sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Dvar Torá: Encontrando razão naquele de quem discordamos (CIP)


Dá para acreditar que já estamos naquela época do ano de novo?

Parece que foi ontem que saímos do Teatro Artur Rubinstein, onde tínhamos feito o primeiro serviço de Iom Kipur conjunto Hebraica-CIP, a primeira vez que nossos serviços das Grandes Festas eram transmitidos online, a primeira vez que passávamos Iom Kipur sem a comunidade presente fisicamente, sem aquele mar de talitot no final da Neilá.

Parece que foi ontem, mas já faz quase um ano — viramos as doze folhinhas do calendário judaico e estamos às vésperas das Grandes Festas de novo.

Desta vez, nem tudo será novidade; nem tudo será a primeira vez na história — e, ainda assim, teremos novos dilemas a resolver. O primeiro dia de Rosh haShaná, neste ano, cai no 7 de setembro, feriado nacional e data prevista para manifestações ideologicamente antagônicas, uma no centro da cidade e outra na avenida Paulista. Todos os dias, nossos jornais estampam notícias sobre possível violência de lado a lado e a preocupação do que pode acontecer casos estes dois grupos se encontrem. 

Há um texto lindo de Rav Nachman de Brestlav, um mestre chassídico que viveu na Polônia no final do Século 18, no qual ele diz que a divergência é ingrediente fundamental para a criatividade [1]. Na sua leitura, seria a divergência que criaria o espaço vazio no qual novas criações pudessem ocorrer, da mesma forma que a retração Divina criou o espaço vazio no qual a criação do mundo pôde ocorrer, de acordo com o mito luriânico da Criação.

No encontro de sectarismos que vivemos hoje, no entanto, a divergência dá origem à negação da legitimidade de outra posição que não a sua e ao desejo de silenciar esta outra forma de ler a realidade. Cada um de nós (e, sim, a questão do sectarismo e da demonização do outro atinge cada um de nós) escuta este comentário e comenta “mas você não pode comparar a minha postura com a que o outro lado tem, eles representam a negação de todos os valores nos quais acredito!”

A parashá desta semana começa conclamando toda a comunidade dos israelitas. De uma forma paradoxal, afirma logo nos seus primeiros versos: “vocês estão aqui todos hoje perante ה׳ seu Deus, os líderes das tribos, seus anciões, oficiais, todo homem de Israel, suas crianças e mulheres e seu estrangeiro, do cortador de lenha ao carregador de água.” [2] Claramente a comunidade toda, mas por que a imagem do cortador de lenha ao carregador de água?!

Eu gosto da explicação proposta pelo rabino Bradley Shavit Artson [3]:  para quem o cortador de lenha indica alguém sem maior respeito pela dignidade daqueles com quem se relaciona, que vê em seu oponente alguém a ser destruído, com argumentos ou com uso da força, se for necessário. Os carregadores de água, por outro lado, simbolizariam pessoas com a capacidade de enxergar em todas as opiniões mananciais de inspiração, potencial para que aprendamos algo dela. Em nossos equilíbrios internos, todos nós temos um pouco de cortadores de lenha e um pouco de carregadores de água. Que aspecto nos permitimos salientar em cada momento? Isso depende muito do contexto social no qual vivemos… em momentos polarizados como estamos vivendo hoje, o lado cortadores de lenha acaba ganhando força e os conflitos ficam mais acirrados. Cabe a cada um de nós, então, criar as condições para mudar este contexto e permitir que nos comportemos mais como carregadores de água. Que nos permitamos aprender algo da manifestação à qual não iríamos mesmo se ela não acontecesse em Rosh haShaná; identificar algo positivo na conduta da qual discordamos fundamentalmente. Só assim, como preconizado por Rav Nachman, a divergência dará espaço à criatividade.

O curioso é que a divergência destas manifestações se dá, ao menos no nível das narrativas, sob o mote de uma causa comum: a defesa da democracia brasileira. Nossa parashá termina com um um curioso desafio: “veja, eu te ofereço hoje a vida e o bom, a morte e o ruim (…) escolha a vida.” [4] Eu não conheço ninguém que, dadas estas opções, decidisse optar pela morte e pelo ruim e, mesmo assim, as pessoas fazem opções distintas todos os dias. O que significa escolher a vida ou defender a democracia pode ser radicalmente diferente, dependendo do nosso interlocutor. Assumir que decisões distintas das nossas impliquem necessariamente um conjunto de valores deturpados ignora a possibilidade de que estas decisões simplesmente reflitam distintas leituras do que seja vida, bom, morte e ruim ou do que signifique defender a democracia brasileira e o direito a uma sociedade na qual diferentes concepções possam conviver. 

Estamos na reta final para Rosh haShaná, o dia em que começamos a nos confrontar com nossa própria mortalidade e com as consequências dos nossos atos. Que aproveitemos os próximos dias para exercitar nosso lado carregador de água e nossa capacidade de discordar com civilidade e respeito e de aprender até mesmo de quem discordamos.

Shabat Shalom e Shaná Tová!



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