sábado, 5 de março de 2016

Qual Educação Judaica?

(originalmente publicado no Pinat Brasil)

Há pouco mais de dois anos, o economista Gustavo Ioschpe publicou na sua coluna na revista Veja um artigo em que descrevia seu processo de seleção de escola para seus filhos. O tal artigo se tornou polêmico na comunidade judaica por um parágrafo no qual explicava o porquê de não ter considerado escolas judaicas como alternativas relevantes, apesar de ele e sua esposa serem judeus. Confesso que, na época, eu mesmo usei o tal parágrafo em uma prova para alunos da 3a série do Ensino Médio e me envolvi em um debate com Ioschpe sobre a escolha do veículo para divulgar suas críticas. A verdade, no entanto, é que ao focar em um único parágrafo, as lideranças comunitárias que se dedicam à educação judaica perderam a oportunidade de analisar com mais calma o resto do artigo e a abordagem que propunha para escolha de escola para os nossos filhos. Para mim, a melhor parte do artigo é resumida nestas frases:

“Por isso, minha recomendação principal aos afortunados que podem escolher onde o filho estudará é: prefiram a escola cuja proposta e valores mais se encaixem com aqueles da família. Não existe ‘a melhor’ escola; existe a melhor escola para a demanda daqueles pais. O importante é saber qual o foco principal. É o lado acadêmico? A formação religiosa? É ser bilíngue? É a preparação para a cidadania? O desenvolvimento da criatividade?”[1]

Neste artigo, pretendo dar os primeiros passos para desenvolver uma versão da “abordagem Ioschpe” para educação judaica: um exercício que auxilie as famílias a escolherem o melhor modelo de educação judaica para elas.[2] Assim como Ioschpe, tampouco acredito que exista “o melhor modelo de educação judaica” no abstrato; pelo contrário, acho que cada família tem seus valores e expectativas com relação à educação judaica de seus filhos e o que faz um alternativa ser melhor (ou pior) é sua aderência (ou falta dela) aos valores e expectativas de cada família. A primeira parte do exercício deve ser, portanto, definir o que você espera da educação judaica dos seus filhos e, apenas depois de completada esta tarefa, procurar a solução que mais se aproxime do seu ideal.

Quero também deixar explícita uma hipótese de trabalho: educação judaica não é toda igual. Encontro muita gente que acredita que, pelo menos entre as alternativas ditas “laicas”, “pluralistas” ou “não-ortodoxas”, não existe diferença entre as abordagens de educação judaica. Bastam, no entanto, uma visita e 20 minutos de conversa em qualquer dessas escolas ou tnuot para se dar conta de que esta percepção de uniformidade não se sustenta no confronto com a realidade.

Outras pessoas que conheço colocam seus filhos e filhas em escolas cujas orientações de educação judaica são opostas àquelas em que a família acredita e pratica. “Não tem problema nenhum, ensinamos que em casa nossa prática é diferente da escola”, me dizem alguns deles. No meu caso pessoal, a decisão foi procurar um modelo de educação judaica que refletisse os valores da nossa família, assim não teríamos que “des-ensinar” o que nossos filhos tivessem aprendido na escola. A lista discutida a seguir representa nossa realidade peculiar e não pretende servir de modelo universal.

Visão judaica explicitamente formulada – A definição da visão de qualquer organização implica um profundo processo de análise de quais são suas práticas e valores e, talvez ainda mais importante, que caminhos ela gostaria de trilhar nos próximos anos. Ainda assim, não são raras as instituições de ensino judaicas que acham que clareza em seus posicionamentos serve apenas para afastar as famílias que pensam diferente. Desta forma, tiram das famílias a possibilidade de escolher uma escola cuja visão esteja alinhada com a delas, e tiram dos seus profissionais a capacidade de tomar decisões identificadas com a direção estratégica da escola. Ao perguntar pela visão judaica, separamos as entidades que têm clara direção judaica daquelas que não a têm,  um parâmetro fundamental da nossa escolha;

Celebração da diversidade judaica – Uma famosa passagem talmúdica conta que, depois de duas escolas de pensamento terem passado três anos sem conseguir chegar a um consenso, uma Voz Divina interveio, anunciando: “tanto estas quanto aquelas são as palavras vivas de Deus”[3], um reconhecimento de que a tradição judaica incorpora múltiplas expressões, algumas vezes até antagônicas, como simultaneamente válidas e autênticas. Eu espero uma escola judaica que não apenas “aceite” a diversidade da vida judaica, como também a celebre em todas as suas manifestações. Idealmente, esta diversidade será refletida tanto nos alunos quanto nos seus professores e material didático. Quando visito uma escola judaica ou movimento juvenil, olho os murais para ver se eles incluem manifestações judaicas e se elas trazem múltiplas perspectivas. Eu me preocupo com as imagens que são escolhidas: vidas judaicas em que todos os homens têm barba e usam kipá e nos quais todas as mulheres usam saia e manga comprida não representam a minha realidade (ainda que potencialmente representem a realidade de outras famílias e devam, portanto, estar representadas, desde que não exclusivamente).

Quando o assunto é prática religiosa, fica ainda mais complicado. Como são tratadas as diferenças no papel da mulher entre as diversas correntes judaicas? O que acontece com famílias cujas práticas de kashrut são diferentes daquelas da escola? Quando a escola viaja em estudo do meio ou o movimento juvenil organiza sua machané, cria espaço para alunos com práticas de shabat diferentes da norma social?

Costumo brincar com minha realidade familiar específica: meu avô paterno era um judeu ortodoxo; meu avô materno era um judeu ateu, membro do Bund, o partido secular e socialista judaico da Europa Oriental; e eu sou um rabino liberal. Procuro uma escola para meus filhos em que tanto eu quanto meus dois avós pudéssemos ter estudado, crescido e nos desenvolvido; em que nossas diferenças nos ajudariam a amadurecer do ponto de vista judaico sem ter nossas diferentes perspectivas deslegitimadas.

Dimensões de Identidade Judaica – Em muitas instâncias, a construção da identidade judaica ainda é feita de acordo com aquele comentário que descreve todas as festas judaicas: ‘tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos comer e beber!’ Sem negar os eventos históricos nos quais fomos efetivamente vitimas de perseguições, espero que a educação judaica dos meus filhos também transmita orgulho pelo sucesso da experiência judaica, especialmente nos últimos séculos; que fale do enorme êxito da comunidade judaica brasileira, que desenvolva um senso de responsabilidade em melhorar a sociedade em que vivemos e que desenvolva ações neste sentido.

É fundamental que a educação judaica desenvolva um forte senso de tzedek (justiça) como formulado pelos profetas e que, neste sentido, esteja o tempo todo engajada em construir relacionamentos com o mundo, especialmente com as camadas mais vulneráveis das nossas sociedades. A tradição judaica tem inúmeras ferramentas para esta tarefa, basta que foque nos valores centrais à tradição judaica, não exclusivamente nas suas tradições rituais. Não são raras as vezes que, quando converso com alunos sobre os mandamentos éticos do Judaísmo, eles não conseguem reconhecer estes elementos como judaicos - por que lhes foi ensinado que judaico, judaico mesmo, é acender as velas de Shabat ou jejuar em Iom Kipur. Para mim, este modelo não é aceitável.

Sempre digo que o ensino das festividade judaicas deve englobar uma arco que liga valores a tradições, passando pela narrativa. Não basta focar apenas nos costumes de cada festa ou em sua "historinha" (ou narrativa). Espero que em Pessach, a escola dos meus filhos não ensine apenas o Má Nishtaná ou a história de Moshé, mas fale também sobre Liberdade e sobre quem, ainda hoje, vive em regime semi-escravo; em Rosh haShaná e Iom Kipur, não basta falar sobre o shofar, o jejum ou a criação do mundo, sem encorajar um profundo processo de cheshbon nefesh, a introspecção em que avaliamos nossa ação no ano que termina e decidimos como queremos mudar.

Para mim, educação judaica precisa impactar a forma como vivemos na nossa relação com Deus e com a tradição judaica, mas também na forma como tratamos uns aos outros, a sociedade e o meio-ambiente. Um modelo de educação judaica que não englobe todas estas dimensões, não atende as expectativas que estabeleci para meus filhos.

Currículo e integração[4] – Se acreditamos que as dimensões judaica e laica de nossos filhos devem ser bem integradas, por que aceitaríamos projetos educacionais nos quais os elementos judaicos e laicos raramente conversam? Em que as narrativas das aulas de história judaica e de história geral sejam, freqüentemente, opostas? Pode parecer incrível, mas é isto que ainda encontramos em muitas escolas judaicas... Procuro uma escola para meus filhos na qual a busca por  interdisciplinaridade aconteça o tempo todo, na qual oportunidades de polinização cruzada sejam exploradas: que novas estratégias de leitura desenvolvidas na aulas de Literatura sejam usadas também nas aulas de Tanach; que a modalidade de estudo em hevruta (estudo em pares) seja aproveitada nas aulas de matemática; que o senso de justiça seja constantemente discutido, desenvolvido e aprofundado,  seja nas aulas de Cultura Judaica, seja nas disciplinas de Ciências Humanas.

Não existe escola, sinagoga ou tnuá que atenda a 100% das nossas expectativas como pais; tampouco existe educação judaica que não reflita qualquer viés ideológico e é por isso que a lição de casa dos pais é tão importante. Quanto mais clara for a visão de vida judaica para a qual as famílias querem educar seus filhos, mais fácil será estabelecer prioridades e escolher a entidade parceira para este processo.

Agora é a sua vez. O que é importante para você na educação judaica?








[1]Revista Veja, edição de 19 de fevereiro de 2014. Obtido online de: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/como-escolhi-escola-dos-meus-filhos/ em 5/abril/2015.
[2]Falo aqui em “modelo de educação judaica” para incluir, além das escolas judaicas, a educação judaica propiciada pelas sinagogas e pelos movimentos juvenis.
[3]Talmud da Babilônia Eruvin 13b. A tradução mais comum da expressão “divrei Elohim chaim” é “as palavras vivas de Deus”, mas eu prefiro ler o adjetivo chaim (vivos) como relacionando-se às palavras Divinas.
[4]Diferentemente dos outros tópicos, este se aplica mais a escolas judaicas do que a outras formas de educação judaica.

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