expôs algumas injustiças na forma como estruturamos nossos bairros, nossas cidades, nossa sociedade em geral. Será que, ao questionarmos não apenas as regras da Torá, mas também outras regras que aceitamos como se imutáveis fossem, seremos capazes de construir um mundo mais igual, mais humano e mais justo? Tomara que sim!

Shabat Shalom

[1] Devarim 16:20
[2] Por exemplo, Salmo 119:137
[3] Vaicrá 24:20
[4] b Bava Kama 83b

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dvar-Torá: Amar – verbo transitivo e intransitivo (CIP)

Nestes tempos de Covid, as aulas que a gente tem feito, as reuniões até o serviços religiosos (com exceção desse Cabalat Shabat) têm sido transmitidas das nossas casas, o que traz complicações sobre as quais ninguém tinha falado no seminário rabínico. Complicações sobre a qualidade da conexão, sobre o gerenciamento de quem pode falar a cada hora e, principalmente, qual fundo vamos escolher para a nossa transmissão. Cada fundo manda uma mensagem…. eu tenho a sorte de ter uma estante cheia de livros judaicos contra a qual eu costumo falar — são muitos livros, muitos. Meus filhos vivem perguntando se eu os li todos e, meio constrangido, eu tento explicar que são livros de consulta, que a gente vai lendo aos poucos quando precisa, um capítulo de cada vez….

Tem outros livros sobre os quais eu sei ainda menos do que aqueles que estão na minha estante; títulos que eu lembro da mesa de cabeceira da minha mãe quando eu estava crescendo. Eu nunca li os livros, mas sempre achei os títulos super bem bolados: “Não apresse o rio, ele corre sozinho”, de Barry Stevens e “Amar, verbo intransitivo”, de Mario de Andrade.

Amar - verbo intransitivo. Eu sempre fiquei pensando nisso. Será que o amar é uma capacidade que a gente desenvolve, independentemente do objeto desse amor ou nossa capacidade de amar depende de termos encontrado o destino desse amor?

Na parashá dessa semana, na parte de “kedoshim” de “acharei mot-kedoshim”, temos um dos versículos mais famosos da Torá: ואהבת לרעך כמוך, “ame a teu próximo como a ti mesmo.” Eu queria parar e pensar um pouquinho nessa ideia.

Uma primeira mensagem implícita em “ama a teu próximo como a ti mesmo” é que amemos a nós mesmos. Em época de pandemia, em que passamos tanto tempo isolados, o convívio com os nossos próprios “eus” se tornou, para muitos de nós, ainda mais frequente. Como em toda relação levada ao extremo, nosso isolamento pode nos levar a uma certa exaustão de nós mesmos. Nossas falhas ficam mais evidentes, nossos pontos fortes podem parecer apagados e menos relevantes. É fundamental lembrar que por trás do “ama a teu próximo como a ti mesmo” está a ideia de que fomos criados à imagem Divina; o teu próximo e também você mesmo. Adote um pouco de cuidado com você mesmo: seja mais tolerante com suas falhas, entenda que as coisas não estão fáceis e se permita um pouquinho de mimos: tome um banho gostoso, se vista como se fosse sair, prepare uma refeição deliciosa, mesmo que seja só você que vai comê-la. Tente ter alguma atividade física ao longo do dia e fazer alguma coisa ao longo do dia de que você goste muito.

A segunda premissa de “ame a teu próximo como a si mesmo” é que o teu próximo não é você. É uma outra pessoa, com toda a sua complexidade. Ás vezes, a gente sonha se relacionar com pessoas que sejam idênticas a nós mesmos, mas a ética judaica enfatiza o encontro com o outro. Um outro cujas preferências não são idênticas às nossas, que tem suas vontades, suas necessidades. Nestes tempos de quarentena, vivendo tanto tempo com as mesmas pessoas, nossas relações com o outro acabam se desgastando também. E aqui também precisamos ser um pouco mais generosos, reconhecer que muitos de nós estamos estressados, preocupados com o momento atual e com o que virá na sequência — não tem sido fácil e muitas vezes descarregamos as frustrações justamente em quem está mais próximo. Aqui vai a dica para tentamos evitar isso do nosso lado e para sermos mais tolerantes quando o “próximo” estiver tendo um dia mais difícil.

E quando o “próximo” não for tão próximo assim? O criador do chassidismo, o Baal Shem Tov, já falava que o grande teste de “ame ao teu próximo como a ti mesmo” é amar aqueles de quem discordamos. Em tempos de posicionamentos políticos acirrados, com os nervos à flor da pele, é fácil esquecer essa lição. Emanuel Levinas, um dos grandes nomes da filosofia judaica do século XX, falava da nossa responsabilidade pelo outro. A empatia, a capacidade de nos imaginarmos na pele de outra pessoa, vivendo sob as suas pressões e com os seus valores, é uma das características que nos diferencia como seres humanos. Neste momento de dificuldades coletivas, “amar a teu próximo como a ti mesmo” é também se sentir co-responsável por aqueles cujas posturas são diametralmente opostas à tua, é não ser tão rápido para julgar o outro até que você não tenha estado no lugar dele, é termos paciência e compaixão. É entender que a sociedade se faz entre diferentes e que só vamos sair dessa crise juntos.

Então, vamos reaprender a amar como verbo intransitivo - o tipo do amor que a gente carrega onde quer que vá e que se manifesta em todos os momentos das nossas vidas, em todas as interações. E vamos também reaprender a amar como verbo transitivo. Amar a nós mesmos e amar aos outros, próximos e distantes; com generosidade, com compaixão, com respeito e valor.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Dois paradigmas para o exercício da liderança

Shmini, a parashá que lemos esta semana, contém uma das passagens mais enigmáticas da Torá: Nadav e Avihu, dois filhos de Aharón, resolvem fazer uma oferta a Deus para a qual não haviam recebido nenhuma instrução e são imediatamente consumidos pelo fogo. (Lev. 10:1-2)

Ao longo dos séculos, muitos comentaristas têm tentado explicar essa passagem, vários deles associando a punição às motivações de Nadav e Avihu. Apesar de estarem sendo preparados para serem líderes do povo de Israel, eles demonstraram que não eram as pessoas certas para posições de liderança, exibindo arrogância (rabi Levi) e presunção (rabi Tanchuma). Rashi também aponta para a arrogância de Nadav e Avihu, argumentando que eles foram punidos por terem feito uma oferta a Deus sem consultar Moshé e Aharon, os especialistas no assunto, que poderiam tê-los ajudado. O rabino Morris Adler acredita que o que os consumiu foi o fogo da ambição, do impulso e do desejo. Em suas diferentes abordagens, estes comentaristas concordam que Nadav e Avihu não tinham as características necessárias ao desempenho de liderança e que a perspectiva de terem poder lhes subiu à cabeça e os impediu de assumir o sacerdócio.

Em contraposição, logo no início da nossa parashá, alguns versos antes desse episódio, há um outro relato, cujos comentários apresentam um modelo radicalmente distinto de liderança. Moshé convoca Aharon e seus filhos para fazerem sacrifícios (entre eles, de um bezerro) como forma de serem desculpados por quaisquer infrações que eles e o povo possam ter cometido. De acordo com Rashi, esta oferta estava ligada diretamente ao episódio do bezerro de ouro.  Aharon vacilava, com dúvidas se era ela a pessoa certa para assumir o sumo-sacerdócio, tendo em vista que não tinha impedido o povo de praticar idolatria. “Por que você vacila? Para isso você foi escolhido”, teria sido a resposta de Moshé. 

O mestre chassídico Noam Elimelech nota, a respeito da relutância de Aharon, que a vergonha é parte essencial de uma pessoa e que uma pessoa que sente vergonha peca com menos facilidade. “Seja humilde e reconheça seus erros publicamente. Isso inspirará os outros ao teu redor a praticar tshuvá também.” A resposta de Moshé, nessa interpretação chassídica, indica que foi a capacidade de Aharon de questionar suas ações e reconhecer seus erros que justificaram sua escolha para ser o sumo-sacerdote. 

Vivemos em tempos conturbados e complexos, em que muitos líderes se veem e são vistos como semi-deuses, cujas ações se auto-justificam e não devem ser questionadas. Imbuídos de tanto poder, eles se aproximam do paradigma estabelecido por Nadav e Avihu, deslegitimando sua liderança pela prática da arrogância, da presunção, da ambição e do desejo. Na crise pela qual estamos passando, precisamos e merecemos que nossos líderes adotem outros paradigmas para o exercício do seu poder: como seres humanos, pessoas no exercício da autoridade não são perfeitas, mas esperamos que elas aprendam com o exemplo de Aharón, que soube reconhecer seus erros e agir para repará-los, sendo reconhecido pela nossa tradição como aquele que “amava a paz e a buscava”.

Shabat Shalom

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Dvar Torá: Vamos sair dessa! (CIP)

Viktor Frankl foi um neurologista e psiquiatra judeu, sobrevivente da Shoá, famoso por ter desenvolvido o conceito da busca humana pelo sentido em sua obra “Em Busca do Sentido”, publicada logo depois do final da 2a Guerra. Diferente de outros psicólogos e psiquiatras, que identificavam a busca pelo poder ou pelo prazer como a motivação humana básica, de acordo com Frankl, é a busca por significado em nossas vidas que nos motiva: alguns encontram sentido nas suas vidas profissionais; outros na dedicação à família ou à arte ou ao esporte; há quem o encontre na relação com Deus ou na trabalho voluntário e na filantropia. Eu acho que todos nós conseguimos nos enxergar nessa busca permanente pelo significado, que não é estático ao longo da vida e vai mudando conforme vamos crescendo, ganhando novas responsabilidades e competências — e de alguma forma, eu acho que o nosso objetivo, de rabinos e de chazanim, é ser parceiros de vocês nessa busca. Chazanim com sua música, rabinos com suas palavras, nós queremos facilitar pra cada um de vocês a busca pelo significado.

Neste Pessach tão diferente de todos os outros Pessachim passados, é natural que tentemos encontrar na nossa tradição um significado para o que estamos vivendo. Como a Festa da Liberdade nos ajuda a encontrar sentido nesta nossa quarentena? Na quarta-feira à noite, tivemos um seder comunitário online, com a participação de mais de 600 famílias. O Avi e eu conduzimos a maior parte do sêder, mas toda a equipe litúrgica da CIP participou e era possível identificar como todos nós, cada um à sua maneira, estávamos tentando dar significado ao que estamos vivendo.

O rabino Michel, por exemplo, falou da esperança que temos de que o profeta Eliahu nos visite na noite do sêder para anunciar a chegada da era messiância e da visão judaica liberal de que este novo tempo não será marcado pela visita de uma pessoa, mas será o resultado de um esforço coletivo para o qual cada um de nós tem que se engajar. Ele falou sobre como isso implica “sairmos da nossa zona de conforto e assumir total responsabilidade pelos caminhos da humanidade” e que “[a]brir a porta na noite do seder pode representar uma opção simbólica pela construção de um mundo diferente.” A pergunta implícita nos comentários do rabino Michel é “Qual papel cada um de nós é chamado a desempenhar para garantir que a visita de Eliahu haNavi às nossas casas ante-ontem à noite não tenha sido em vão?”

O rabino Ruben explicou e o Avi cantou o Há Lachmá Aniá, uma das primeiras músicas do seder, que fala da matsá como o pão da pobreza e da aflição e que nos convida a incluir em nosso seder quem está realmente em situação de vulnerabilidade, precisando de acolhimento. O rabino Ruben desejou que possamos deixar de lado as visões dicotômicas entre pobres e ricos, entre vulneráveis e fortes, entre jovens e idosos, entre sadios e doentes e que descubramos “que todos precisamos um dos outros e que somente com a solidariedade verdadeira, abrindo as portas das nossas casas, das nossas mentes, de nossos corações e de nossas mãos é que vamos conseguir sair da terra da escravidão para a terra da liberdade.”

O Alê Edelstein escolheu cantar e comentar uma passagem da hagadá que diz que “de geração em geração, cada pessoa precisa sentir-se como se ela mesma tivesse sido pessoalmente libertada de Mitsrayim”, e desejou que esta seja uma chave para o desenvolvimento de empatia, para que possamos nos colocar verdadeiramente no lugar do outro e sairmos juntos do nosso Egito.

O Alê Schinazi comentou sobre o paralelo entre as incertezas que vivenciamos hoje e aquelas vividas pelo povo de Israel na saída de Mitsrayim e nos 40 anos seguintes no deserto, sem saber exatamente o que aguardar, até quando esperar e quando seria a hora de avançar.

Estamos todos, do lado de cá e do lado de lá dessa telinha, tentando encontrar significados nessa crise. Pessach é também a festa da Primavera na terra de Israel e lembramos dela durante o seder comendo o carpás depois de mergulhá-lo na água com sal, símbolo das lágrimas dos nossos antepassados. Essa dimensão agridoce, da mistura da alegria da redenção com a dor da opressão está representada também no sanduíche de Hilel, que junta o doce do charosset com o amargo do maror. Yehudá Amichai tava certo, “uma pessoa precisa amar e odiar ao mesmo tempo, rir e chorar com os mesmos olhos, atirar pedras e juntá-las com as mesmas mãos. Fazer amor na guerra e guerra no amor. E odiar e perdoar e lembrar e esquecer, e organizar e confundir e comer e digerir o que a história leva anos e anos para fazer.” 

Essa crise — e eu não quero, de jeito nenhum, minimizar a sua extensão — não é só a água com sal, ela também tem o seu lado primavera, tem um tanto de charosset pra misturar com o maror. Ela nos oferece a capacidade única de nos reinventarmos, de nascermos de novo com a sabedoria que acumulamos e  de construirmos novas estruturas que reflitam melhor quem queremos ser daqui pra frente.

O episódio do Bezerro de Ouro, em que o povo acreditou que um objeto poderia ser Deus, foi, provavelmente, a crise mais séria no relacionamento entre Deus e o povo de Israel até então.  Naquele episódio, Moshé tinha quebrado as Tábuas da Lei, que tinham sido preparadas e inscritas por iniciativa única e exclusiva de Deus. Na parashá que leremos amanhã, Deus pede a Moshé que prepare um segundo conjunto de tábuas sobre os quais Deus escreverá os mandamentos. O rabino Art Green sugere que Deus reconhece que as primeiras tábuas, em cuja preparação apenas o Divino tinha participado, não ofereciam espaço para a manifestação humana e, por isso, estavam fadadas ao fracasso. Ao pedir a ajuda de Moshé para as segundas tábuas, Deus Se transforma e possibilita um pacto com Israel muito mais estável e sólido.

Agora, somos nós quem temos a oportunidade de nos transformarmos, de reconstruir nossas sociedades como comunidades muito mais estáveis e sólidas, com empatia, com preocupação com a inclusão — especialmente a dos mais vulneráveis —, em que cada um de nós possa escutar seu chamado para construir aqui nesse mundo a utopia representada pela era messiânica. O momento é agora para começarmos a sonhar, a imaginar, a planejar como serão nossas vidas do lado de lá desta longa travessia.

Nós mergulhamos o carpás na água com sal para nos lembrarmos das lágrimas dos nossos antepassados. Um dos comentários que eu mais gosto sugere que olhemos a questão por outro ponto de vista e pergunta: “porque a água com sal deve ser tocada pelo carpás, símbolo da primavera?” e ele mesmo responde: “para nos lembrar que chega a hora em que paramos de chorar.” Essa hora vai chegar e não vai demorar muito.

Shabat Shalom!