E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
sexta-feira, 29 de outubro de 2021
Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)
quinta-feira, 21 de outubro de 2021
A busca permanente pela santidade e por valores, até na comida!
Nos meus estudos rabínicos, tive um professor um pouco sui-generis: era o rabino Stephen M. Passamaneck z”l, que os alunos chamavam carinhosamente de “Dr. P”. Capelão da Polícia de Los Angeles, ele muitas vezes começava a aula colocando seu revólver sobre a mesa da sala, se deliciando com a expressão de choque no rosto de muitos alunos (o meu entre eles). Foi com o “Dr P” que eu aprendi o princípio segundo o qual “a Torá quer dizer o que os Rabinos disseram que a Torá quer dizer.” Do ponto de vista racional, eu sei que ele estava completamente correto e não faltam exemplos de afirmações bíblicas que o Rabinos interpretaram de forma criativa, determinando a leitura que temos delas até hoje. Um dos melhores exemplos dessas prática é com relação ao verso “olho por olho, dente por dente” [1], prática que, os rabinos perceberam, se levada à risca, causaria toda a humanidade a ficar cega e banguela. Em uma longa discussão no Talmud [2], os Rabinos concluíram que o preceito bíblico obviamente fala de uma compensação financeira a ser recebida pela vítima de uma agressão física! De forma semelhante, o preceito de que “não cozinhe o bezerro no leite de sua mãe” [3] foi interpretado pelos Rabinos como a proibição de preparar, comer ou obter benefícios de alimentos preparados com carne e leite (ou seus derivados). Hoje, é até difícil encontrar alguém que, tendo aprendido esta interpretação, consiga ler os versos bíblicos no seu sentido literal.
A parashá desta semana apresenta um desafio para esta leitura com relação à mistura de carne e leite. Três pessoas se aproximam da tenda de Avraham, que corre para pedir que eles parem e sejam recebidos pelo nosso primeiro patriarca. Os visitantes param, lavam seus pés, tomam água, comem pão e encontram uma sombra onde descansar da viagem. Avraham não ficou satisfeito e lhes trouxe um prato à base de carne, além de manteiga e leite [4]. Não seria difícil explicar a clara oposição entre as comidas que Avraham oferece aos seus visitantes e as regras alimentares da Cashrut, visto que essas instruções ainda não haviam sido formuladas. Nossos Rabinos, no entanto, se sentiram profundamente incomodados vendo o primeiro patriarca misturando carne e leite e buscaram formas de interpretar o texto que eliminassem esta possibilidade: Maimônides (1135-1204) entendeu que toda esta passagem não passou de um sonho profético de Avraham e que, portanto, não houve qualquer tipo de consumo de comidas não casher; um midrash sugere que Avraham trouxe opções de carne e de leite para que seus convidados tivessem escolha, mas que ele ficou observando para garantir que ninguém misturasse a carne e o leite; outros comentaristas afirmam que os visitantes tomaram o leite primeiro e lavaram suas bocas antes de consumir a carne, assim como prescreve a lei judaica.
Me parece que mais razoável do que estes malabarismos interpretativos, seria reconhecer que as práticas judaicas, incluindo as leis de Cashrut, são construções históricas que refletem uma busca constante e progressiva pela kedushá, a santidade com a qual procuramos encher as nossas vidas. A forma como a busca pela kedushá na alimentação se dava na época de Avraham não era a mesma da época dos profetas, muito menos no período do Segundo Templo ou nos nossos dias.
Hoje, esta busca pela santidade é expressa em uma conduta guiada por valores, que não são necessariamente os mesmos para todas as pessoas. Para muita gente, ligar suas práticas alimentares à tradição judaica e ao que faziam seus antepassados lhes confere um profundo senso de conexão; para outras pessoas, faz mais sentido buscar práticas contemporâneas como o vegetarianismo, seguir uma dieta vegana ou consumir exclusivamente produtos orgânicos. Práticas distintas, mas todas buscando refletir valores (ou santidade!) através da alimentação.
Que cada um da sua forma, consigamos todos encher nossas vidas de santidade, nas práticas cotidianas e na forma como escolhemos nos alimentar!
Shabat Shalom
[1] Ex. 21:24, Lev. 24:20
[2] Talmud Bavli Bava Kama 83b-84a
[3] Ex. 23:19, Ex. 34:26, Deut. 14:21
[4] Gen. 18:1-8
sexta-feira, 15 de outubro de 2021
Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]
quinta-feira, 30 de setembro de 2021
Guardiões de toda vida
Cada profissão tem seu conjunto de expressões técnicas que ajudam a definir quem detém aquele conhecimento profissional e quem não. Algumas vezes, por trás de expressões complicadas estão conceitos igualmente complexos — por não ser médico, eu nunca consegui entender direito o que é acalasia ou disdiadococinesia; outras vezes, no entanto, estas expressões técnicas são muito mais complicadas do que os conceitos que elas representam. Tomemos um exemplo da economia: por trás da nebulosa expressão “utilidade marginal decrescente” se esconde o conhecido fenômeno que, quanto mais temos de uma coisa, menos prazer tiramos de ganhar uma nova unidade da mesma coisa. É um conceito sabido que se aplica a vários aspectos das nossas vidas: imagine a alegria de ganhar o novo biquíni que você tanto quer; agora, imagine ganhar o 21º biquini do mesmo modelo! Imagine como, depois de ficar tanto tempo sem poder viajar, anseia por conhecer lugares longínquos e misteriosos; agora, imagine a vontade de dormir na tua própria cama depois de ficar uma longa temporada fora de casa.
O mesmo conceito da “utilidade marginal decrescente” pode ser aplicado ao inverso, significando que nos acostumamos também com coisas ruins e passamos a não nos importarmos tanto quando elas acontecem. Você se lembra do que aconteceu quando chegamos à terrível marca de dez mil mortos por Covid no Brasil? Era postagem no facebook, comentário no Jornal Nacional e inúmeras colunas de articulistas dos jornais. Agora tente se lembrar do que aconteceu quando o número de mortos passou de 580 mil para 590 mil… não aconteceu nada. Nem uma manchete, nem um comentário… Nos acostumamos com o fato de centenas de milhares de pessoas morrerem por esta terrível doença e não nos chocamos mais quando os números confirmam a realidade com a qual já estamos acostumados.
O mesmo vale para outros tipos de mortes. Em 2020, foram assassinadas no Brasil 50.033 pessoas [1], praticamente um a cada 10 minutos. Toda hora, todo dia. Com taxas assim, não é de se espantar que tenhamos perdido a sensibilidade para cada novo assassinato que acontece.
Na parashá desta semana, Bereshit, temos o primeiro assassinato da história [2]. Caim, enciumado pela atenção que Deus havia dado a seu irmão, Abel, o assassina em um ataque de raiva. Quando Deus lhe pergunta: “Onde está Abel, teu irmão”, sua resposta deve nos servir de alerta contra insensibilidade gerada pela sequência de notícias ruins: “Eu não sei. [Por acaso] eu sou o guardião do meu irmão?!”
Em que situações nos consideramos guardiões dos nossos irmãos? Quando sentimos que somos todos co-responsáveis uns pelos outros? A construção de uma sociedade inclusiva e justa parece depender de sentimentos assim, que garantam que o bem estar de todos sejam uma preocupação coletiva. No entanto, nas sociedades urbanas e despersonalizadas em que vivemos, os laços sociais que garantiriam este tipo de conduta estão tão fragilizados que perdemos a capacidade de nos entristecermos a cada dez minutos por mais um assassinato.
E, assim, sem que ninguém se importe, viramos estatística, viramos números, e nos adequamos à regra do “rendimento marginal decrescente”.
Que neste novo ciclo de leitura da Torá possamos quebrar este ciclo vicioso, que possamos nos importar sem ter nossos corações esfacelados pela dor, que nos consideremos guardiões uns dos outros e nos comprometamos a criar a sociedade justa com a qual sonhamos.
Shabat Shalom,
[1] https://bit.ly/2WtNj83
[2] Gen. 4:1-16
sexta-feira, 24 de setembro de 2021
Dvar Torá: Expandido nossa perspectiva da Torá (CIP)
quarta-feira, 15 de setembro de 2021
Dvar Torá: Um conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Iom Kipur 5782 (CIP)
Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!Quantos vão passar, e quantos vão nascer; quem vai viver e quem vai morrer; que viverá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro; quem morrerá pelo fogo e quem pela água; quem pela espada e quem por animais; quem pela fome e quem pela sede; que pelo terremoto e quem pela peste; quem será estrangulado e quem será apedrejado; quem estará em paz e quem será perturbado; quem estará sereno e quem estará perturbado; quem estará tranquilo e quem estará atormentado; quem empobrecerá e quem ficará rico; quem cairá, quem se levantará.Mas tshuvá, tfilá e tzedaká têm o poder de transformar a dureza do decreto.
- porque estávamos preocupados com nossa própria saúde e com a das pessoas que nos são mais importantes e queridas no mundo;
- porque percebemos que haviam sinais de uma iminente crise sanitária global e continuamos vivendo sem tomarmos as precauções ou nos preparamos para lidarmos com suas consequências;
- porque vendo o impacto desigual que a pandemia teve sobre os segmentos mais oprimidos das nossas sociedades, nos demos conta de que precisamos urgentemente fazer Ticún Olam e transformar a estrutura de um mundo que constantemente produz desigualdade e injustiça extremas;
- porque ao assistirmos passivamente a Amazônia e o Pantanal queimarem e fenômenos climáticos radicais acontecerem ao redor do globo, nos perguntamos que mundo estamos deixando para nossos filhos e netos;
- porque vimos democracias serem questionadas em várias partes do planeta, incluindo no nosso cantinho, vislumbramos o retorno a um passado que imaginávamos enterrado.
“todos os votos, proibições, juramentos (…) deste Iom Kipur até o próximo Iom Kipur (…) sejam todos cancelados, de todos nos arrependemos, sejam abandonados, interrompidos, anulados e invalidados, não ocorridos e inexistentes. Que os votos não sejam votos, que os juramentos não sejam válidos.”
Se mesmo as palavras do dia-a-dia são importantes, então nossas palavras de promessa e confissão deveriam ser ainda mais importantes. Como, então, podemos declarar nossas promessas nulas e sem efeito em Iom Kipur? Como pode ser que façamos algo tão essencialmente "não-judaico" em um dos dias mais sagrados do ano?Talvez a resposta esteja no que acontece quando retiramos nossas palavras. O objetivo de retirar as palavras pode não ser para anular seu impacto, mas para revelar o silêncio que permanece quando elas se vão. Vladimir Horowitz, o grande pianista, certa vez explicou seu gênio musical dizendo: “Eu não toco as notas melhor do que muitos pianistas, mas as pausas entre as notas - ah! É aí que reside a grande arte."Parece que Deus também entendeu a importância das pausas. Se Deus criou o mundo com palavras, o Shabat deve ter sido o momento para Deus permanecer em silêncio. No Shabat, Deus simplesmente parou de falar para refletir sobre o que o Divino havia dito e, portanto, feito. Deus entendeu o poder de refletir sobre nossas vidas de um lugar de silêncio. Os judeus conhecem o poder criativo das palavras, mas também entendemos que o silêncio é um espaço sagrado. [2]
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Músicas que nos renovam e que nos fazem sentir
Não sei se é só comigo, mas músicas e poemas têm o poder de me transportar no tempo e me fazer sentir emoções de outras épocas. Algumas canções do começo dos anos 80, por exemplo, me transportam rapidamente para o banco de trás do carro dos meus pais, no começo da adolescência, com aquele misto de sentimentos que caracterizam a idade. Choref 73 (Inverno de 73) traz de volta as lágrimas que chorei no final dos anos 90, quando eu morava em Israel e o país buscava se recuperar do trauma do assassinato de Itschak Rabin z”l. Há músicas que instigam sentimentos de revolta, animação e ativismo político. Há músicas que despertam nosso romantismo, e outras que nos ajudam a remendar o coração partido.
Há momentos em que buscamos na música a espiritualidade do agora, o que algumas vezes se chama de “mindfulness”, a capacidade de estarmos presentes no momento, sem nos preocuparmos com a próxima reunião ou com os toques insistentes do celular avisando novas mensagens que não param de chegar. A mim, ajudam nesse momento melodias rítmicas e repetitivas, quase mantras, repetidas inúmeras vezes. Essas músicas parecem ter a chave para destravar partes da espiritualidade que permanecem inacessíveis a maior parte do tempo.
A tradição judaica também tem uma relação forte com a musicalidade e com a poesia. Para algumas pessoas, mudar uma melodia sinagogal é quase cometer uma heresia, um desrespeito à prática comunitária. Para eles, há um conforto espiritual que vem da rotina, do fato de estarmos acostumados às mesmas rezas, aos mesmos textos e às mesmas melodias. Para outros, a mudança constante é necessária para que a espiritualidade não se torne mecânica, para que valorizemos a experiência daquele momento e possamos nos libertar de ciclos passados.
Em Rosh haShaná e em Iom Kipur usamos a liturgia -- texto e música -- para nos transportarmos no tempo, para outras comemorações das mesmas festas, nos braços dos nossos pais e avós, com outros rabinos e outros chazanim, ao mesmo tempo em que construímos nossas experiência do agora, com nossos pais e nossos filhos, nossos avós e nossos netos.
Nas Grandes Festas, também usamos a reza para transportar Deus no tempo e no espaço, para um dos momentos de maior intimidade de toda a Torá, quando Deus instruiu Moshé a Lhe cantar os Treze Atributos da Compaixão Divina [1]. É uma tentativa de levar Deus a recordar-se daquele momento de intimidade e exercer Sua compaixão também com relação aos nossos atos. Na parashá desta semana, por outro lado, Deus instrui Moshé a anotar um poema e ensiná-lo aos Israelitas para que sirva de testemunha contra o povo de Israel [2]. Em uma mesma semana, músicas nos ajudam a despertar a compaixão Divina e a lidar com a Sua ira.
Esse é o poder da música e da poesia: despertar nossos sentimentos e, através deles, afiar nossa razão. Perceber o subtexto das entrelinhas, manifestar sentimentos que as palavras em prosa não conseguem. Que música, você acha, marcará este 5782 para você?
Shabat Shalom e Shaná Tová!
[1] Ex. 34:6-7a
[2] Deut. 31:19