sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tetzei (Templo Beth-El, São Paulo)

A piada é velha e até batida, mas parece refletir um sentimento de boa parte da comunidade judaica paulista.
Após um naufrágio, Moishe vai parar sozinho em uma ilha deserta. Depois de três anos, finalmente, ele é encontrado por um grupo de resgate. Seu amigo Avrum fica impressionado com a infra-estrutura que Moishe tinha construído sozinho. Desalinização da água do mar, irrigação da plantação, uma residência de quatro cômodos, incluindo um banheiro com água corrente e tratamento de esgoto, captação de energia solar. Moishe realmente vivia com conforto nesta ilha deserta! Avrum só não entendeu os dois edifícios separados da residência, ambos parecendo uma sinagoga. “Pra que é aquilo?”, ele perguntou.
“Ora Avrum, aquelas são as duas sinagogas da ilha”.
“E se você está aqui sozinho, pra que precisa de duas sinagogas?”
“Avrum.... é simples: naquela eu vou rezar três vezes por dia. E naquela eu não piso de forma alguma!”

Sendo aluno de um seminário rabínico liberal, eu já perdi a conta do número de vezes em que escutei reações similares à que Moishe teve em relação à segunda sinagoga na ilha. A mais recente delas ainda está marcada na memória:
Fazia apenas algumas semanas que eu tinha começado meus programa na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde estudei no primeiro semestre desta ano, como parte do programa de formação rabínica que eu curso em Boston. Eu tinha ido à secretaria da universidade, tentar pagar minha mensalidade. Lá encontrei outro brasileiro na fila, também com kipá na cabeça, e não demorou para começarmos uma conversa. Tudo ia muito bem, até eu lhe contar que meus estudos em Israel eram parte do meu programa em um seminário rabínico liberal.
Pronto.... terminaram-se as amenidades e meu interlocutor logo lançou um “não leve a mal, mas eu sempre quis entender quem autorizou os reformistas a adotarem mudanças na forma judaica de ser. Afinal de contas, está escrito na Torá: “Você não deve adicionar nada nem tirar nada do que eu te comando, mas apenas manter os mandamentos de Adonai, seu Deus, que eu te ordeno.” (Deut 4:2)
Em um aspecto eu preciso concordar que ele tinha razão: é isso que a Torá nos ordena na parashá de Va’etchanan, que nós lemos nas sinagogas há algumas semanas. No entanto, depois de cinco anos no seminário rabínico, está claro para mim que a questão é bem mais complicada do que a forma como este colega brasileiro a apresentava.
Eu tentei argumentar que diferentes interpretações não são um fenômeno recente no Judaísmo: pegue por exemplo a questão das comidas permitidas em Pesach, qual é o certo – fazer como os ashkenazim e proibir o arroz ou fazer como os sefaradim e permiti-lo? Meu colega brasileiro, no entanto, não abria mão de sua concepção de um judaísmo monolítico, em que as respostas são absolutas e não existe espaço para a divergência ou para o pluralismo.
Do ponto de vista histórico, nada podia ser mais diferente da realidade. O judaísmo que praticamos hoje, resultado do projeto rabínico que seguiu a destruição do segundo templo, foi refinado ao longo dos séculos através dos debates entre diversas seitas judaicas. O curioso é que nestas disputas eram os rabinos que defendiam a possibilidade de interpretação do texto, a construção de uma parceria na qual Deus nos dá a Torá, mas nós temos autonomia para decidir como lê-la. Não deixa de ser irônico que hoje, no debate com o judaísmo liberal, esta possibilidade de interpretação do texto seja negada justamente em defesa do judaísmo rabínico.
Parênteses: toda generalização é por definição injusta. Intransigência e falta de abertura a pontos de vista diferentes são encontrados em toda parte, inclusive mundo judaico – eles não são exclusividade da ortodoxia. Da mesma forma, eu sou às vezes surpreendido por inesperada flexibilidade e verdadeira curiosidade pelos meus pontos de vista, vindos de segmentos dos quais eu não esperava tal abertura. Só pra dar um exemplo que sirva de contraponto a este colega da Universidade Hebraica, eu queria citar o professor de sofrut, a arte milenar da caligrafia judaica, com quem a minha esposa estudou em Jerusalém. Judeu chasídico, daqueles de barbas longas e capotão preto, ele não se nega a dar aula para mulheres – lhes ensina as leis sobre quais textos são permitidos e quais são proibidos para mulheres calígrafas e confia no bom senso e julgamento de suas alunas para tomares suas próprias decisões. Como eu disse, exemplo de que ortodoxia judaica não é sinônimo de intolerância. Fim do parentêses.
Onde estaríamos sem a possibilidade de interpretar o que está escrito na Torá? Será que nossa vida teria algo a ver com a o que conhecemos hoje como uma vida judaica? O autor A. J. Jacobs experimentou passar um ano vivendo estritamente de acordo com as regras da Bíblia, interpretadas literalmente. O resultado é detalhado no livro “Um ano de vida bíblica” em que ele explica como teve que lidar com conceitos tais como “olho por olho, dente por dente”, ou as leis sobre os sacrifícios animais. A verdade é que a vida que ele levou neste ano lembra muito pouco a vida judaica que conhecemos hoje exatamente por que os rabinos nos permitiram interpretar radicalmente o que estava escrito na Bíblia!
Nossa parashá desta semana traz um exemplo desta interpretação radical. No capítulo 21 de Deuteronômio, encontramos a seguinte passagem, bastante gráfica:
Se uma pessoa tiver um filho rebelde e desobediente, que não respeita seu pai ou sua mãe e não os obedece mesmo após ser punido, seus pais devem trazê-lo aos anciões da cidade, no lugar público da comunidade. Eles devem dizer aos anciões, “Este nosso filho é rebelde e desobediente; ele não nos respeita. Ele é um glutão e um alcoólatra.” Em seguida, as pessoas da cidade devem apedrejá-lo até a morte. Desta forma, você removerá o mal do seu meio, e todos as pessoas em Israel escutarão e terão medo (Deut. 21:18-21)
Eu não sei quanto a vocês, mas esta passagem me dá calafrios toda vez que eu a leio. Especialmente quando os jornais estão repletos de comentários sobre a condenação da iraniana Sakineh Mohamadi à morte por apedrejamento devido a um suposto caso extra-conjugal, é difícil para mim acreditar que encontramos uma lei semelhante no livro que chamamos “nossa árvore da vida.” E no entanto, lá está a tal lei.
A boa notícia é que nós não somos a primeira geração de judeus incomodados com este texto. A Mishná e a Tosefta, dois dos primeiros textos escritos pelos rabinos em Israel ao redor do ano 200 da Era Comum, reinterpretam este texto radicalmente.
A Mishná, em um estilo bastante comum na literatura rabínica, estabelece tantos requisitos técnicos para aplicação da lei que, na prática, a inviabiliza. Entre os muito requisitos, estão o filho tem ser homem, estar em uma faixa etária muito específica, ter manifestado sua gula roubando comida de seus pais e comendo em outro local, e seus pais não serem cegos, surdos, mancos ou mudos. Além disso, seu pai e sua mãe tem que concordar com a punição. (M Sanhedrin cap. 8)
A intenção é clara: nunca tantas condições serão satisfeitas simultaneamente; e nunca um filho será apedrejado por ser rebelde e desobediente.
A Tosefta, escrita mais ou menos na mesma época que Mishná, ao redor do ano 200, é ainda mais radical na sua leitura deste trecho da Torá. Olha só, e aqui eu cito diretamente da Tosefta:
Nunca houve e nunca haverá um filho rebelde e desobediente. Então por que foi escrito? Para ensinar: interprete e receba a recompensa! (T Sanhedrin 11:6)
Eu sinceramente não posso imaginar uma forma mais clara através da qual os rabinos nos tivessem instruído que a Torá não é para ser lida de uma forma literal! A forma como a Torá se transforma em nossa árvore da vida é através do nosso engajamento com o texto – adotando-o não como um monólogo no qual Deus nos dá instruções precisas de como agir, mas como um diálogo iniciado por Deus, muitas vezes através de afirmações provocativas, mas no qual nós também temos o direito e o dever de participar. Todo provocador, e eu tenho que confessar que sou um, só tem prazer quando nosso parceiro na discussão reage às nossas provocações. Não tem graça nenhuma quando nossas provocações não levam a um aprofundamento do debate. Esta é a mensagem que os rabinos nos mandaram 1800 anos atrás e da qual tantas vezes nos esquecemos.
Em menos de 3 semanas, nós estaremos celebrando as Grandes Festas. Eu te convido para, neste tempo que nos resta até o começo do novo ano, refletir sobre as formas como você tem se engajado neste diálogo com Deus através das tradições judaicas e o que você gostaria de mudar para o ano que vem.
Le Shaná tová tikatêvu.
Que cada um de nós tenha seu nome seja inscrito no livro das vidas que valem a pena ser vividas.
Shabat Shalom.

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