quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Mesmo nossos antepassados erraram!


Mesmo nossos antepassados erraram!


Muitas vezes, quando encontramos uma situação já definida, temos dificuldade em imaginar quais foram os processos que determinaram que a as coisas fossem decididas daquela forma. Por que as pessoas andam nas laterais das ruas e os carros no meio, e não o contrário? Por que comemos salada no começo da refeição, e não começamos pelos pratos quentes para que eles não esfriem? Porque as cores do semáforo são verde, amarelo e vermelho, ao invés de cores que não confundissem as pessoas daltônicas? Quando consideramos verdadeiramente estas perguntas sem desconsiderá-las com um “sempre foi assim”, podemos encontrar respostas que façam sentido à nossa sensibilidade contemporânea e respostas que nos expliquem o processos histórico que determinou que as coisas sejam como são — e muitas vezes essas respostas são distintas!


Por que as leituras da Torá em Rosh haShaná foram tiradas da mesma parashá, Vaierá? Para quem não se lembra, no primeiro dia de Rosh haShaná lemos sobre o nascimento de Itschác e de como, depois de ter seu próprio filho, Sará pede a Avraham que expulse Hagár, juntamente com Ishmael, o filho primogênito de Avraham; no segundo dia, lemos sobre o quase-sacrifício de Itschac, a akedá. Olhando para esses trechos nas páginas do nosso machzor, podemos imaginar que sempre tenha sido assim, que estas leituras tenham sido estabelecidas para Rosh haShaná desde o inícios dos tempos, mas os registros nas fontes judaicas apontam para uma história bastante fluida na definição de quais trechos seriam lidos no começo do ano judaico. A Mishná, por exemplo, aponta para uma passagem diferente, em Levítico, para o primeiro dia de Rosh haShaná e nem indica que poderia haver um segundo dia de comemoração [1]. A Tossefta, escrita mais ou menos na mesma época, por outro lado, menciona que havia um debate sobre qual deveria ser a leitura e aponta que vozes dissidentes liam a passagem do nascimento de Itschác (como fazemos hoje) [2]. É so no Talmud, concluído vários séculos depois que temos referência à tradição de um segundo dia de Rosh haShaná, no qual era lida a passagem da akedá (o mesmo que lemos hoje). Como quase tudo na tradição judaica, vemos que a definição de quais seriam as leituras de Rosh haShaná não foi imediata, decretada pelos Céus, mas o resultado de idas e vindas, de negociações e debates entre sábios em diferentes momentos, e com as práticas se estabelecendo e sendo revisadas ao longo da história.


A compreensão deste processo histórico, no entanto, ajuda pouco para entendermos porque estas passagens são relevantes para o momento religioso de Rosh haShaná. A este respeito, como em quase tudo que envolve processos interpretativos, até hoje o debate persiste. Para a escolha da leitura do primeiro dia há quem aponte, por exemplo, que a passagem sobre o nascimento de Itschác se inicia com Deus se lembrando de Sará [4] e a memória é um dos temas centrais de Rosh haShaná, assim como é a metáfora desta data como o “nascimento do mundo” (iom harát olám) justifica a escolha de uma data em que ocorre o nascimento de um bebê. Além disso, há um entendimento de que Deus revela Seu aspecto misericordioso ao permitir que Avraham e Sará se tornem pais em suas velhices e, ao ler este trecho, buscamos relembrar o Divino desta história, na esperança de que recebamos a mesma generosidade em nosso próprio julgamento. 


Quanto ao segundo dia, as explicações mais comuns relacionam a leitura da Akedá ao toque do shofar através do carneiro (um dos animais cujos chifres podem ser usados como shofarot) que Avraham sacrifica ao final do episódio. Outra abordagem relaciona a leitura à ideia de Z’chut Avot, um conceito segundo o qual, como não temos méritos suficientes que justifiquem nossa Salvação, apelamos a Deus que reconheça as qualidades de nossos antepassados, como Avraham, que esteve disposto a sacrificar seu próprio filho em devoção a Deus.


Para mim, no entanto, essas abordagens falham ao não reconhecer que tanto Avraham quanto Sará tiveram condutas, no mínimo, questionáveis neste dois episódios. De seu lado, Sará se deixou tomar pelo ciúmes ao exigir que seu marido expulsasse Hagár junto com Ishmael, seu filho mais velho. Quanto a Avraham, não apenas consentiu com o pedido de Sará como também aceitou a ordem Divina para sacrificar seu filho mais novo, Itschác. Na minha opinião, nossos rabinos escolheram estas duas leituras para os dias de Rosh haShaná porque reconheciam que tanto Sará quanto Avraham tinham errado em suas condutas e precisavam fazer t’shuvá pelos seus erros. Ao demonstrarem à comunidade reunida na sinagoga que até mesmo os fundadores do povo judeu tinham sua cota de erros sobre os quais refletir em Rosh haShaná, então nós também podemos sair da ilusão de que tivemos comportamento perfeito no ano que terminou e reconhecer as situações em que não nos orgulhamos da forma como agimos. Assim começa Iom Kipur, a comunidade nos dando licença para rezarmos na companhia de transgressores; assim, também, eu acredito, foram escolhidas as leituras da Torá de Rosh haShaná. 


Ao aceitarmos a premissa básica de que mesmos nossos antepassados de maior reputação não eram perfeitos, aceitamos nossa falibilidade, deixamos cair a máscara de que não temos nada pelo qual fazer t’shuvá e podemos nos engajar verdadeiramente no processo de cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma.


Que individual e coletivamente possamos todos reconhecer a aprender dos nossos erros, tomar as ações corretivas com relação às suas implicações e nos transformarmos para não cometer os mesmos erros.


Shaná Tová! Que seja um ano muito doce, cheio de parcerias e encontros, muito amor e saúde!


Rabino Rogério




[1] Mishna Meguila 3:6

[2] Tossefta Meguilá 3:3

[3] Talmud Bavli Meguila 31a

[4] Gen. 21:1

 


quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Faz sentido perguntar “quantas esposas é demais”?!


Quando eu era criança, preciso reconhecer, eu cantava “Atirei o Pau no Gato” sem pensar muito no bem estar dos animais. Quem sabe, se o pau fosse atirado contra um cachorro, não contra um gato, eu teria mais empatia pela vítima da ação, mas como nunca fui lá muito fã dos felinos, nem me dava conta da violência da ação. Quando eu já era adolescente, comecei a escutar versões da música que, ao se proporem um papel educativo, trocavam a letra para dizer “não atire o pau no gato porque isso não se faz, o gatinho é nosso amigo, não devemos maltratar os animais.” Ao mesmo tempo em que cantávamos isso de forma ridicularizada, fazendo pouco caso da preocupação em trocar a letra de uma música infantil para não incentivar a violência contra os animais, eu me dava conta, pela primeira vez, que a letra original era, de fato, violenta e encorajava comportamentos indesejados.

Ao olharmos para o passado, é relativamente comum percebermos comportamentos inapropriados que aceitávamos como naturais e que hoje não são mais aceitáveis. Entramos no mês de Elul, o último do calendário judaico, no qual damos ênfase ao processo de Cheshbón haNéfesh, a contabilidade da alma, no qual olhamos com atenção para nossa ação no ano que passou, identificando onde fomos a pessoa que gostaríamos e onde nos afastamos deste ideal. É também uma oportunidade para expandirmos o olhar e percebermos quais condutas inadequadas continuam naturalizadas e que devem ser reavaliadas.

Na parashá desta semana, Shoftim, o povo recebe autorização para ter um rei depois de entrarem na Terra Prometida. O texto deixa claro que este líder seria um homem, ao mesmo tempo em que estabelece limites para o poder do monarca: ele deve ser israelita, não poderá acumular riqueza excessiva em outro, prata ou cavalos, não mandará seu povo de volta ao Egito e não terá muitas esposas. O texto não explicita quanto seria “muitas” mas parece haver um consenso de que até dezoito esposas seria aceitável; acima desse número, já seria um exagero.

Por muito tempo, os comentaristas desta passagem (homens, todos eles) [1] debateram se o número dezoito era exagerado ou não, se ele poderia ser ultrapassado se todas as mulheres fossem “boas”, se o limite se aplicaria também a uma pessoa que não fosse rei. Ninguém perguntou, no entanto, porque as esposas estavam listadas juntamente às demais riquezas que o rei podia acumular, ainda que com limites. Talvez a maior inovação que o judaísmo trouxe ao mundo foi a ideia de que todos os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, são dotados de dignidade inalienável. Será que as instruções ao rei que tratam suas esposas como propriedade refletem este profundo valor judaico?

Podemos encontrar exemplos semelhantes, nos quais as mulheres não foram tratadas com a devida dignidade em outras histórias da tradição judaica (o livro de Ester ou a história do rei Shlomô e suas 700 esposas, por exemplo) e de outras culturas, mas é chegado o momento de revisitarmos as condutas implicitamente aceitas nessas narrativas e apontarmos para o que não estamos mais dispostos a aceitar. Nos últimos anos, o movimento #metoo tem jogado luz para a forma como homens poderosos abusam de suas posições sociais e profissionais para praticar assédio e violência, práticas sobre as quais muitos sabiam mas que consideravam como “parte do jogo”.

Parashat Shoftim trata também da estruturação de um sistema judicial que torne a busca pela justiça uma característica central da sociedade hebreia. A este respeito, o rabino Eliezer Berkovits escreveu: “Buscar justiça é aliviar os oprimidos. Mas como os oprimidos serão aliviados, se não for julgando o opressor e esmagando sua capacidade de oprimir?! (…) A tolerância à injustiça é a tolerância ao sofrimento humano. Uma vez que os orgulhosos e poderosos que infligem o sofrimento geralmente não cedem à persuasão moral, a responsabilidade pelo sofredor exige que a justiça seja feita para que a opressão seja encerrada.” [2]

Que neste shabat, possamos buscar justiça para todos, em particular desafiando os abusos naturalizados dos poderosos e que assim comecemos o processo de nos transformarmos na versão de nós mesmos que queremos ser.

Rabino Rogério


[1] Veja, por exemplo, os comentário de Rashi, Ibn Ezra, Aderet Eliahu para Deut. 17:17.

[2] Conforme citado em Harvey Fields, “A Torah Commentary for Our Times”, vol. 3, p. 140. 

 


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Dvar Torá: Escolhendo ter sempre bençãos (CIP)


Eu tenho uma amiga que se recusava terminantemente a comprar rifas. Ela acreditava que temos um número limitado de eventos de boa sorte na vida e não queria gastar os seus com prêmios de melhor valor. Ela dizia: “e seu eu ganhar?!”, gastei a chance de mudar de vida com um jogo de panelas… 

Talvez isso tenha acontecido comigo. Há algumas semanas eu ganhei, não uma, mas duas vezes na loteria. Na primeira vez, depois de todo o suspense de descobrir que minha aposta tinha sido sorteada, eu abri o aplicativo pra saber quanto eu tinha ganho, sonhando em ter me tornado milionário, para descobrir que o meu prêmio total era a fortuna de R$114,00. Alguns dias depois, eu estava mostrando para alguém essa história e descobri que tinha sido sorteado também no prêmio seguinte. Novos segundos de tensão, até eu descobrir que o segundo prêmio era de imensos R$30,00! Será que eu desperdicei minhas chances de ficar milionário?! Na dúvida, eu continuo jogando, mas só quando o prêmio está acumulado — nesta semana, a Mega Sena está acumulada em R$115 milhões — isso sim, mudaria a vida de qualquer um!

Mas mudaria de que forma? Será que necessariamente boa?! No ano passado, um ganhador de quase R$50 milhões da Mega Sena, que continuava com sua sua vida pacata em Hortolândia foi assassinado por pessoas que queriam seu dinheiro. Não são raras as histórias de pessoas que ficam milionárias da noite para o dia e que, na sequência, perdem o dinheiro em pouco tempo [1]. Há a história do casal americano que torrou US$13 milhões em 15 anos ou do brasileiro que acabou com R$30 milhões em 5 anos. Mas além do risco de perder fácil o dinheiro que chegou fácil, será que  estes milhões trazem a felicidade que as pessoas esperam?

De outro lado, há notícias terríveis que recebemos ao longo da vida, em situações pessoais e profissionais e que, diferentemente do que esperávamos à primeira vista, acabam se tornando bençãos que estavam disfarçadas de maldições. Uma separação amorosa, que parecia que te levaria pro fundo do poço foi o que permitiu que você se descobrisse enquanto indivíduo, que se estruturasse de formas muito mais saudáveis dali pra frente. O mesmo com relações profissionais, uma promoção perdida, uma demissão. Situações que, em um primeiro momento, pareciam muito ruins mas que abriram novas possibilidades que você nem enxergaria se tudo “tivesse dado certo”.

Às vezes, o que parecia uma benção se revela uma maldição; e às vezes, o que parecia uma maldição nos enche de bençãos. Na nossa parashá desta semana, Deus diz ao povo, através de Moshé:


רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃ 

אֶת־הַבְּרָכָה אֲשֶׁר תִּשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם 

אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם׃ 

וְהַקְּלָלָה אִם־לֹא תִשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם

 וְסַרְתֶּם מִן־הַדֶּרֶךְ אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם 

לָלֶכֶת אַחֲרֵי אֱלֹהִים אֲחֵרִים אֲשֶׁר לֹא־יְדַעְתֶּם׃ 

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição:  

bênção, ao escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, que Eu te ordeno hoje;

e maldição, se vocês não escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, se desviando do caminho que Eu te ordeno hoje,

indo atrás de outros deuses que vocês não conhecem. [2]:


Dito assim, até parece fácil reconhecer qual é a benção e qual é a maldição,  e que comportamento ter nos grandes dilemas à nossa frente mas os comentaristas ao longo dos séculos gastaram muita tinta tentando explicar esses três versículos. 

Destes, um dos que eu mais gostei, vindo do mestre Chassídico Tsvi Hirsch de Nadvorna, na Ucrânia, que viveu na segunda metade do século 18. Na sua leitura do trecho “benção, ao escutarem os mandamentos de ה׳, teu Deus”, “escutar” deve ser entendido como “se integrar”, “se tornar um”, estabelecendo um paralelo com uma passagem talmúdica em que uma palavra da mesma raiz ganha até um significado sexual, de se tornar um. Portanto, a passagem deveria ser lida assim:

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição: 

bênção, se vocês unirem seu comportamento ao que vem de Deus, 

tornando o que você dá e o que você recebe um fluxo único; 

maldição se vocês não fizerem isso. 

A forma como recebemos nossas bençãos e maldições determinam o impacto que elas terão nas nossas vida. Um tropeço pode nos ensinar a revisitar nossa arrogância e desenvolver nossa empatia, ou pode nos tornar amargurados e rancorosos. Um grande sucesso, por outro lado, pode fazer com esqueçamos de tudo que ainda precisamos evoluir e de todas as pessoas que nos ajudaram ao longo do caminho e que não receberam ainda o reconhecimento devido, ou pode ser a ferramenta da qual precisávamos para ajudar outros a ter o mesmo sucesso que tivemos.

Na teologia do livro de Deuteronômio, as consequências das nossas ações não são individuais, mas se aplicam a toda a sociedade. Quando, como sociedade, passamos a buscar outros deuses — e aqueles que buscamos hoje em dia não fazem parte do universo teológico, mas se expressam como fama, poder e dinheiro — ou, ainda pior, quando passamos a considerar a nós mesmos como semi-deuses, a Torá nos alerta que as consequências serão as terríveis, as piores maldições possíveis. O que parecia um evento positivo se revelará como um desastre, perderemos nossa humanidade na busca do conforto, afogados pelas novas tecnologias.

Se, por outro lado, formos capazes de integrar nossa conduta social aos valores que a Torá nos ensina, como amar ao nosso próximo como a nós mesmos, proteger os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, agir com retidão e justiça, então mesmo o que parece uma notícia ruim se revelará uma benção, poderemos andar pelas nossas cidades sem medo, reconheceremos a face do Divino nos saudando a cada pessoa que encontrarmos, não importando quão diferente ela for de nós.

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição.

É só escolher!

Shabat Shalom!

 

[1] https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/ganhadores-loteria-que-perderam-tudo/

[2] Num. 12:26-28

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Dvar Torá: Uma educação judaica para os nossos tempos (CIP)


Há algumas semanas, eu recebi um pedido por WhatsApp da Priscila Karaver, coordenadora do Man’higut, o programa de preparação de madrichim e desenvolvimento de lideranças da CIP. Na mensagem, ela perguntava quais textos judaicos eu achava que eram essenciais na formação de um madrich. Aos ouvidos de um rabino, um pedido assim é a música que mais gostamos de escutar.

Desde então, tenho pensado em quais seriam estes textos na minha opinião e tenho visto meus colegas também procurando os textos essenciais na opinião deles. Curioso, fui olhar na pasta que Pri tinha compartilhado comigo para ver quais respostas já tinham sido enviadas e fiquei satisfatoriamente surpreso ao encontrar na lista um livro para bebês, daquele com muitas ilustrações, pouco texto e impresso em cartão grosso. O livro, de autoria da rabina Sandy Sasso, se chama “What is God’s Name?” e apresenta uma pluralidade de visões sobre o Divino, em um contexto que é simultaneamente muito judaico e intensamente plural. Usa uma linguagem acessível para crianças pequenas sem banalizar um assunto com o qual muitos de nós temos dificuldade de falar com abertura, especialmente com crianças pequenas, dando espaço para que elas desenvolvam suas próprias hipóteses parar onde está Deus no nosso mundo. Sandy Sasso é, na minha opinião, a melhor autora de livros infantis judaicos, tratando de assuntos importantes em linguagem acessível a crianças e a adultos, levantando questões muito significativas para todas as idades.

Há alguns anos, eu estava no carro e pude escutar uma entrevista dela na rádio. Uma ouvinte ligou e lhe perguntou:

Eu fui criada na Igreja Batista. Eu explorei uma variedade de religiões, tudo do judaísmo ao paganismo e voltei ao cristianismo e me juntei à Igreja Episcopal, porque é o que parece certo para mim. O que eu luto é como dar ao meu filho de sete anos e à minha filha de três anos a liberdade de encontrar seu próprio caminho para Deus e para a verdadeira espiritualidade, você sabe, em oposição à religião imposta pelos pais. Meus dois filhos gostam do aspecto social da igreja e, você sabe, fazem as perguntas habituais sobre Deus, mas quero que eles encontrem a paz que encontrei e não tenho ideia de como encorajar isso.

Era um domingo de manhã, eu voltava da sinagoga onde eu fazia meu estágio e quase bati o carro com essa pergunta para a rabina, pensando que pais judeus tipicamente não querem que seus filhos explorem opções religiosas diferentes das suas — mas a verdade é que gostaríamos que eles encontrassem nas suas vidas respostas que fossem verdadeiras para eles, incluindo no âmbito religioso. A rabina Sasso desviou dos aspectos mais polêmicos da pergunta e focou sua resposta no ensino de valores: 

Nós lemos toneladas de livros, o que dar de comida para [nossos filhos], como criá-los, como fazê-los dormir, como ensiná-los a usar a privada. Devemos também nos empenhar em nos educar sobre nossa própria vida espiritual, porque é muito difícil compartilhar com as crianças o que você está pensando se não estiver pensando sobre essas questões. Então, acho que primeiro precisamos nutrir nossa própria vida espiritual. E a maior parte do que fazemos em termos de nutrir a espiritualidade de nossos filhos realmente acontece quando ninguém mais está olhando, o que significa que nem tudo está planejado. É o que acontece todos os dias. Quero dizer, o que você faz quando vê uma pessoa em situação de rua na rua? Como você reage quando um animal é atropelado na estrada, um esquilo, por exemplo? Como agimos com outras pessoas? Todas essas são mensagens para nossos filhos sobre o que realmente importa na vida, o que é precioso, o que é mais importante do que ganhar a vida e seguir nossa rotina diária.

Acho que a sociedade faz um trabalho muito bom em nos ensinar como ser consumidores e um trabalho muito bom em nos ensinar como sermos concorrentes.

A pergunta que acho que os pais estão lutando para responder é como não apenas ensinamos a mente de nossos filhos, mas como ensinamos suas almas? E essa é uma questão muito mais profunda. E sei que queremos que nossos filhos sejam mais do que consumidores e concorrentes.

Na Escola Lafer acreditamos que o judaísmo precisa nos ensinar a sermos humanos mais capazes, que vão além de seus papéis como consumidores e concorrentes.

Eu tenho um amigo que estudo educação física na faculdade e que sempre me disse "educação física não é educação do físico; educação física é educação pelo físico". De alguma forma, o mesmo conceito se aplica à educação judaica. Claro que educação judaica é ensinar judaísmo mas também é ensinar através do judaísmo. É como ensinamos os nossos filhos o que fazer ao encontrar uma pessoa em situação de rua ou um animal atropelado na estrada, o que fazer no encontro com outras pessoas.

Há um outro livro sobre o qual eu tenho falado muito nos últimos anos, em particular com meus alunos de educação adulta, chamado "Here All Along", algo como "Sempre esteve aqui", de Sarah Hurwitz. [2] Na introdução do livro, ela conta que era uma aluna de bat-mitsvá em uma sinagoga de subúrbio nos Estados Unidos e achava o que aprendia absolutamente chato. Ela consegue enrolar os pais para trocar de sinagoga, para uma em que o curso era mais fácil e menos vezes por semana. Depois de trocar, ela se arrepende e se dá conta de que, mesmo chato, o primeiro curso era bem melhor, mas já não tinha o que dizer aos pais para voltar para a primeira sinagoga. Ela aprendeu essa versão chata do judaísmo e nunca mais se engajou com educação judaica. Ela teve uma carreira de sucesso, tendo se tornado a redatora-chefe dos discursos da primeira-dama dos Estados Unidos. Quando o governo terminou, ela, sem ter muito o que fazer, resolveu se inscrever em um curso de judaísmo para adultos. Sobre o que ela aprendeu, ela escreveu: "Este não era o velho e rotineiro judaísmo da minha infância. Era algo relevante, infinitamente fascinante e vivo."

O desafio que temos na educação dos nossos jovens é como apresentar um judaísmo que não é só preocupado com a ordem do acendimento das velas da chanukiá, mas é preocupado com as questões mais importantes das vidas deles e das nossas. Como diz a rabina Sandy Sasso, se o judaísmo não for um fator nas nossas vidas, não tem como transmití-lo para os nossos filhos.

Na parashá desta semana, Côrach lidera uma rebelião contra Moshé: "se somos todos parte de uma nação de sacerdotes, por que só você está na liderança?" Ao final da história, Moshé continua como líder, mas podemos ler esta história e focar nas minúcias da narrativa ou podemos nos perguntar como ela se conecta com o momento que estamos vivendo, com a questão da democracia, sobre a forma de contestar o sistema político. Podemos usar a tradição judaica para ficar só nela, para ficar olhando para dentro de nós mesmos cada vez mais, ou podemos educar para um judaísmo que é sofisticado, que serve de lente, através da qual nos relacionamos com o mundo. 

Esse é o trabalho que fazemos na Escola Lafer. Em geral, as pessoas pensam que é um programa de preparação para B-Mitsvá mas é um programa de preparação de adultos judeus, no qual a cerimônia é só a desculpa que usamos para convencer as famílias a virem conversar com a gente, mas o trabalho que fazemos é pensar como estes jovens adultos judeus poderão funcionar em um mundo cujas dinâmicas nem conhecemos ainda, mas no qual esperamos que o judaísmo seja um fator importante nas suas decisões e nos seus valores.

Se vocês conhecem crianças que poderiam aproveitar uma abordagem assim, liga pra gente para pensarmos juntos como o judaísmo pode ser um fator na vida deles.

Shabat Shalom!


 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Orgulho na maioria e na minoria



Para o meu coração matemático, o livro de baMidbar, que em português é chamado de “Números”, é a oportunidade da unir duas paixões: os números e o judaísmo. Desta vez, tenho pensado sobre as aulas de matemática dos primeiros anos, ainda aprendendo sobre o significado de cada um dos símbolos e notações. Lembro-me bem da confusão entre os símbolos “maior” (“>”) e menor (“<”) e das regrinhas que usávamos para saber qual usar em cada situação. Uma regra dizia que a “boca aberta” do símbolo sempre deveria estar na direção da quantidade maior; outra nos ensinava a fazer um tracinho do braço inferior do símbolo – desta forma, um símbolo se tornava um “4” inclinado (o menor) e outro se tornava um “7” inclinado (o maior). Olhando hoje, com algum saudosismo, parece que naquele tempo era mais fácil determinar quais eram as maiores grandezas e quais eram as menores, mesmo que precisássemos recorrer a estes “truques” no processo.


Hoje em dia, os conceitos de “maior” e “menor” se tornaram bem mais complexos, especialmente se considerarmos seus derivados, a “maioria” e a “minoria”. Além dos conceitos numéricos, há situações de poder, nos quais quem está em maior número nem sempre tem mais destaque. Só como exemplo, pensem nas mulheres, que apesar de serem a maioria da população (51,1%), tem claramente muito menos poder que os homens.


Na parashá desta semana, Shelach Lechá, Deus indica a Moshé que escolha emissários para investigar a terra de Israel, na qual eles pretendem ingressar em breve. Das doze pessoas escolhidas, dez voltaram com um relato negativo; apenas duas reportaram que, apesar dos desafios, os israelitas tinham condições de, com o apoio de Deus, conquistar a terra. O grupo majoritário, ao defender que eles não conseguiriam vencer em combate, afirmava que os residentes da terra eram gigantes, que perto deles os hebreus eram como gafanhotos [1]. O povo em sua maioria seguiu a opinião dos dez enviados pessimistas, para indignação Divina. Moshé conseguiu convencer Deus a não matá-los todos logo ali, mas em resposta à falta de confiança daquela geração em si mesma, Deus determinou que eles vagassem pelo deserto por 40 anos, para que aqueles que entrassem na terra de Israel tivessem uma mentalidade distinta daquela visão derrotista.


Em seu comentário sobre esta parashá, o rabino Jeffrey Salkin afirma: “A opinião da maioria nem sempre está certa. (...) Muitas das grandes coisas da história mundial não aconteceram porque a maioria era a favor delas; muitas vezes é preciso uma minoria criativa de pessoas para convencer os outros a expandir sua visão.” [2] 


Vivemos em uma época de imensas e rápidas transformações. Da tecnologia ao meio ambiente, dos valores sociais aos modelos de negócio, o mundo nunca testemunhou tantas revoluções ao mesmo tempo. De um lado, muitos de nós nos sentimos confusos com tantas mudanças o tempo todo, com medo até. De outro lado, novas oportunidades têm sido criadas a cada dia; grupos que viveram silenciados por séculos, que se viam como gafanhotos indefesos frente a gigantes que os destruiriam se chamassem atenção, passaram a ter coragem de se expressar. Como a nova geração que pôde entrar em Israel, estes grupos historicamente silenciados passaram a demandar seu pleno reconhecimento, querem ser enxergados, reconhecidos, ouvidos e respeitados. Em alguns casos, são a maioria ou têm a maioria ao seu lado; em outros, talvez não sejam tão numerosos, mas querem o seu direito de pertencer plenamente. Afinal de contas, nossa tradição ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] ou seja, cada vida é única e tem valor, mesmo quando não está na maioria.



Nesta sexta-feira, teremos na CIP o Cabalat Shabat do Orgulho, uma oportunidade para vermos e sermos vistos, para escutarmos e sermos escutados, para amarmos e sermos amados, para respeitarmos e sermos respeitados. Maioria ou minoria, nos números ou no poder, que possamos todos nos sentir verdadeiros com quem somos e com a coragem de conquistar nossos sonhos, mesmo quando eles parecem inalcançáveis.


Shabat Shalom!



[1] Num. 13:33

[2] Jeffrey K. Salkin, “The JPS B’nai Mitzvah Torah Commentary”

[3] https://bit.ly/3PdnBgO


sexta-feira, 2 de junho de 2023

Dvar Torá: O culpado pelo ciúme é o ciumento (CIP)


Outro dia, eu estava com a minha filha de 14 anos (quase 15!) na cozinha e ela me disse: “pai, quando eu tiver 18 anos eu vou escrever um livro sobre você, que vai chamar ‘Meu Pai, o Rabino.’” Segundo ela, aqui nas prédicas eu me apresento como uma pessoa séria, respeitada, e ela queria apresentar o outro lado do pai dela. Um desses lados sobre o qual minha filha queria escrever no livro é o fato de que eu, com uma frequência incrível, choro nas séries ou nos filmes que assistimos juntos. O curioso é que eu não acho que me apresente aqui tão sério, e, mesmo que de fato minhas relações pessoais, especialmente com meus filhos, incluam facetas da minha personalidade que eu não necessariamente revelo profissionalmente, já aconteceram algumas vezes de a minha voz embargar e eu ter que segurar o choro em várias das minhas prédicas.

Esses dias, entre lágrimas, eu assisti o último episódio da série Ted Lasso, que passa na Apple TV+. Essa série, sobre um treinador de futebol americano universitário contratado para treinar um time de futebol profissional na Premier League inglesa, foi um fenômeno global em termos de reconhecimento dos críticos e prêmios para os quais foi indicada e que efetivamente venceu. No entanto, como a plataforma Apple TV+ não é das mais populares por aqui, imagino que a grande maioria de vocês não a tenha assistido — mesmo assim, eu vou tentar não dar nenhum spoiler importante.

O que me atraiu na série foi a forma como ela vai na contramão de várias outras séries de sucesso. Em um mundo no qual o culto à personalidade é tão forte como no futebol profissional, ele tenta nadar contra a maré. Ted Lasso é o que, no linguajar judaico, chamaríamos de mensch. Além dele, ao longo das três temporadas da série, os demais personagens se transformam profundamente, na maioria dos casos, procurando ser pessoas melhores. No episódio final, um dos personagens que mais cresceu, reúne um grupo de amigos para dizer que, apesar de estar tentando se tornar uma pessoa melhor, ele está inconsolável frente à percepção de que ele continua sendo a mesma pessoa. “Mas você queria ser outra pessoa?!”, Ted lhe pergunta. “Sim, alguém melhor”, ele responde, emendando com a pergunta, “As pessoas podem mudar?”. Outro personagem responde: “eu não acho que mudemos, só aprendemos a aceitar quem sempre fomos”. Um terceiro personagem, que neste finalzinho da série está imerso em um processo de t'shuvá, de recohecimento dos seus erros, e tentando corrigi-los, diz: “eu acho que as pessoas podem mudar. Vocês sabem, às vezes para pior e às vezes para melhor.” Mais alguém entra na conversa, dizendo: “seres humanos nunca serão perfeitos. O melhor que podemos fazer é continuar pedindo ajuda e aceitando-a quando pudermos. E se você continuar fazendo isso, você sempre estará indo na direção de melhorar.”

Nesse momento, com os olhos vermelhos e o rosto molhado, eu fico pensando que eles têm razão. Não somos perfeitos e o máximo que podemos pedir é que, de maneira geral, estejamos caminhando na direção da melhora. Na tradição judaica, ou pelo menos na parte da tradição judaica pela qual eu me apaixonei, Deus tampouco é perfeito — são inúmeros os midrashim em que Deus se arrepende de algo que tenha feito. Há um midrash, por exemplo, de acordo com o qual Deus criou vários mundos antes do nosso, mas não ficou contente com o resultado, os destruiu e criou um novo. [1] Mesmo depois de estar com este mundo completo, Deus decide destrui-lo através do Dilúvio e, frente ao comportamento dos israelitas, propõe a Moshé mais de uma vez destruir todo o povo hebreu e começar de novo, só com Moshé.

Eu tinha um chefe que dizia que os erros da equipe não o incomodavam, desde que cada vez cometêssemos um erro novo. Segundo ele, nossos erros indicavam que estávamos tentando coisas novas, nos arriscando; algumas dessas tentativas dariam certo e outras, não. Se não fôssemos capazes de aprender dos nossos erros, no entanto, aí teríamos um problema. Nessa mesma linha de pensamento, quando a Fundação Kohelet criou um prêmio para a Educação Judaica, uma das 6 categorias foi “tomada de risco e fracasso” [2] — só não erra quem não toma riscos e mantermo-nos parados no mesmo lugar de sempre é a receita mais certeira para nos tornarmos irrelevantes muito em breve.

Essa forma de reconhecer e encarar nossa imperfeição e a intenção de caminharmos para frente pode ser aplicada também a coletivos, a sociedades e até mesmo à nossa tradição religiosa. Ter a coragem de reconhecer tanto os aspectos maravilhosos do judaísmo quanto as áreas nos quais ele nos frustra é o primeiro passo para sabermos para onde caminhar. Na parashá desta semana temos um exemplo de uma passagem problemática que nem sempre recebeu o olhar crítico que precisaria.

De acordo com a Torá, quando um marido tem ciúmes de sua esposa e teme que ela o tenha traído, ele deve levar a esposa ao sacerdote, que preparará uma mistura de água santificada e terra, na qual dissolverá a tinta com a qual escreveu um pergaminho com maldições caso as suspeitas ciumentas do marido sejam verdadeiras. A esposa deve, então, beber a mistura de água, terra e tinta. Se ela, de fato, tinha traído o marido “seu ventre se distenderá e sua coxa se enfraquecerá e a esposa se tornará uma maldição em meio ao seu povo.” [3] Por esta doutrina, caso não houvesse qualquer motivo para o ciúmes, ao beber a água com terra e tinta, a esposa não sofreria dos mesmos males. Neste caso, nem o marido, nem o sacerdote oferecem ao menos um pedido de desculpas por terem forçado-a a passar por este ritual.

A violência e a humilhação refletidas neste ritual devem chocar a todos. Lembremos que não existe na Bíblia qualquer procedimento semelhante para o marido que, estando casado com uma esposa, tem um relacionamento com outra pessoa. Na verdade, em tempos bíblicos, homens podiam casar-se com mais de uma esposa sem que isso fosse considerado traição do pacto nupcial.

Na literatura rabínica, ao perceberem adequar o ritual bíblico à realidade que eles conheciam de que a mágica não funcionava, os rabinos adicionaram um conceito de acordo com o qual mulheres que tinham mérito podiam ter as consequências por seus atos postergadas. [4] Ou seja: mesmo depois de sobreviver o ritual vexatório, ela ainda não era considerada inocente, mas podia ser que sua punição só tivesse sido retardada. Na Mishná, Rabi Shimón chega a alertar os outros rabinos de que “aquele que diz que o mérito atrasa a punição, enfraquece o poder da água frente a todas as mulheres que a bebem. Além disso, você difama as mulheres inocentes que a beberam, pois as pessoas dirão: ‘elas são impuras mas seu mérito atrasou a punição.’”  Apesar do aviso, rabi Iehudá haNassi, o redator da Mishná, decidiu manter esse conceito, dizendo que elas poderiam sobreviver, mas se tornariam estéreis e sua saúde deterioraria gradativamente. 

O ritual acabou sendo abolido, não por qualquer objeção moral a ele, mas porque o rabino Iochanán ben Zacái achou que, considerando o alto grau de infidelidade matrimonial no final do período do 2º Templo, não fazia mais sentido acusar ninguém deste pecado. [5]

Ao encontrarmos estes textos na nossa tradição, tanto a passagem bíblica como o tratamento que ele recebeu na Mishná, temos que denunciá-los, reafirmar que o ciúmes é uma doença do ciumento, que é ele que deve procurar ajuda e tratamento. Que a vítima do ciúmes nunca pode ser penalizada; ela deve ser acolhida e empoderada, encorajada a refletir se o relacionamento é saudável e se deseja continuar nele. Sempre vale destacar e divulgar o trabalho de prevenção da e resposta à violência doméstica desenvolvido pelo Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP. Informe-se mais visitando o site elf.ong.br

Que nas nossas vidas pessoais e comunitárias, nos nossos textos e nas nossas tradições, possamos aceitar nossas próprias falhas e as dos outros, sem nunca deixar de procurar a melhoria constante.

Shabat Shalom!



 

[1] Bereshit Rabá 3:7 

[2] https://koheletprize.org/pd-category/risk-taking-failure/

[3] Num. 5:27

[4] Mishná Sotá 3:4-5

[5] Mishná Sotá 9:9


sexta-feira, 26 de maio de 2023

Dvar Torá: A entrega da Torá vai muito além da entrega das Tábuas (CIP)


Alguém sabe qual a palavra do ano de 2022?

Quem respondeu a minha pergunta com outra pergunta, “de acordo com quem?” ganhou alguns pontinhos… Eu fui pesquisar o assunto e descobri uma enormidade de listas em várias línguas que tentam expressar em uma palavra o espírito geral da sociedade naquele ano. Aparentemente, tudo começou em 1972, quando a Sociedade para a Língua Alemã publicou a palavra do ano de 1971, o ano em que eu nasci. Para surpresa de todos, a palavra escolhida não foi “Rogério”, mas chegou bem perto. “Aufmüpfig”, a palavra escolhida, é traduzida como “rebelde” ou “insubordinado”.

Em português, existem, pelo menos, duas listas: uma organizada em Portugal e outra no Brasil, que vem sendo compilada desde 2016. Indo pela escolha de cada ano, vamos vendo como os ventos estão soprando e mudando de direção nos últimos sete anos. Veja a sequência desde 2016 até 2022: indignação, corrupção, mudança, dificuldades, luto, vacina e esperança. Nas listas em inglês, há uma predileção por palavras recém-criadas ou cujo uso ganhou novo significado. Em 2015, a palavra do ano escolhida pelo dicionário Oxford foi o emoji de uma pessoa chorando de rir, em 2016 foi “pós-verdade”, e em 2017 foi “youthquake”, uma mistura de “youth”/ “juventude” e “earthquake” / “terremoto” para indicar uma mudança na sociedade ou na cultura em resposta às demandas das pessoas mais jovens.

O que eu tinha ido procurar nessas listas e acabei não encontrando era a palavra “narrativa”, que apesar de não ser nova me parece que ganhou grande destaque nos últimos dez ou vinte anos. Quando eu procurei “narrativa” no dicionário, no Aurélio (1999) aparecia:

1 - A maneira de narrar.

2 - Narração.

3 - Conto, história.

Mas o significado no qual eu estava pensando para “narrativa” não era nenhum destes. Fui procurar em um dicionário em inglês (Oxford, 2021):

1 - um relato falado ou escrito de eventos relacionados; uma história.

2 - a parte ou partes narradas de uma obra literária, distintas do diálogo.

3 - a prática ou arte de contar histórias.

4 - uma representação de uma situação ou processo particular de forma a refletir ou estar em conformidade com um conjunto abrangente de objetivos ou valores.

Era esta última que eu estava buscando: “narrativa” como a perspectiva específica que damos ao que estamos apresentando, em sintonia com um conjunto de objetivos e valores. Se a palavra “narrativa” não apareceu em nenhuma lista de palavra do ano, a expressão “disputa de narrativas” certamente deveria ter aparecido — nós a vivemos em inúmeros aspectos das nossas vidas. Pensem em como se conta sobre a Guerra da Ucrânia no Ocidente e nos países aliados de Moscou, sobre o processo que tirou Dilma da presidência, se um único jogo disputado entre representantes de dois continentes apenas pode ser considerado campeonato mundial, sobre casais que se separam ou sobre quase toda briga. Há até um ditado que diz que para todo evento sempre há três lado: o de quem conta, o de sobre quem se conta, e a verdade. Definição perfeita de “disputa de narrativas.”

Estamos em Shavuot, a festa que, de acordo com a narrativa rabínica, comemora a entrega da Torá no Monte Sinai. É aqui que o consenso acaba e começa a disputa de narrativas….

O que exatamente foi entregue no Monte Sinai? Os Rabinos se esforçaram para que a palavra Torá fosse tão ambígua quanto possível. De um lado, “Torá” são os cinco livros que Moshé entregou ao povo de Israel: בראשית, שמות, ויקרא, במדבר, דברים, , Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Além disso, “Torá” pode significar também todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, e seus 39 livros. Mais do que isso, Torá pode significar toda a literatura rabínica, tanto a Torá escrita quanto a Torá Oral. Há um midrash de acordo com o qual até mesmo uma nova interpretação dita por um aluno esforçado ao seu professor nos dias de hoje já foi revelada por Deus a Moshé no Monte Sinai. [1]

Qual então o significado da palavra “Torá” quando dizemos que a “Torá” foi entregue no Monte Sinai? Foram as Dez Afirmações? Foram as Leis de acordo com as quais um povo recém-libertado deveria se comportar? Foram os valores contidos, não apenas nas leis, mas principalmente nas histórias que lemos na Torá? Foi a tradição rabínica do estudo e do debate, do questionamento incessante a todo momento?

O que nós celebramos hoje quando celebramos o recebimento da Torá em Shavuot? Na dinâmica conhecida dos conflitos de narrativas, este é um tema em debate. 

Há bastante gente, mesmo no mundo judaico liberal, que defende e ensina que Shavuot é a data do recebimento das leis. Ponto. De acordo com essa narrativa, o ponto central da prática judaica é o respeito estrito à halachá, a lei judaica, e, portanto, é seu recebimento que marcamos em Shavuot. Eu não sei quanto a vocês, mas as leis que governam a minha rotina não vêm da Torá — vêm de dois mil anos de tradição rabínica de encontro, duelo e questionamento com a Torá. Meu relacionamento com a Torá e com as inúmeras leis que, de fato, fazem parte do seu texto, não é fundamentalista, não é literal. Portanto, se Chag Matán Torá, a festa da Entrega da Torá, tem a ver só com a entrega das Leis, eu teria pouco o que comemorar.

O que eu descubro na Torá, muito além das Leis, são narrativas que me permitem encontrar o Divino, em disputa e em dança, com carinho e com tensão, na companhia de 2.000 anos de debates, interpretações, comentários que buscam a forma de viver a relação com o Divino nas ações mais prosaicas, no trocar a fralda de um bebê, no comer a fruta da estação, na declaração do Imposto de Renda que eu ainda não terminei. 

Para mim, Shavuot é a data de celebrar este encontro verdadeiro entre judeus e  seus judaísmos, assim no plural, e eu reconheço que este também é um ponto de vista, uma narrativa, em conflito com aquela outra. E provavelmente, hajam outras narrativas que discordam dessas duas e junto com as quais compõem um quadro de múltiplas perspectivas contraditórias, mas não por isso menos verdadeiras. Nada mais judaico!

Chag Sameach!




 

[1] Vaicrá Rabá, Acharei Mot 22:1